A elevação, suavidade e elegância no convívio humano que reluziram de modo especial em outras quadras históricas, constituem um acervo da Civilização Cristã. Segundo Dr. Plinio, os desajustes nos relacionamentos originam-se, sobretudo, do fato de o homem se afastar do amor a Deus e concentrar-se em si próprio.
Quando conversamos com alguém, devemos ter em vista as vantagens espirituais de nosso interlocutor e, de outro lado, os interesses da Igreja. Se começamos a pensar em nossos próprios benefícios, surgem mil misérias que não nos é difícil imaginar.
O egoísmo desnatura o convívio humano
Na verdade, os outros têm uma extraordinária sensibilidade para perceber se, em relação a eles, estamos agindo de modo interesseiro ou não. Podem não exprimi-lo nem conscientizá-lo, mas em seu subconsciente algo dessa percepção permanece. Portanto, para agir bem é necessário um completo desinteresse de si e desejar apenas as vantagens da Igreja e da alma com quem tratamos.
“Só a cortesia não nos adiantará em nosso apostolado, se manifestarmos egoísmo e interesse no relacionamento com o próximo”
Importa distinguir aqui o que chamamos de interesse, pois podemos, legitimamente, defender nosso próprio direito. Há, porém, dois modos de fazê-lo. O primeiro consiste em agir em função de Deus, o qual deseja que nosso direito seja respeitado; o segundo, em defender com ferocidade alguma vantagem implícita nesse direito. São atitudes muito diferentes. Exemplifico.
Se alguém comete uma injustiça a meu respeito, tenho dois motivos para reagir. Antes de tudo, sendo a injustiça um pecado e, portanto, contrária à glória de Deus, devo ser incompatível com ela e impugná-la. Outra razão de me indignar é ter em vista, não a causa de Deus, mas meu lucro pessoal. Quer dizer, como meu interesse foi lesado, posso até alegar em meu favor os cânones da moral. Esta, porém, passa a funcionar quase como pretexto e não como o motivo principal de minha defesa.
Em virtude da natureza humana decaída, o interesse próprio facilmente se hipertrofia, degenera-se e redunda numa explosão de egoísmo. E este deturpa, desnatura e corrói o convívio humano.
Se formos desapegados, não nos perturbemos: o Espírito Santo nos inspirará a agir de modo certo
Ao desapegado, o Espírito Santo inspira a agir retamente
Poder-se-ia, então, perguntar: quais as palavras adequadas para nos defendermos?
Respondo com um conselho do Divino Mestre. Nosso Senhor recomendou aos Apóstolos que, ao serem arrastados à presença das autoridades na sinagoga, não se preocupassem com o que haveriam de dizer, pois o Espírito Santo lhes poria nos lábios as palavras necessárias para responderem dignamente (Mt 10, 17-19).
O mesmo sucede em nosso apostolado ao tratarmos com aqueles que a Providência coloca em nosso caminho, inclusive pessoas influentes na sociedade: se formos desapegados, não precisamos nos perturbar, pois o Espírito Santo — que habita como num templo na alma em estado de graça — de um ou outro modo nos instruirá para agirmos retamente. E se, por qualquer falta de sagacidade ou de tino diplomático, atuarmos de modo não ideal, mas bem-intencionados, Nossa Senhora fará redundar o mal em bem.
Cultivar a cortesia “saint-simoniana”
Outra objeção poderia ainda ser levantada: “Dr. Plinio, de nada adianta então ter a elevação e suavidade de trato do Duque de Saint-Simon [ver quadro em destaque], tão salientado pelo senhor, pois tudo se reduz à vida espiritual”.
Não é correto. Suponhamos o caso de uma pessoa chamada a discutir para defender a doutrina católica. Para tanto existem a teologia e a filosofia (a Suma Teológica de São Tomás de Aquino, por exemplo), as quais fornecem o aparelhamento magnífico de raciocínios que provam a veracidade da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. É a apologética.
Se essa pessoa cultivou seu espírito, ou se não pôde estudar por falta de meios materiais, ou o fez — sem culpa própria — de modo incompleto, imperfeito, o Espírito Santo, a rogos de Nossa Senhora, a ajudará e abençoará para que sua ação se torne útil e fecunda, a fim de salvar as almas. Porém, se por preguiça ela não estudou apologética, o Divino Espírito Santo certamente não a favorecerá, pois ele não supre as mazelas dos negligentes.
Duque de Saint-Simon (1675-1755)
Nascido em Paris, recebeu cuidadosa educação e abraçou a carreira das armas, onde obteve assinalados êxitos militares.
Deixou o exército em 1702 e a partir de então viveu, ora na corte de Versailles, ora em seu castelo de La Ferté-Vidame.
Em 1723, após a morte do Regente — Duque Filipe de Orleáns, sobrinho de Luís XIV —, Saint-Simon retirou-se em seu castelo, onde redigiu suas célebres “memórias”, uma das obras-primas da prosa francesa.
Com profundo senso de observação e de modo atraente, Saint-Simon descreve os principais personagens de seu tempo e narra os mil pequenos fatos de vida da corte, abrangendo o período de 1691 a 1723.
Ora, o que se dá com a doutrina sucede também com a cortesia e o saint-simonianismo. Quem possui os meios e o tempo para aprendê-los, deve fazê-lo. Quem não tem, confie em Nossa Senhora, seja desinteressado e seu trato fará bem às almas. Insisto: o saint-simonianismo não aproveitará ao egoísta nem será útil àqueles que manifestam um tratamento interesseiro, pois este corrompe tudo. Nas relações e conversas com o próximo, cumpre ser abnegado, amar seriamente a Deus e ao nosso semelhante por amor de Deus.
Pela admiração se aprende o “saint-simonianismo”
Como se aprende e se cultiva essa forma de cortesia a que chamamos de saint-simoniana?
Posso responder evocando meu exemplo pessoal. Aprendi, primeiramente, de modo vivo e direto — aliás, o mais importante —, prestando atenção, admirando, procurando entender, na medida do possível, as pessoas com alguma tradição saint-simoniana com as quais convivi desde pequeno. Entre elas a fräulein Mathilde, nossa preceptora, alguns parentes e conhecidos que freqüentavam minha casa ou que eram visitados por mim, e em cuja educação refulgiam belos traços da formação dos antigos tempos.
Com o passar dos anos tornei-me ávido de conhecer mais, compreendi a beleza desse modo de ser, entendendo tratar-se não apenas de um dote mundano, mas, acima dos defeitos do personagem em si, de um valor da civilização católica. Então, quando me caiu nas mãos uma compilação de textos de Saint-Simon, minha alma teve sede de tomar contato com a obra completa dele. Li, sublinhei e reli os vários volumes, e confesso “invejar” os que ainda não os leram, pois podem ter a alegria — já saboreada por mim — de fazê-lo pela primeira vez…
Portanto, àqueles que é dado ler Saint-Simon, alegrem-se! Os que não o conseguem, não chorem, pois há algo melhor do que isto: se nos ambientes autenticamente católicos encontrarem algumas pessoas saint-simonianas, procurem admirá-las e entendê-las. Sobretudo, almejem ser inteiramente desinteressados, e o Divino Espírito Santo lhes ensinará o resto. Máxime se devotos de Nossa Senhora, por meio de quem obtemos todas as graças do Céu.
(Extraído de conferência em 22/5/1970)