Virgen de las Cuevas (Espanha)

Em 13 de outubro passado, João Paulo II recebeu os participan­tes do VIII Colóquio Internacio­nal de Mariologia que tratava da espiritualidade de São Luís Grignion de Montfort. Ao saudá-los, o Sumo Pontífice re­cor­dou a época em que, jovem semina­rista, leu e meditou diversas vezes o “Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem”, de autoria desse Santo. “Desde então — disse o Papa — esse livro constitui para mim uma significativa figura de referência, que me iluminou em momentos importantes da vida. Montfort ajudou-me a entender que a Virgem pertence ao plano da salvação por vontade do Pai, como Mãe do Verbo encarnado, por Ela concebido por obra do Espírito Santo. […] Compreendi, então, que não podia excluir da minha vida a Mãe do Senhor, sem desatender a vontade de Deus-Trindade”.

Ardoroso devoto de Nossa Senhora, também Dr. Plinio conheceu em sua mocidade esse Tratado. Aderindo de toda a alma à espiritualidade montfortiana, pro­curou aprofundar e explicitar suas implicações até o fim de seus dias. Seus comentários nestas páginas foram redigidos poucos anos depois de conhecer aquela preciosa obra.

Hoje pretendo dizer algo sobre a doutrina que [São Luís Grignion de Montfort] expõe no seu Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem.

Penso não errar, afirmando que, em essência, o Tratado não é senão a exposição de duas grandes verdades ensina­das pela Igreja, das quais ele extrai todas as conseqüências necessárias, e a cuja luz examina toda a vida espiritual.

Estas duas verdades são a maternidade espiritual de Nossa Senhora em relação ao gênero humano, e a media­ção universal de Maria Santíssima.

Consentindo na Encarnação do Verbo em seu seio puríssimo, Nossa Senhora cooperou de modo eminente na Redenção do gênero humano…

Dada a espessa ignorância religiosa que reina entre nós, não falta quem suponha que a Igreja dá a Nossa Senhora o título de Mãe do gênero humano, simplesmente para descre­ver de certo modo os sentimentos afetuosos e protetores que Ela experimenta em relação aos homens. Como estes sentimentos são próprios às mães, por analogia, Nossa Senhora seria também a nossa Mãe. E nós seríamos, em relação a Ela, pobres mendigos que, na sua generosidade, Ela protege como se fossem filhos.

A realidade, entretanto, é muito outra. Não somos filhos de Nossa Senhora simplesmente por uma adoção afetiva. Ela não é nossa Mãe apenas no terreno fictício ou na ordem sentimental, mas com toda a objetividade, na ordem verídica da vida sobrenatural.

O pecado original e a Redenção

Antes do pecado original, nossos primeiros Pais, vivendo no Paraíso, foram criados por Deus para a glória celeste, que eles poderiam atingir transpondo os umbrais desta vida em um trânsito que não teria a tristeza tétrica da morte, mas o esplendor de uma glorificação.

O pecado original, entretanto, rompendo a amizade em que o gênero humano vivia com Deus, fechou aos homens a porta do Céu, e obstruiu o livre curso da graça de Deus para [nós]. Em outros termos, com a punição do pecado original, os homens perderam qualquer direito ao Céu e à vida sobrenatural da graça.

Se bem que não fosse extinto, isto é, que perdesse a vida terrena, o gênero humano perdeu, pois, o direito à vida sobrenatural. E ele só poderia readquirir tal vida se apresentasse à Justiça divina uma expiação proporcionada à enor­midade de seu pecado. (…) Ora, Deus é infinitamente gran­de. Por aí não é difícil avaliar a gravidade do pecado original. Uma ofensa feita ao Infinito só poderia ser convenientemente resgatada por meio de uma expiação infinitamen­te grande. E não está no poder do homem, ser contingente por natureza, e envilecido pelo pecado, oferecer ao Cria­dor um tão valioso desagravo. Os pontos que nos ligavam a Deus pareciam, pois, definitivamente cortados, e irreme­diável a decadência a que se atirara loucamente o gênero humano com o pecado.

Foi para remediar tão insolúvel situação, que a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, encarnando-se no seio pu­ríssimo de Maria Virgem, assumiu a natureza humana sem nada perder de sua Divindade, e o Homem-Deus assim cons­tituído se pôde apresentar à Justiça do Pai, como cordeiro expiatório do gênero humano.

… consumada no Calvário com o holocausto infinitamente precioso do Homem-Deus

Efetivamente, como Homem, Nosso Senhor Jesus Cris­to podia oferecer uma expiação que fosse realmente huma­na. Mas em virtude da dualidade das naturezas n’Ele existentes, essa expiação, se bem que humana, tinha um valor infinito, pois que consistia na efusão generosa e supera­bundante do Sangue infinitamente precioso do Homem-Deus. Assim, no Sacrifício do Calvário, Nosso Senhor apla­cou a justiça divina, e fez renascer para o Céu e a vida sobrenatural da graça a humanidade que estava absolutamen­te morta em tudo quanto se referisse ao sobrenatural. Se Deus, Uno e Trino, é nosso Criador, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, encarnando-Se, se tornou nosso Pai por um título muito especial, que é o da Redenção. Jesus, morrendo, deu-nos a vida sobrenatural. E quem dá a vida é verdadeiramente Pai, no sentido mais amplo da palavra.

Maria é autenticamente nossa Mãe

Se o gênero humano pôde beneficiar-se da Redenção, é porque a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade se fez homem, pois que o pecado dos homens deveria ser resgatado.

Ora, se Jesus Cristo assumiu natureza humana, fê-lo em Maria Virgem, e assim esta cooperou de modo eminente na obra da Redenção, transmitindo ao Salvador a natureza humana que nos desígnios de Deus era condição essencial da Redenção. De mais a mais, Maria Santíssima ofereceu de modo inteiro, e sumamente generoso, o seu Filho como vítima expiatória, e aceitou de sofrer com Ele, e por causa d’Ele, o oceano de dores que a Paixão fez brotar em seu Coração Imaculado.

Assim, pois, a Redenção nos veio por Maria Virgem, e sua participação nessa obra de ressurreição sobrenatural do gênero humano foi tão essencial e tão profunda, que se pode afirmar que Maria cooperou para nos fazer nascer para a vida da graça. Pelo que, Ela é, autenticamente, nossa Mãe. Autenticamente, acentuo, pois que não se trata aí de divagações sentimentais ou literárias, mas de realidades objetivas, que, se bem que sobrenaturais, não deixam de ser absolutamente verdadeiras por isso mesmo que são sobrenaturais. (…)

Nossa Senhora, ápice da Criação

De acordo com toda a doutrina católica, o santo Grig­nion de Montfort mostra, então, as grandezas de Maria Santíssima. Demonstrando que Ela é Mãe, o que há de mais conveniente e de mais necessário até, do que o co­nhecimento da suprema dignidade e da inexcedível mise­ricórdia que Ela possui?

São Tomás de Aquino diz que Nossa Senhora recebeu de Deus todas as qualidades com que seria possível a Ele cumular uma criatura. De sorte que Ela se encontra no ápice da criação, firmando seu trono acima dos mais altos coros angélicos, e sendo inferior apenas ao próprio Deus, que, sendo só Ele infinito, está infinitamente acima de todos os seres, inclusive de Nossa Senhora.

Quanto mais próximos estivermos de Nossa Senhora, ápice da Criação e canal de todas as graças, tanto mais suave e perfeita será nossa vida espiritual

Costuma-se dizer que Nossa Senhora brilha mais do que o sol, tem a suavidade da lua, a beleza da aurora, a pu­reza dos lírios, e a majestade do firmamento inteiro. Muita gente supõe que tudo isto não passa de hipérboles, [mas] estas comparações pecam por sua irremediável deficiência. O sol, a lua, a aurora, e todo o firmamento são seres inanimados, e estão, portanto, colocados na última escala da criação. Não é admissível que Deus os fizesse tão formosos, dando ao homem dons menores. E, por isto mesmo, a mais apagada das almas mortas em paz com Deus, tem uma formosura que excede incomparavelmente a de todas as criaturas materiais. Que dizer-se, então, de Nossa Senhora, colocada incalculavelmente acima, não só dos maiores Santos, mais ainda dos Anjos mais elevados em dignidade junto ao trono de Deus?

Um caipira que fosse assistir à solenidade da coroação do Rei da Inglaterra, voltando aos seus pagos natais, possivelmente não encontrasse outros termos para explicar a magnificência daquilo que viu, senão afirmando que foi mais belo do que as festas em casa do Nhô Tonico, o ho­mem menos pobre da região. Se o Rei da Inglaterra ouvisse isto, que outra coisa poderia fazer, senão sorrir?

Pois nós, quando procuramos descrever a formosura de Nossa Senhora com os termos escassos da linguagem humana, fazemos o mesmo papel… e Ela também sorri.

Não recorrer a Maria é “querer voar sem asas”

Não espanta, pois, que seja verdade de Fé que Deus se compraz tanto em Nossa Senhora, que um pedido feito por meio d’Ela é sempre atendido, ainda que não conte se­não com o apoio d’Ela. E que se todos os Santos pedissem alguma coisa sem ser por meio d’Ela nada conseguiriam. Porque, como diz Dante, querer rezar sem Ela é o mesmo que querer voar sem asas…

Assim, pois, todas as graças nos vêm de Nossa Senhora, e é Ela a medianeira universal de todos os homens, junto a Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas, se todas as graças nos vêm d’Ela, e se nossa vida espiritual não é senão uma longa sucessão de graças a que correspondemos, ou renunciamos a ter vida espiritual, ou devemos compreender que esta será tanto mais suave, mais intensa e mais perfeita, quanto mais próximos estivermos junto daquele único ca­nal de graça, que é Nossa Senhora. Deus é a fonte da gra­ça, Nossa Senhora o único canal necessário, e os Santos meras ramificações, aliás veneráveis e dignas de grande amor, do grande canal que é Nossa Senhora.

Queremos ter a graça inestimável do senso católico? Que­remos ter a virtude inapreciável da pureza? Queremos ter o tesouro sem preço, que é o dom da Fortaleza, queremos ser ao mesmo tempo mansos e enérgicos, humildes e dignos, piedosos e ativos, meticulosos em nossos deveres e ini­migos do escrúpulo, pobres de espírito se bem que jun­gidos às riquezas do mundo, em uma palavra, fiéis e devotos servidores de Nosso Senhor Jesus Cristo?

Dirijamo-nos ao trono que Deus deu a Nossa Senhora, e, no recesso amoroso da Igreja Católica, nossa Mãe, pe­ça­mos a Nossa Senhora, também nossa Mãe, que nos faça semelhantes a seu Divino Filho.

(Extraído do “Legionário” de 10/12/39. Títulos e subtítulos nossos.)