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A superficialidade da Revolução Industrial e a verdadeira formação cultural

O ponto detonador de toda a vida intelectual de um indivíduo é sua apetência metafísica a respeito de um determinado assunto; sem ela jamais a pessoa se tornará sábia. Entretanto, a Revolução Industrial promove a superficialidade, impedindo nas almas o amor a Deus e a consideração da luta como uma realidade da vida.

Nowic (CC3.0)
Vale dos Reis, Egito

Vou dar um exemplo concreto de como a Revolução Industrial falseia todas as coisas.

Descobertas do início do século XX

No tempo de minha infância, a egiptologia foi muito conceituada.

Dois homens, Lord Carnarvon1 e Howard Carter2 resolveram fazer pesquisas no Vale dos Reis, no Egito, e acabaram descobrindo o túmulo de Tutancâmon, trazendo à tona toneladas de tudo o que ele continha. As revistas e os jornais fizeram um estouro publicitário celebérrimo a favor dos descobrimentos.

Naquele período, a influência e o domínio da Inglaterra sobre o Egito era ainda muito grande. Por isso aproveitaram o descobrimento e mandaram levar para o British Museum3 quantidades indefinidas de tesouros egípcios. A seção egiptóloga desse museu é colossal. E havia um certo interesse geral – moderado e superficial, mas havia – pelos assuntos da egiptologia.

Vejamos o modo como se desenvolveram as coisas.

Influência artificial da Revolução Industrial

Em virtude das facilidades da Revolução Industrial, uma viagem da Inglaterra para o Egito se tornava muito mais fácil do que em épocas anteriores. O estabelecimento da garra inglesa ali também se tornava muito mais fácil, porque podiam transportar armamentos e tropas a toda hora. Foi o que eles fizeram: ocuparam o Egito. Após a Primeira Guerra Mundial também houve ali uma pressão norte-americana.

Ham (CC3.0)
British Museum, Londres

Os ingleses, nas pesquisas arqueológicas, usaram meios técnicos de toda ordem para detectar onde ficava a porta do túmulo. Eram técnicas de arejamento, depois técnicas para tirar os objetos do interior, o modo de guardá-los, de transportá-los em caminhões até o Cairo, onde já havia navios preparados para levá-los ao British Museum. Eram tantos objetos que acabaram estabelecendo um mercado de egiptologia no Cairo, para vender essas coisas a outros países.

Ao mesmo tempo, iniciou-se o afluxo de colecionadores e de negociantes, para os quais construíram hotéis e casas de diversão. As agências de turismo espalhadas por toda a Europa e pelos Estados Unidos lançaram o anúncio: “Venha se divertir! Divertimento moderno é muito agradável! Mas, por que você não experimenta um divertimento de dois mil anos atrás? Venha ver como se divertia o faraó. Venha conhecer o mundo fabuloso dos faraós do Egito. Venha conhecer o mundo fabuloso das pirâmides!” E aparecia desenhado um egipciozinho estilizado. Enfim, começou a afluência de viajantes.

Esses meios de propaganda levaram para junto das pirâmides um turbilhão de gente. Tudo isso é um movimento artificial. E digo artificial porque torna tão fácil o acesso à pirâmide, e cria tantos interesses de pessoas sem entusiasmo por ela, que vão ali só por causa do turismo ou de um outro fator qualquer, que o assunto “pirâmide” fica misturado numa série de outros… É tudo pretexto.

Esse material foi para a Inglaterra e lá construíram – vou imaginar – dependências especiais no British Museum: “Sala Tutancâmon” ou “Pavilhão Tutancâmon”, exibindo os pertences do faraó, ou o “Pavilhão do deus Ra”, enchendo o museu de objetos de toda ordem.

Além disso, nos arredores das pensões ou dos hotéis no Egito, criaram um novo mercado de pequenas imitações dos objetos das pirâmides, para vendê-las como souvernirs.

De repente, o governo inglês resolve: “É preciso, na maior urgência – e não se sabe por que ‘na maior urgência’ – decifrar tudo quanto foi encontrado.” Na Universidade de Oxford ou de Cambridge, monta-se uma Faculdade de Egiptologia, convocam-se egiptólogos do mundo inteiro para morarem ali a fim de decifrarem os enigmas e, dentro do programa, dentro de trinta anos, quando for o “tantésimo” aniversário de Champollion4, poderem exibir as descobertas.

Agindo desse modo, atraem para tais estudos uma porção de gente que não tem verdadeiro interesse pela pirâmide, mas vai estudá-la da mesma forma como poderia, por exemplo, trabalhar numa fábrica de cordões de sapatos do Canadá ou ser um marinheiro. Como ali se tem um bom ordenado e boas condições de vida, a pessoa dedica-se a estudar paleografia. Formam, então, um conjunto que estuda egiptologia na pancada. Resultado: o sujeito não estuda aquele material egiptólogo na medida do seu interesse, nem tem uma livre iniciativa para aprofundar neste ou naquele ponto, mas tem obrigação de aprontar um relatório sobre tal tema. Tudo isso para o “trigésimo aniversário” de Champollion.

Qual o resultado de tudo isso? Uma produção arqueológica enorme. Entretanto, o aproveitamento geral é muito inferior ao que seria se não houvesse essa influência da Revolução Industrial.

East Oregonian (CC3.0)
Esfinge e Pirâmides do Egito

Processo contrário à artificialidade industrial

Se não houvesse a Revolução Industrial, o que aconteceria? Iriam para lá apenas os fanáticos da antiguidade egípcia. Estes teriam condições reais para ir. Estudariam lentamente, porém muito mais a fundo, sem encomendas com prazos limitados, mas apenas levados pelo desejo desinteressado de conhecer e estudar o Egito. Esses homens teriam vencido a barreira da preguiça, da indolência e da timidez, seriam praticamente os “bandeirantes” da egiptologia, levados por um desejo desinteressando de conhecê-la. Seriam homens que não trabalhariam nem sequer para ficar célebres, porque a máquina de propaganda não estaria montada em torno deles.

Em consequência, teríamos uma egiptologia dirigida e executada pelos egiptólogos que andaram mais devagar, mas que a esse passo teriam estudado todos os escaninhos do assunto “Egito” adequadamente. Quando se desse a publicação de seus estudos, talvez eles até já tivessem morrido, mas seriam obras de primeiro valor e haveria uma escola de egiptólogos instalada ali, não tão diferente dos setenta sábios de Alexandria.

Em síntese, tudo isso seria produzido mais devagar, sem pressa, sem propaganda, com mais profundidade e com qualidades muito superiores.

Sem apetência metafísica não há verdadeira sabedoria

Eu acredito que não existe formação cultural que não tenha como raiz uma apetência metafísica. E tal apetência, que na maior parte dos casos deve ser não consciente, mas subconsciente, dá à pessoa a vontade de conhecer uma coisa na sua profundidade, porque ele sente e percebe que sua alma fica mais integrada e mais completa se souber aquilo.

Harry Burton (CC3.0);Harry Burton (CC3.0)
Lord Carnarvon e Howard Carter na tumba de Tutancâmon

Esse é o ponto detonador de toda a vida intelectual de uma pessoa. Se ela não conhece algo por apetência metafísica, jamais será um sábio, segundo o nosso conceito de sábio, e esse desejo metafísico supõe uma posição perante o assunto, semelhante à posição da alma piedosa, séria e direita, diante da Doutrina Católica.

Tomem um bom católico que quer conhecer a fundo a doutrina católica. Tal atitude já supõe o seguinte: não querer conhecer tudo por igual, mas conhecer suficientemente o que lhe diz respeito, o que ele deve saber. O indivíduo que quer conhecer por igual tudo não quer conhecer nada, só pretende se mostrar. Esse não serve.

O bom católico que quer conhecer alguns pontos, à medida que vai estudando, vai enriquecendo sua alma com isso e acaba tomando uma atitude contemplativa. Sua sofreguidão pelo assunto vai indo cada vez mais longe, vai subindo e quase se poderia dizer que existem nele as três vias da vida espiritual: a via purgativa, a via iluminativa e a via unitiva.

Na via purgativa o indivíduo vai se interessando tanto, que acaba se desinteressando dos outros assuntos, a não ser enquanto se ligam ao assunto principal que lhe interessa. Na via iluminativa, ele vai crescendo cada vez mais em conhecimento; e na via unitiva, torna-se um sábio, porque, cogitando em tais reflexões, de tal maneira está unido a elas, que ele acaba acrescentando coisas novas.

Léon Cogniet (CC3.0)
Jean-Francois Champollion

Eu gostaria de acrescentar o seguinte: há alguma coisa que poderia vagamente comparar-se à união mística. O indivíduo como que se transforma no assunto e este se transforma nele. De tal maneira que é impossível estudar a matéria sem sentir a marca da personalidade dele. E também é impossível tratar com ele sem ver a matéria como que viva nele. É o auge da via unitiva.

Cursos livres para despertar nos jovens apetências metafísicas

O ponto de partida da formação seria despertar nos alunos do curso secundário, e talvez já no primário, uma apetência. Não se trata de impor: “Você vai ser tal coisa…” Não! Trata-se de interrogar o jovem: “O que a sua alma pede?”, e encaminhá-lo naquela direção.

Se nós tivéssemos gente para isso, para o Reino de Maria…! Vou dizer numa palavra só: se houvesse a possibilidade de montar um curso secundário, ensinando a matéria como nós a entendemos, ou ainda, promover um curso livre, à nossa maneira, para despertar nos adolescentes o gosto metafísico, e o gosto de História, de algumas matérias que já se estudam no curso secundário, numa espécie de ginásio livre, sem fiscalização do Estado, nem nada. Fazer isso nas horas livres. Entretanto, com um cuidado muito grande: não formar maníacos! Eu não acredito que um egiptólogo verdadeiro, por exemplo, seja um maníaco que passa o dia inteiro dentro da pirâmide. Esse não serve de nada.

Ao contrário, deve ser um homem comum, um chefe de família que cuida de algum negócio, que se interessa pelos fatos que acontecem, está a par da vida, da Revolução e da Contra-Revolução, e daí tira as interrogações para seu estudo. As interrogações são um dos pontos mais importantes da vida intelectual. As perguntas devem sair da vida comum e dos problemas do indivíduo em contato com a vida de todos os dias. Quem não tem perguntas é porque não entendeu nada. Essa história de pensar que aquele que nunca pergunta entendeu tudo é falsa. Esse sujeito está no bas-fond5 da vida intelectual, pois não entendeu nem sequer o que é entender.

Roland Unger (CC3.0);Divulgação (CC3.0)
Abertura do túmulo de Tutancâmon. Ao lado, máscara mortuária de Tutancâmon

Com isso nós teríamos a possibilidade de fazer um apostolado grandioso! E eu acho exatamente que um dos pontos pelos quais o apostolado do João Clá é tão fecundo – antes de tudo deve-se considerar a bênção que Nossa Senhora dá a ele – é porque ele, sem se dar conta, mistura metafísica com a vida: conta um fato, diz uma coisa, mexe com um, volta ao tema… Não é daqueles que promovem um ensino “ploc-ploc”6,dizendo o seguinte: “Então, eu vou explicar a vocês o que é a egiptologia, Champollion… Antes de estudar o Egito é preciso saber o que é egiptologia, senão não vai, não vai, não vai!” Acaba sendo um estudo escolar cacete. É no contato com a vida que se forma o cientista.

Necessidade imperiosa de um mundo feito de maravilhas

O indivíduo tem necessidade, do fundo da alma, de viver, de fugir deste mundo industrializado de hoje para uma forma de maravilha que só se encontraria se ele fosse capaz de viver debaixo do mar, por exemplo, onde há um universo que refresca todas as imagens dele e lhe dá toda uma série de outras ideias. De maneira tal que ele é capaz de ir ver um galeão sepultado nas águas. Se esse galeão for restaurado, levado para um porto e transformado em um ponto de visita de museu, ele não vai, porque não tem interesse por ele a não ser enquanto submerso. Por quê? Pela especial poesia que existe no fundo do mar enquanto mar. Pela maravilha enquanto maravilha.

Um homem assim, se tivesse fé, poderia pintar aspectos do Céu como sendo parecidos com a vida submarina. Isso refrescaria as noções sobre o Céu, substituiria o Céu perpetuamente renascentista e o poria em outra clave. É provável que o Céu Empíreo tenha uma porção de coisas dessas, que nós não somos capazes nem de pensar.

Quantos de nós, sem perceber, padecemos porque nunca nos embrenhamos pelas searas ignotas que dariam respiração às nossas almas! Levanto uma hipótese: não seria um complemento interessante de toda cultura se o indivíduo fosse habilitado a imaginar e a estudar, a se interessar por dois mundos mais ou menos reais, mais ou menos impossíveis, mas que representam o possível, o maravilhoso para ele?

Amor ao bem e ódio ao mal, fundamento da luta R-CR

Como inserir nesse quadro o aspecto da luta entre a Revolução e a Contra-Revolução?

Uma resposta que agradaria muita gente, mas, por conter apenas uma parte da verdade, deformaria os espíritos, seria a seguinte: “Revolução e Contra-Revolução não é senão o conceito católico do caráter militante da Igreja e da vida. Estude os Anjos, os demônios um pouco, pecado original, fraqueza do homem e ascese, pratique em si mesmo o discernimento entre Revolução e Contra-Revolução, reprima seus defeitos, desenvolva suas virtudes e você terá o panorama Revolução e Contra-Revolução presente em si.”

Ora, a resposta verdadeira é diferente, não é só isso. Seria: “Estamos neste mundo não só para travar essa luta, mas para conhecê-la. E, conhecendo-a, ver a vida – a qual é um objeto de contemplação – como reflexo de Deus na sua santidade e luta contra o demônio na sua ignomínia. Não há identidade de situação. Não são dois deuses, um bom e um ruim. O demônio não se reflete nas coisas como Deus se reflete. E aprenda a amar a Deus nesta realidade chamada luta, em que você conhece o bem e o mal, ama o bem e odeia o mal, em concreto, como existem, porque isto é que lhe foi dado, para subir depois às mais altas cogitações do amor de Deus, na medida em que sua alma peça. Para isso você tem que amar a ordem do universo. Para amá-la, precisa amar as várias ordens que a constituem e odiar o contrário.

Arquivo Revista
Dr. Plinio em 1986

E não é uma luta em tese. É uma luta dos meus dias como ela existe hoje. Esta é que você tem que conhecer. E seu amor e seu ódio têm que estar postos ali. Nela, ver Deus enquanto infinitamente superior a tudo isso, autor de tudo quanto é bom e oposto a tudo quanto é mal.”

E, além disso, uma certa graça que vai por cima de tudo isso, um discernimento do caráter sobrenatural e preternatural dessas realidades, o qual, em certo sentido, é o melhor sol delas.

(Extraído de conferência de 15/10/1986)

1) V Conde de Carnarvon. Financiou a expedição liderada por Howard Carter, que descobriu a tumba de Tutancâmon, em 1922, no Vale dos Reis.

2) Arqueólogo e egiptólogo britânico (*1874 – †1939).

3) Museu Britânico, localizado em Londres.

4) Jacques-Joseph Champollion (*1778 – †1867). Arqueólogo francês, conservador de manuscritos na Biblioteca Real e professor de paleografia.

5) Do francês: submundo.

6) Expressão onomatopeica criada por Dr. Plinio para designar o defeito de certas pessoas que, desprovidas de intuição, minoram a importância dos símbolos e negam o valor da ação de presença. Querem tudo explicar por raciocínios desenvolvidos de modo lento e pesado, à maneira de um paralelepípedo que, ao ser girado sobre o solo, emite o ruído “ploc-ploc”.

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