J.-B. Fellens et L.-P. Dufour (CC3.0)

Dona Lucilia gostava de contar às crianças a história dos três mosqueteiros com todos os pormenores históricos, dos costumes e dos ambientes. Sobretudo Plinio ficava extasiado e fazia o contraste daquilo com o modo de viver moderno. Essas narrações foram um verdadeiro curso de Contra-Revolução.

As cogitações de Dona Lucilia eram estritamente as de uma senhora dona de casa de seu tempo. Ela gostava de ler coisas históricas, narrações literárias em francês, um pouquinho também em inglês, e depois nos contava adaptando ao modo das crianças. Por exemplo, uma obra interessantíssima narrada por ela: “Os três mosqueteiros”, do Dumas1. Este não é dos primeiros literatos da França, mas poderia ser considerado grande em qualquer país do mundo.

Um pretexto para descrever ambientes e costumes

WGA (CC3.0)
Ana d’Áustria – Museu do Louvre, Paris

Ela contava a história dos três mosqueteiros e por essa forma me iniciou muito na deleitação da douceur de vivre do Ancien Régime2. Dumas descrevia muito os personagens, os trajes, as atitudes, os diálogos de um modo bastante atraente, empolgante. A bem dizer, ele fazia do fato romanesco apenas um pretexto para descrever ambientes, costumes, etc.

Dona Lucilia contava então todos os pormenores históricos, pois nas obras do Dumas a narração dos costumes é muito fiel. Ela nos deslumbrava com as narrações. Eu ficava extasiado e fazia o contraste daquilo com o modo de viver moderno. Neste sentido, era um curso de Contra-Revolução.

Imaginem um menino de onze, doze ou treze anos indo assistir a uma fita de cinema cowboy. Tom Mix pulando em cima do cavalo, dando um tiro, aquela coisa que toda a vida detestei. Eu nem era capaz de acompanhar aquele corre-corre e pensava: “Esse imbecil não para, não senta, não pensa um pouco! Isso não é comigo.”

Então, comparava isso com um episódio descrito pelo Dumas como, por exemplo, o Rei Luís XIII de França vivendo no esplendor da sua corte no Louvre e nas Tulherias, palácios magníficos dos quais eu conhecia por pinturas e fotografias. O Palácio das Tulherias foi destruído, mas o Louvre é estupendo!

Richelieu era uma cobra humana

Punha-me a imaginar o homem vivendo naquele palácio. Ele era o rei casado com uma das mais belas princesas da Europa, Ana d’Áustria. Essa Rainha tinha uma birra com o Cardeal de Richelieu, do qual Philippe de Champaigne3 deixou quadros. Richelieu era um homem de uma finura, um esguio, um maleável: uma cobra humana. Há cobras feitas para se arrastarem pelo chão, mas existem outras que desafiam o homem, são ultraprestigiosas. Ele era uma cobra assim, revestido de púrpura e de solidéu.

Em certa ocasião Ana d’Áustria recebeu a visita de outro homem fabuloso, lendário, o Duque de Buckingham4, favorito do Rei da Inglaterra. E ele – esse episódio é censurável –, ao ver a Rainha, entusiasmou-se por sua beleza.

Luís XIII tinha dado para Ana d’Áustria uma joia chamada aiguillettes: uma pequena barra de ouro da qual pendiam pingentes de brilhantes. E o Duque de Buckingham arranjou um jeito de levar uma dessas aiguillettes como lembrança.

Ora, Richelieu, que tinha espiões junto a todo mundo, soube do acontecido. Então procurou o Rei e disse:

Peter Paul Rubens (CC3.0)
Luís XIII – Museu Norton Simon, Califórnia
Philippe de Champagne (CC3.0)
Cardeal Richelieu – Galeria Nacional de Londres

— Majestade, ninguém sabe o que houve entre a Rainha e o Duque de Buckingham. Ela entregou a ele uma das aiguillettes que Vossa Majestade lhe deu. Eu vos conto isso porque possivelmente ela poderá ter revelado para o Duque segredos de Estado. É bom Vossa Majestade ficar sabendo.

O Duque de Buckingham era o contrário de Luís XIII. Este era um homem apagado, tímido e não brilhava. O Duque era um homem brilhantíssimo, extraordinário. O monarca, por todas essas razões, ficou indignadíssimo. Richelieu disse ainda algumas palavras para cutucar, espicaçar mais o Rei, resolveu tirar desforra da Rainha criando uma ocasião para que ele a humilhasse diante de toda a Europa.

Luís XIII ofereceu um grande baile na corte

O monarca ofereceu um grande baile na corte e mandou um recado para a Rainha comparecer com todas as aiguillettes as quais ele lhe havia dado.

A Rainha sabia que lhe faltava uma. Porém o Duque de Buckingham estava na Inglaterra… Ela ficou apavorada porque percebeu logo a velhacaria do Cardeal Richelieu; chamou o herói do romance de Dumas, D’Artagnan5, e lhe narrou a situação. Ela tinha certeza de que o Rei, quando entrasse no salão, se dirigiria a ela – é natural, pois era a Rainha – como personagem primeiro do baile a quem ele saudaria. Nessa hora os cortesões todos e o corpo diplomático convidados para o baile fariam um círculo para verem o Rei e a Rainha se saudarem, e o monarca contaria com o olhar o número das aiguillettes portados por ela e diria:

Madame, falta-lhe uma aiguillette, onde está?

Ela diria:

— Senhor, eu não sei.

E ele responderia:

— Está aqui comigo…

O que equivaleria a dizer: “Eu sei de tudo.” Entendam a história.

Lampejo de outros tempos

Ela, então, pediu ao D’Artagnan para ir à Inglaterra e rogar ao Duque de Buckingham a aiguillette de volta; se a viagem corresse fabulosamente, ele poderia chegar a tempo para o baile.

J.-B. Fellens et L.-P. Dufour (CC3.0)
D’Artagnan com a Rainha

D’Artagnan saiu imediatamente de junto dela, tomou o cavalo e começou uma correria. Não preciso dizer que à correria eu não prestava atenção. “Levou tantas horas para ir de tal a tal lugar…” pouco me incomodo. O interessante é a chegada à Inglaterra.

Um pouco de atraso em ser atendido pelo Buckingham já lhe podia fazer perder a ocasião. Mas ele conseguiu com jeitos, nem me lembro mais quais, chegar a Londres na hora certa. O Duque de Buckingham entregou-lhe a aiguillette, ele a guardou com cuidado, retirou-se e voltou para a França a toda pressa.

Pouco antes de começar o baile – tinha que ser… – ele chegou, fez uma grande reverência, a Rainha o cumprimenta majestosa e lhe pergunta aflitíssima:

Monsieur D’Artagnan, o senhor trouxe o que lhe pedi?

Novamente grande reverência, e ele responde:

Madame, aqui está a aiguillette.

Ela pôs todas as aiguillettes e, como já estava na hora, partiu tranquila para o encontro com o Rei. Quando chegou, percebeu que o monarca tinha na mão um pequeno objeto. Ele a cumprimentou e disse:

Arquivo Revista
Plinio em Águas da Prata, aproximadamente em 1920

Madame, como são bonitas as aiguillettes em vosso peito!

— É verdade.

— Eu tenho mais uma para vos dar.

Ela colocou aquilo com elegância e naturalidade, o Rei convidou-a para dançar, e o Richelieu ficou sem jeito…

Não é verdade que uma narração assim nos dá um lampejo de outros tempos?

(Extraído de conferência de 4/9/1986)

1) Alexandre Dumas (*1802 – †1870), escritor francês.

2) Do francês: doçura de viver e Antigo Regime (sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII).

3) Pintor francês de origem flamenga (*1602 – †1674).

4) George Villiers, primeiro Conde de Buckingham e posteriormente Duque de Buckingham. Importante estadista inglês (*1592 – †1628).

5) Charles de Batz-Castelmore, Conde de Artagnan (†1673).