Sempre solícita e diligente em tu­do que dizia respeito à educa­ção de seus filhos, Dª Lucilia aproveitava-se de todas as circunstâncias favoráveis para fazê-los progredir na formação de suas personalidades, bem como na aquisição de valores mo­rais que os tornassem aptos a enfren­tar as vicissitudes desta vida. Nessa pre­paração tinha lugar de destaque a ar­te de conversar, na qual Dª Lucilia era exímia.

As crianças introduzidas no mundo dos adultos

Em sua residência da Alameda Ba­rão de Limeira, costumava-se congregar grande número de parentes, sen­do habitual transformar-se a ampla sala de jantar em palco de prolongados en­tretenimentos e debates, que se estendiam após as refeições, já de si de­mo­radas.

Concluída a sobremesa, as pessoas se sentavam confortavelmente nos so­fás e poltronas dispostos nos cantos da sala e, enquanto sorviam a pequenos goles um aromático cafezinho, pros­se­guiam a conversa. Esta, sempre animada, comportava com freqüência o trato de temas elevados, feita ao mesmo tempo com naturalidade e distin­ção. Naquela época, as conversas des­se tipo, apesar de espontâneas, obede­ciam a regras não escritas em nenhum manual e constituíam uma verdadeira arte, que o aparecimento do cinema e, mais tarde, do rádio e da televisão, extinguiu por completo.

Em torno da matriarca, Dª Gabriela, no aprazível e distinto ambiente criado por ela no palacete dos Ribeiro dos Santos, eram as crianças introduzidas de maneira ordenada no mundo e nas idéias dos adultos

Saber manter presa a atenção dos interlocutores, conseguir interessá-los por um tema, fazê-los participar sem constrangimento do animado diálogo, eram habilidades de espírito que ti­nham seus campeões, cujo mérito era vivamente apreciado pelas pessoas cul­tas. A tal ponto que a história sempre registrou os grandes causeurs  de cada época. Um deles foi um bisavô de Dª Lucilia, o Dr. Gabriel José Rodrigues dos Santos, notável parlamentar do Segundo Reinado, não lhe tendo ficado atrás alguns de seus descendentes, que cultivaram e transmitiram o elevado dom da conversação.

A partir de certa idade, as crianças eram admitidas à mesa dos adultos, mas sem tomar parte na troca de idéias, a não ser quando alguma pergunta era dirigida a elas ou se lhes pedia uma opinião. Eram introduzidas desse modo ordenado no mundo das pessoas de mais idade, o que lhes ajudava a desde cedo tomar posição definida so­bre as grandes questões do momento.

Aprendendo a julgar os fatos com Dª Lucilia

Naqueles pós-jantares, se alguém, folheando o jornal, encontrasse uma notícia interessante, lia-a em voz alta aos demais, contribuindo para alimen­tar a prosa. Dª Lucilia, porém, para melhor formar seus filhos, não se contentava em ouvi-la de modo passivo. Pelo contrário, procurava explicar-­lhes a importância dos diversos fatos estampados nos diários. Quando ela re­putava que algo tinha especial inte­resse, dizia em voz baixa:

— Meus filhos, prestem atenção no que foi comentado agora.

Habitualmente, as matérias trata­das pelos mais velhos iam variando e, ao discorrerem sobre acontecimentos re­lacionados com os assuntos pouco an­tes assinalados por Dª Lucilia, ela vol­tava a chamar a atenção dos peque­nos, sempre em voz baixa:

— Meus filhos, isto também é mui­to importante.

E assim Dª Lucilia os educava, proporcionando-lhes de forma paulatina mais experiência e conhecimento, a fim de poderem relacionar os temas entre si e hierarquizá-los. Não tardou Plinio em perceber que os assuntos que Dª Lucilia mais comentava nem sempre eram os que saíam em manchete. Pelo contrário, não raras eram as notícias à primeira vista secundárias às quais ela dava mais importância. Isto despertou-lhe a curiosidade e o desejo de co­nhecer as razões desse modo de proceder. Sem muita dificuldade, concluiria ele: “Mamãe dá mais impor­tân­cia aos fatos que se relacionam com a Religião…”

Dª Lucilia costumava apresentar a seus filhos alguns personagens históricos que fossem dignos modelos a serem imitados. Por exemplo, o Rei Alberto da Bélgica, herói da Iª Guerra Mundial (ao lado). Abaixo, o soberano belga e sua esposa, a Rainha Elizabeth.

Personagens históricos, modelos a imitar

Ao lado da arte de conversar, do interesse por narrações de histórias e de acontecimentos grandiosos do passado, bem como do senso do maravi­lhoso que Dª Lucilia procurava despertar nas crianças, ela se preocupava igualmente em lhes apresentar mo­delos que lhes pudessem orientar os pas­sos. Foi assim que, em 1920, quando estiveram em visita a São Paulo o rei Alberto da Bélgica e sua consorte, a rainha Elizabeth, Dª Lucilia não per­deu a oportunidade de mostrá-los aos pequenos. Na ocasião, quando a co­mi­tiva dos soberanos passava pela Ala­meda Barão de Limeira, ela res­saltou aos olhos dos filhos a categoria, a distinção e o heroísmo daquele rei que, na Primeira Guerra Mundial, soubera defender com intrépida co­ragem seu país contra o invasor ale­mão. Fez notar também a postura correta da da­ma de honra da Sobe­rana e comentou: “É assim que se de­ve ser!”

Era, portanto, explícita a intenção de apresentar aos filhos tais persona­gens históricos como modelos a imitar.

Última fantasia

Nesses seus preciosos de­sígnios de formação, Dª Lucilia idealizava para seus fi­lhos (por ocasião dos ino­centes festejos de carnaval daqueles tempos) fantasias que correspondiam aos mo­delos a eles propostos por ela.

Plinio e Rosée, entretanto, no início da década de 20, já iam abandonando a meninice. As tragédias e desilusões da vida estavam cada vez mais presentes aos olhos dos jovenzinhos, não lhes cabendo mais algo que não con­dissesse com a realidade, como ­eram tais disfarces.

Todavia, estando a família em Águas da Prata na época do carnaval, houve uma festa no hotel em que se hospedavam, e se tornava um tanto pesado e desgracioso, ante parentes e conhe­cidos, não participarem da alegria ge­ral. Dª Lucilia então, habilidosamen­te, improvisou para seus filhos trajes típicos espanhóis. Seria a última vez que Plinio vestiria uma fantasia. Como nas ocasiões anteriores, ela soube dar-lhes um caráter muito mais real que ilusório.

Em consonância com aquela formação que lhes proporcionava, em or­dem a admirar a tradição, ela procura­va sempre, nessas circunstâncias, exprimir em trajes os valores de uma na­ção ou de um tipo humano determinado. No caso concreto, o que ela pro­curava incutir nos filhos de forma bem autêntica era a Espanha católica, das épicas touradas, dos grandes santuá­rios e dos guerreiros cristãos.

“Ah! Agora o mundo entrou em seu verdadeiro eixo…”

É por essa época, em que os trens se mostravam ainda vagarosos e pou­co estáveis, que um susto, seguido de aflição, não só marcará a pré-adoles­cência de Plinio, como deixará novamente transparecer o entranhado amor dele por sua querida mãe.

“Ah! Agora o mundo entrou em seu verdadeiro eixo…”, exclamou o jovem Plinio ao se encontrar novamente com sua extremosa mãe, em Águas da Prata. Ao lado, o hotel em que eles se hospedavam durante as estadas nessa cidade; acima, da direta para a esquerda, Plinio, Dª Lucilia, a irmã desta, Dª Zili, e Rosée, naquela estância termal

Dª Lucilia se encontrava em Águas da Prata. Iam ter com ela Dr. João Paulo, o filho e a governante deste. Ora, durante o percurso de trem, como acontecia por vezes, Plinio sentiu enjôo. Assim, quando de uma parada na estação de Campo Limpo, antes de Campinas, pediu licença ao pai para sair e tomar ar. Desceu à plataforma e pôs-se a percorrê-la tranqüilamente de uma ponta a outra.

De repente ouviu um apito e notou que o trem se punha em movimento. Correu e, quando ia saltar, sentiu que decididas mãos o seguravam vigoro­samente por trás, impedindo-o de realizar seu intento. Tratava-se da Fräu­lein que, muito perspicaz, também ­descera para não perdê-lo de vista.

— E agora, o que vamos fazer? — perguntou ele.

— Não tem nada. Vamos nos encontrar com seu pai em Campinas.

— Mas, como papai vai tomar contato conosco?

— Isto é muito simples. Vou falar com o chefe da estação. Ele passará um telegrama para a estação de Cam­pinas, pedindo que avisem “o senhor que procura um filho, que o menino está em Campo Limpo e partirá para lá no próximo trem de tantas horas”.

Plinio pensou: “Há o risco de papai adormecer e não perceber o trem passar por Campinas”. Mas isto não se deu. Ao chegarem a Campinas, encon­traram Dr. João Paulo tão satisfeito por ver resolvido o problema, que não continha seu afável e generoso riso pernambucano.

Passaram a noite num hotel daquela cidade e no dia seguinte Plinio se en­contrava entre os braços de sua mãe. De forma instantânea configu­rou-se em seu interior a idéia: “Ah! Agora o mundo entrou em seu verda­deiro eixo…”

Pêsames pela morte da Princesa Isabel

Ao longo dos anos, desde 1912, quando se conheceram em Paris, a mãe de Dª Lucilia manteve assíduo contato epistolar com a Princesa Isa­bel e com a dama de honra desta, a baronesa de Muritiba. Evocativas de outras eras, algumas dessas missivas foram cuidadosamente conservadas pe­la filha, possibilitando-nos degustar agora um pouco daquele elevado re­lacionamento.

As cartas endereçadas à matriarca dos Ribeiro dos Santos, em geral lhe chegavam às mãos no final do almo­ço. Era a hora em que Luís, o copeiro, como de estilo, as apresentava a Do­na Gabriela numa salva de prata.

Nessas ocasiões era comum esta­rem à mesa vários membros da família, que com indisfarçável interesse ou­­viam, por exemplo, Dona Gabriela anunciar: “Acaba de chegar uma carta da Princesa Isabel…”, e ler em voz alta as palavras da imperial signatária. Por vezes, como no caso a seguir, tra­tava-se de um simples postal:

Minha querida Dª Gabriela

Frente e verso do cartão postal acima transcrito, exemplo da assídua correspondência que trocaram Dª Gabriela, a Princesa Isabel e a dama de honra desta, a baronesa de Muritiba (no alto)

Muitíssimo lhe agradeço seu telegrama por ocasião de nosso grande dia 13 de Maio. A baronesa de Muritiba lhe dará noticias de nós todos.

Sua muito afeiçoada

Isabel Condessa d’Eu

Boulogne-sur-Seine, 4 de junho de 1917

Nesses momentos todos prestavam atenção, e era patente que seus espíritos ficavam tomados de um passa­gei­ro enlevo, do qual brotavam comentários elogiosos.

Próximo ao fim daquele ano, chegou a notícia do falecimento da Prin­­­cesa Isabel, que encheu de tristeza os corações, em especial o de Dª Lucilia. Sua mãe redigiu um telegrama de pê­sames para o Conde d’Eu e demais membros da Família Imperial: Quei­ra Vossa Alteza aceitar…

Plinio, que fazia sozinho, ha­via já algum tempo, suas incursões ao centro da cidade, foi incumbido de passar esse tele­grama. Décadas depois, ele ainda se lembraria da reação da fun­cionária ao ler as primeiras palavras da mensagem. Ela se vol­tou para uma colega e disse:

— Fulana, venha aqui depressa ver que beleza!… Veja que coisa linda!

Tratava-se presumivelmente de uma pessoa em dia com as modas e costumes mais avançados, e que, naquele instante, fora tocada por uma brisa de tradição. Aquelas simples palavras de pêsames dirigidas a um Príncipe cons­tituíam um símbolo dos tempos passados, que naqueles já tão modificados anos ainda exerciam sua benéfica influência.

Plinio e Rosée com trajes típicos espanhóis — a última fantasia que Dª Lucilia lhes confeccionou…

Não nos é difícil imaginar o apreço com que Dª Lucilia deve ter acompa­nhado tal correspondência, tão adequa­da a seus anelos de um mundo onde só reinassem benquerença, gentileza, elevação e bom trato…

(Transcrito e adaptado da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)