Na fixação da fisionomia da Igreja, os diversos tipos de raciocínio dos povos é o título de uma conferência feita por Dr. Plinio para jovens, da qual vimos publicando trechos desde outubro. Após elogiar o estilo de pensamento dos povos orientais, intuitivo e todo voltado para o sobrenatural e o místico, Dr. Plinio passa a analisar o raciocínio europeu e sua influência na Igreja dos primeiros séculos.

Faço agora o elogio da Europa. Nenhum povo antigo — a não ser primeiro os gregos e depois os romanos, continuadores da cultura grega —, se pôs a seguinte pergunta: “Este conjunto de seres em meio dos quais eu estou, os outros homens, as outras nações, a terra, os astros, etc., o que é tudo isto? Quem fez isto? Com que finalidade? Qual é o sentido da vida do homem na Terra?”

Em comparação com o que anteriormente tratamos, vê-se que são perguntas de um feitio de espírito diferente do oriental. Não é “radar”, nem “antena”. Formular tais perguntas é ter o espírito grandiosamente largo, é querer ver claro onde os pagãos antigos se tinham contentado em comer, viver e morrer. É o nascimento de algo mais nobre, é a procura da finalidade, da razão de ser, da linha, da trajetória, do dever.

Sobre uma porta de Babilônia, onde uma rainha se fez sepultar, estavam escritos esses dizeres: “Transeunte, na tua vida come, bebe e diverte-te, porque depois não há alegria nem dor”. São palavras desprovidas de qualquer nobreza. Pelo contrário, como é nobre o espírito que, podendo comer, beber e divertir-se, entretanto pára, pensa e pergunta: “Qual é o sentido de tudo isto? Aonde vamos?”

Simbiose entre a fé cristã e as riquezas da cultura clássica

Ao fazermos a história da filosofia grega, vemos que essa indagação vai nascendo como um sol, até ser respondida, primeiramente por Platão, depois, de modo mais adequado e com maior pureza, por Aristóteles. Este fala de um só Deus, causador e fim de todas as coisas, e de um sentido do universo todo para servir a esse Deus. Daí o dito de São Paulo, segundo o qual Deus tinha dado aos judeus a Revelação — Ele havia aparecido ao povo judaico como a nenhum outro —, mas aos gregos Ele dera a filosofia, quer dizer, esse raciocínio, essa análise tranqüila, essa classificação e essa conclusão.

Em ambos os estilos, Deus é glorificado, quer na linha “antena”, quer na linha da reflexão. Devemos amar os dois, mesmo porque, se quisermos corresponder à vocação que o feitio ibero-americano pede, temos de ser um resumo compreensivo de todo o passado para que dele nasça o futuro. Não podemos fazer exclusões, nem dar pontapés de desprezo em um ou em outro. Cumpre apreciarmos no seu devido valor tudo quanto é bom, para daí tirar o néctar de uma admiração una, e oferecer esse néctar a Nossa Senhora.

A Santa Igreja soube muito bem valer-se das riquezas da cultura clássica, tomando como base de seu pensamento e de suas leis a filosofia grega e o direito romano (“Filósofo sentado” e detalhe da “Escola de Atenas”, de Rafael)

Podemos, pois, imaginar como era no seu aspecto humano a Igreja do Império Romano, e qual sua diferença com a fase anterior.

Se Deus deu aos gregos a filosofia, deu aos romanos o direito. Este é tão parecido com os Dez Mandamentos que as Decretais de Graciano, uma espécie de compilação da legislação romana, foram incorporadas como Direito Canônico pela Igreja Católica e tinham vigência como lei de todos os povos cristãos na Idade Média. Onde não havia, sobre algum ponto, uma lei particular, o que valia era o Direito Romano.

De tal maneira a filosofia grega entrava em simbiose com a fé cristã, os Dez Mandamentos e a moral católica, que foi adotada por São Tomás como base para definir inteiramente o pensamento católico filosófico princeps. E o direito elaborado pelos romanos é o fundamento do direito das nações católicas. Ambos produziram isso quando ainda pagãos. Fato que bem precisamos frisar, para compreendermos a glória e a grandeza extraordinária, ao lado de mil misérias, da cultura clássica.

No arco romano, a expressão da alma católica ocidental

Como imaginar, então, o ambiente das catacumbas, a vibração da alma humana ali, ou já na Igreja liberta, no Império Romano do Ocidente?

Tenho a impressão de que o arco romano exprime perfeitamente os imponderáveis dessa atmosfera. Pode-se dizer que os arcos simbolizam uma civilização quase tão sintomaticamente quanto os olhos refletem uma alma. Tome-se o arco ogival, considere-se o arco árabe, evoque-se o arco romano. Certa vez, numa rua de São Paulo, deparei com a imitação de um portal japonês, muito modesta mas que exprime o espírito nipônico: aquelas duas pontas levantadas, vermelho, simples, ágil, meio desconfiado, reflexivo…

Os arcos, as portas, as janelas são os olhos de um estilo. Tomemos o arco romano: duas colunas que sustentam aquele semicírculo perfeito e harmônico. Está ali a lógica da civilização clássica, sem a presença imediata do sobrenatural, a pura lógica natural e terrena, retamente desenvolvida, na força e na coerência de sua trajetória, em que o ponto de partida é afim com o ponto de chegada e estaqueia num só triunfo.

“Colunas que sustentam semicírculos perfeitos e harmônicos…”

Imaginemos como eram as almas daqueles romanos. Estão ali, nas catacumbas, perseguidos, e começam a raciocinar, a teologizar, a analisar, e já vai surgindo um problema que, mais tarde, eles vão se pôr claramente: o do confronto com a fé daquela filosofia cheia de afinidades e heterogeneidades com esta mesma fé, e de como servir-se dessa filosofia como pedestal da Fé cristã.

O tipo do católico primitivo não é mais, então, à la São Charbel Makhlouf, mas é o homem que tem os pés na terra. É o católico das catacumbas, que vive neste mundo, que discursa (Charbel Makhlouf não discursa; seus olhos fazem poesia, nada mais), que interroga e increpa, que se move dentro da terra e é ativo, e que luta e impulsiona a história, enquanto os orientais parecem fixos na eternidade.

Tomem os mártires do Ocidente, por exemplo: eles entram na arena e fazem proclamações, increpam o imperador, passam descomposturas, ameaçam o povo de castigos divinos, fazem abrasadas orações públicas de adoração a Deus; ou então ajoelham-se e se deixam devorar pelas feras numa atitude de recolhimento, mas visando a influenciar a opinião pública, a obter a conversão de outros, almejando a ação e fazendo girar a roda da história. É uma outra impostação, que não encontramos nas figuras hieráticas tipicamente orientais do culto primitivo do catolicismo.

Vemos a Igreja sair das catacumbas e os pensadores católicos começarem a se desenvolver. E, entre eles, aquele que rivaliza com São Tomás de Aquino: Santo Agostinho.

Santo Agostinho, romano típico

Para dar uma idéia de como seria o romano católico, bem como a temperatura e o calor da Igreja naqueles tempos, vem a propósito analisarmos um trecho escrito por Santo Agostinho. É, a justo título, um dos mais famosos dele, conhecido como o “colóquio de Óstia”.

Depois de sua conversão, Santo Agostinho tornou-se um representante solar do pensamento católico latino (“Santo Agostinho lendo a Epístola de São Paulo”, por Gozzoli)

Antes de comentá-lo, importa registrar alguns dados sobre as circunstâncias nas quais o colóquio se deu, e ainda dizer algo sobre a pessoa de Santo Agostinho. Assim, podemos entender melhor o Ocidente católico que nasce. Teremos dado um primeiro passo, utilizando uma matéria-prima indiscutivelmente nobre, analisada a fundo, para aqui lhes transmitir o que eu desejava.

Santo Agostinho era de Cartago, urbe romana naquele tempo. A época em que essa cidade-Estado havia sido a grande inimiga da República Romana tinha passado. Ocupada e colonizada pelos césares, tornou-se parte integrante do Império.

Santo Agostinho teria composições étnicas não latinas? Não há elementos suficientes para se afirmar isso, mas é certo que estava inteiramente incorporado à cultura latina, da qual foi um representante solar. Como pessoa dessa cultura do povo-rei, da nação que tinha dominado a Terra, vemo-lo, através das obras dele, como um homem de alma possante.

Ele causa a impressão de ter sido fisicamente grande, sem chegar a ser um gigante, mas um desses homens que, quando se movem, parecem levar consigo toda a natureza. Pessoa com uma vida vegetativa tão intensa, que se teria impressão de que o reino mineral, o reino vegetal, o reino animal e o homem viviam nele com uma espécie de plenitude desconcertante. Senhor de um tom de voz grave e profundo, porém repercutindo longe como um desses sinos que podem acordar um vale ou uma cidade inteira. E com essa característica própria à alma dele (mas que seria bem da alma romana): as suas exclamações e os seus sentimentos que comoviam todo mundo a que ele se dirigia. Por causa disso, uma extraordinária capacidade de se comunicar, de penetrar nas almas dos outros, de fazê-las se mexerem como a dele. Predicado que o tornava um orador incomparável.

De momento, contudo, não contemplaremos o orador. Vamos considerá-lo enquanto um escritor que escreve suas memórias.

Ele começa por ressaltar que, quando pequeno, recebeu uma educação católica. As perseguições de há muito tinham acabado, o Império Romano todo era católico, mas Agostinho muito cedo prevaricou. O pai havia morrido, ele abandonou a mãe, meteu-se por vários lados, chegou a ingressar numa seita herética maniquéia, perdeu a Fé completamente e levou uma vida totalmente corrupta. Continuou assim até que a mãe dele, Santa Mônica, rezando e rezando muito, conseguiu a conversão do filho. Este mudou de maneira radical, correspondendo a uma conversão — se pudéssemos usar a palavra — gigantesca.

“Santo Agostinho, um desses homens que, quando se movem, parecem levar consigo toda a natureza”

Santa Mônica e ele, estabelecidos no norte da Itália, resolveram voltar a morar na África. Na viagem de retorno, presumivelmente em etapas não muito pequenas, chegaram até Óstia, um porto marítimo no local onde o Tibre desemboca no Mediterrâneo, e de onde partiam muitos navios para a África.

Presumivelmente também, deu-se o seguinte: os meios de navegação naquele tempo eram muito incertos, as naus pequenas e muito sujeitas às intempéries, de maneira que uma viagem nunca tinha dia fixo de chegada nem de partida. Ir da Itália a Cartago, naquela época, representava uma navegação a perder de vista mais incerta do que, por exemplo, se deslocar hoje do sul do Chile para a Sibéria, no oceano Pacífico.

Nos dias de Santo Agostinho, para se tomar um navio que fizesse um percurso bem mais curto, era preciso se apresentar no porto com larga antecedência, a fim de se certificar que a embarcação não chegaria antes e, em conseqüência, não partiria também antes da data prevista. Na falta de agências, era necessário ficar na fila de embarque…

Santo Agostinho conta, pois, que ele e a mãe, a caminho de Cartago, pararam no porto de Óstia. A presunção de que eles andaram em etapas grandes, deduz-se das próprias palavras do Santo, de que estavam descansando do trajeto árduo que tinham feito.

Uma vez ali, eles começam a conversar a respeito das coisas eternas. E é a mãe, sempre virginalmente católica, que nunca aderiu a heresia nenhuma, que trata com o filho convertido pelas lágrimas dela, mas já então um santo. É o diálogo de uma santa com um santo. E para eles, que não tinham “antena” a la Charbel Makhlouf, conversa proveitosa era filosofar e teologizar sobre o Céu. Ou seja, eles vão tratar do Paraíso Celeste, segundo o modo de pensar do ocidental. Porém, abordam o tema com tal alma e tal ênfase que, sendo tudo raciocinado, nada tem de racionalista. Mais tarde, Santo Agostinho escreveria um eloqüente relato dessa conversa.

Reservamos para o próximo número a transcrição da parte final desta conferência, na qual Dr. Plinio comenta o colóquio de Óstia.