Acima, vista da Praça do Patriarca, no centro antigo de São Paulo, em cujas imediações  Dr. Plinio instalou seu renomado escritório de advocacia

Por certo guarda o leitor viva lembrança da série de artigos em que acompanhamos uma das atraentes facetas da gesta marial de Dr. Plinio, qual seja a sua influente e bem-sucedida carreira advocatícia. Tivemos o ensejo de conhecer como ele organizou seu primeiro escritório, onde conquistou escolhida clientela entre as Ordens religiosas de São Paulo, além da própria Cúria Metropolitana.

Na conferência abaixo transcrita, Dr. Plinio novamente evoca alguns episódios e circunstâncias que marcaram de modo especial aqueles tempos de sua vida profissional.

Como já tive oportunidade de dizer, tinha eu um escritório de advocacia praticamente especializado em causas de instituições eclesiásticas, constituindo minha clientela as melhores ordens religiosas de São Paulo. A par destas, advogava também para algumas famílias tradicionais paulistas, o que muito contribuía — pelo favor de Nossa Senhora — para o renome e o êxito de meu estabelecimento.

Houve episódios pitorescos por onde, de ponto em ponto, esses grandes clientes vieram ter aos meus cuidados advocatícios. Assim, como já lhes narrei, apareceu a Cúria Metropolitana, com o Arcebispo D. Duarte assinando nosso contrato numa praia de São Vicente. Em seguida veio a Ordem Beneditina, com seus monges-procuradores, D. Desidério e D. Aidano, dois alemães de boa presença e inteligência privilegiada, amantes de longas e elevadas conversas. Por fim, a Ordem dos Carmelitas, uma dádiva inesperada que me foi oferecida pelo desembargador Primitivo de Castro Sete, um velho amigo de meu tio-avô, o Conselheiro João Alfredo. Importantes patrimônios que, de modos imprevistos, entraram para a minha gestão, tornando bastante movimentado e rendoso o meu escritório.

Na volta do trabalho, o repouso junto a Dª Lucilia

Rendoso e movimentado, sim, mas igualmente semeado de complicações e aborrecimentos. Somavam-se a estes os trabalhos e preocupações de minha presidência na Ação Católica de São Paulo, cuja sede se encontrava no mesmo andar que o meu escritório. Resultado, no fim do dia eu chegava em casa muito cansado, porque já havia dado aulas pela manhã, e ainda passava a tarde enfronhado nas questões jurídicas e nos cuidados da causa católica. Um cansaço, é preciso dizer, mais psicológico do que propriamente físico.

Por isso mesmo, tão logo eu entrava em casa e sentia a atmosfera do lar preenchido pela suave e atraente presença de Dª Lucilia, meu espírito sentia um grande refrigério. Em geral eu a encontrava sentada na cadeira de balanço que ficava na minha sala de trabalho, o mais das vezes rezando e desfiando seu rosário. Só o fato de estar junto a ela já me tranqüilizava, e o melhor do meu descanso consistia em me deixar ficar duas ou três horas ali, na companhia de mamãe. Era uma ação, digamos, repousante imediata.

“Meu descanso consistia em me deixar ficar na companhia  de mamãe.”

Foi igualmente Dª Lucilia a afetuosa protagonista de uma cena que sempre se repetia no meu quotidiano de advogado. Quando eu saía para o escritório, após o almoço, ela me acompanhava até a porta do elevador do prédio em que morávamos. Um elevador antigo e muito vagaroso para quem, como eu, com freqüência estava atrasado. Na pressa, impacientava-me, dava um beijo em mamãe e descia correndo as escadas. Então, enquanto eu vencia os degraus, ouvia a voz dela que me dizia lá de cima: “Filhão, cuidado com o corre-corre!”

Era um último sinal de carinho…

Prosas e contatos no movimentado escritório

No escritório, a partir de mais ou menos seis horas da tarde, tinha início o meu trabalho pessoal. Era quando apareciam alguns dos meus bons clientes, os quais sabiam que ali me encontrariam, e vinham mais para conversar do que para fazer consultas. Tratávamos sobre vários fatos, acontecimentos religiosos, políticos ou culturais recentes, um pouco de história, de filosofia, de teologia, etc. E como eu tinha o primeiro escritório de advocacia eclesiástica de São Paulo, o maior, com as principais ordens religiosas, sabia abordar os assuntos de religião com eles, e tudo isso lhes agradava.

Não raras vezes as conversas duravam duas ou três horas, com padres e com leigos das mais variadas nacionalidades — holandeses, alemães, italianos, um ou outro brasileiro, etc. —, que enchiam a minha sala. Desse modo eu ia fazendo deles amigos que adquiriam confiança na minha visão geral das coisas e a certeza de que, na hora “h”, o advogado deles apresentaria a matéria de suas causas com inteira consciência. E, graças a Deus, eu era muito responsável, tinha pleno conhecimento dos assuntos postos aos meus cuidados, ganhava as disputas para eles e deixava-os contentes com meu serviço.

“Sou naturalmente cerimonioso”

Vem a propósito recordar aqui um episódio pitoresco que se deu com um desses clientes que freqüentavam meu escritório para, a pretexto dos negócios, demorar-se em conversas com o advogado dele. Este senhor, homem de posses consideráveis e de boa índole, era o pai de um colega meu de Congregação Mariana, e nossas famílias já se relacionavam há algum tempo. Eu sempre retribuía essa cordialidade, recebendo-o do melhor modo possível no meu local de trabalho.

Certa tarde, porém, durante a famosa prosinha, ele me disse:

— Plinio, nós nos damos muito e somos tão amigos, apesar da diferença de gerações (ele, naturalmente, era bem mais velho), mas uma coisa eu noto: você não é natural comigo. Eu gostaria que você fosse inteiramente natural comigo.

Surpreso, perguntei-lhe com amabilidade:

— Mas, Sr. Fulano, o que o senhor entende por ser natural?

Ele definiu:

— Assim, mais sem cerimônia…

Eu intervim, também muito cortesmente:

— Sr. Fulano, vamos cortar a prosa. Eu sou naturalmente cerimonioso. O senhor quer me conhecer na minha naturalidade? A minha naturalidade é cerimoniosa. E se eu tiver com o senhor um trato sem cerimônia, estarei sendo artificial.

Dr. Gabriel Monteiro da Silva

Ele deu risada, e nosso trato continuou muito cordial até ele morrer. Aliás, tenho a certeza de que esta cerimônia no nosso relacionamento aumentou a confiança que ele tinha em mim, como advogado.

A estampa que acompanhou Dr. Plinio em sua vida profissional

Entre as recordações dos meus tempos de advocacia, algumas sobressaem pela importância do objeto a que estão relacionadas. Quero me referir à estampa do Imaculado Coração de Maria que adquiri num momento em que dispunha de poucos recursos e, portanto, não podia comprar coisa melhor (foto p. 31). Mas, por modesta que fosse, pareceu-me especialmente piedosa, exprimindo de modo tocante o insondável afeto de Mãe, a bondade, a misericórdia, a pureza e todas as excelsas virtudes que Nossa Senhora possui num grau inconcebível por nós.

É um quadro que A representa no seu resplendor, tendo atrás de si uma série de luzes que fulguram como que emanadas d’Ela, constituindo uma espécie de auréola em torno de sua cabeça. E Ela se apresenta segurando o coração com a mão, como se este houvesse rompido o peito para se mostrar aparente aos homens e oferecido pela Santíssima Virgem: “Ele é vosso; dou, se me pedirdes”. Portanto, é um convite à prece, à súplica ao Imaculado Coração d’Ela, feito por Ela mesma: “Sede devotos do meu Imaculado Coração e recebereis graças incontáveis.”

É uma estampa que representa Nossa Senhora cheia de personalidade, afirmativa, forte e declarada, aspectos estes que me agradaram e me fizeram decidir pela compra. Mandei guarnecê-la de moldura, e ela me acompanhou misericordiosamente em quase toda a minha vida de profissional: nos problemas, nas dificuldades, nos êxitos, enfim, em todos os altos e baixos de meus trabalhos como advogado. Eu olhei para essa imagem várias vezes em momentos de aflição, olhei também em momentos de piedade, como olhei em momentos de intensa alegria. E nos dois melhores escritórios que tive, ela esteve sempre atrás de mim, como que presidindo a tudo o que neles se passava.

O primeiro desses estabelecimentos situava-se na rua Quintino Bocaiuva, num dos prédios mais conceituados de São Paulo naquele tempo. Infelizmente, por motivos de má administração, esse conceito decaiu muito e o lugar se degradou a tal ponto que resolvi me transferir para outro edifício, na rua do Tesouro esquina com a rua 15 de Novembro. Um prédio de qualidade e categoria muito superiores, onde, com a ajuda de Nossa Senhora, me foi possível alugar duas salas bem amplas, em que nos instalamos, meu sócio e eu. Erigimos uma capelinha para uso comum dos dois escritórios, e o quadro do Imaculado Coração de Maria passou a presidir, ali também, nossos trabalhos e nosso apostolado.

Um encontro providencial

Quais foram os fatos que se deram nesse escritório e que mais marcantemente me vêm à lembrança, quando revejo essa imagem de Nossa Senhora?

Um desses episódios foi, na aparência, muito insignificante. No mesmo andar em que eu estava havia um outro advogado, mais velho que eu, porém ainda moço, muito vivo, amável, e que certa vez externou seu desejo de falar comigo. Nós nos conhecíamos apenas pela proximidade dos escritórios e por fugazes cumprimentos de estilo, mas nunca nos tínhamos apresentado um ao outro.

Ele entrou, nos saudamos, declinei o meu nome e ele o seu: chamava-se Gabriel Monteiro da Silva. Sentamo-nos e a primeira coisa que ele fez foi prorromper em elogios ao quadro do Imaculado Coração de Maria. Estava entusiasmado com a beleza e a unção da imagem. Em seguida, tratamos de qualquer assunto sem importância, e a conversa correu de maneira muito cordial, como costuma ser entre colegas.

Pouco depois vieram as eleições para a presidência da República, sendo eleito o Dutra. Para minha surpresa, o Gabriel Monteiro da Silva foi nomeado Chefe da Casa Civil do novo presidente. Surpresa, pois nunca imaginei que ele subisse assim como um rojão, de um momento para outro.

O fato é que, precisamente nessa ocasião, necessitei de um favor dele em algo que, para mim, se revestia de não pequena importância. Dirigi-me ao Rio de Janeiro, então capital federal, e solicitei uma audiência a ele. Recebeu-me imediatamente e atendeu sem delongas ao meu pedido. Tudo transcorreu com a maior facilidade, resultado daquele primeiro encontro que tivemos sob as vistas do quadro do Imaculado Coração de Maria…

Alguns meses depois, abro o jornal e vejo a notícia de que ele morrera num desastre de automóvel. E eu pensei, com profundo reconhecimento, que Nossa Senhora havia disposto a breve presença desse homem em minha vida, para que ele elogiasse o quadro d’Ela e me auxiliasse decisivamente num assunto de imensa importância. Sempre serei grato a ele por isso, e até hoje me lembro desse fato com boas recordações para ele. Rogo à Santíssima Virgem que o tenha consigo na paz eterna.

E aqui ficam mais algumas reminiscências dos meus tempos de advocacia, que se prolongaram por muitos anos até inícios da década de 60, quando passei a me dedicar exclusivamente aos interesses da causa católica.