Um  aldeão espanhol, “gigantesco pobrinho de Jesus Cristo”

Mendigos ricos e nababos pobres. Seria possível, na vida real, situação tão contraditória? Dr. Plinio estava convencido de que sim.

Como há pouco girei muito largamente pelas ruas, não é de espantar que me venha ao espírito uma multidão de figuras humanas. Obviamente, as dessemelhanças entre elas são enormes.

Sem embargo das diferenças, desse conjunto se desprende uma marcada monotonia. É que, na imensa maioria dos casos, trata-se de gente estandardizada pela vida moderna das grandes cidades industrializadas. Mais ricos uns, outros menos, vão-se fundindo ao ritmo da máquina, no torvelinho de Mamon, os temperamentos, as tradições e as mentalidades mais diversas. Tudo tende a proporcionar a sobrevivência razoável, a saúde, e a estabilidade de todos. Neste torvelinho estão engajados até os nababos. E também a eles esse sistema de trituração de almas alcança e reduz psicologicamente ao pó da mentalidade comum.

Esforços para evitar a fome, os há muitos e, sem dúvida, com algum sucesso. Por exemplo, vão rareando sempre mais os tipos do gênero dos que passarei a descrever por pena de terceiros. Muitos leitores me dirão até que não existem mais.

A rútila descrição não é minha, mas de um escritor português ainda de nosso século, que alcançou em seus dias gloriosa nomeada. Leiamo-lo (em notas, o significado das palavras hoje menos conhecidas):

“À porta de uma tenda, apanhando os últimos raios de sol a descer, e sentado na terra, um mendigo de estrada come numa lata seu caldo esmolado. É uma figura de doido de fome: face escaveirada, olhos em desvario, grenha¹ densa de cabelo em pé. As cordoveias² do pescoço são de ferro negro, como o são os ossos das clavículas inteiramente escarnadas. Cobrem-no farrapos cosidos em farrapos. Nas pernas, umas como que polainas de tábua, atadas com guitas³, lembram os feixes de varas dos litores romanos; e pelos buracos das alpercatas a desfazerem-se saem os dedos negros dos magríssimos pés. Nas mãos, só pele e osso, segurando em garra a escudela4 e a colher de estanho, desenham-se as falanges e os nós dos dedos como os de um esqueleto articulado.

“Ah! os mendigos espanhóis!

“O lápis trágico de Gustavo Doré, na sua viagem em Espanha, desenhou alguns destes espectros de fome, envoltos em capas de farrapos e cobertos com largos feltros esburacados, mantendo, no entanto, através da maior miséria, um tal aprumo que dir-se-ia serem Grandes de Espanha ou senhores de Bazan a quem as maiores tempestades da vida, arrastando-os à última miséria, obrigando-os a estender a mão à esmola, não conseguem desverticalizar-lhes a espinha orgulhosa.

“E como a arte é um sol que tudo doira, esses frangalhos, nas mãos do desenhista das visões, do negrume e da luz, tomavam aspectos de grandeza.

“Os pobres espanhóis são trágicos! Sua miséria uiva, seu aspecto é pavor. Mas um halo de beleza cerca a cabeça deste desventurado: — a humildade, a resignação de toda a sua figura. Trapo humano, pobrinho de Cristo, crê, Jesus sorri para ti!” (Antero de Figueiredo, Espanha – Páginas galegas, leonesas, asturianas, vasconças e navarras, Livraria Aillaud e Bertrand, Paris-Lisboa, 1923, pp. 400-402).

Quanto poder evocativo, quanta riqueza de análise, quantos escachoantes coloridos na descrição!

Saliento no quadro, a meu ver mais próximo do real do que se fosse pintado a tinta, um traço que o grande Antero soube deixar bem claro, porém não incluiu na condensação de seu parágrafo final. É a riqueza de personalidade, a força de alma, a elevação de vistas, em síntese, a verdadeira fidalguia de estilo, que existe a par da “humildade” e da “resignação” de coração, neste gigantesco “pobrinho de Jesus Cristo” que ele tão bem soube observar e descrever.

Heroicamente de pé no próprio âmago de seu infortúnio, verdadeiro “caballero” da melhor cepa espanhola e cristã, este homem resplandece de nobre originalidade. Não hesito em acrescentar que também de augusta respeitabilidade. Mendigo de corpo, ele é um creso de alma.

E aos meus olhos, novamente cerrados, voltam as inúmeras caras mais ou menos nutridas, apressadas e aflitas que encontrei hoje ao longo do meu caminho. Como são pobres daquilo de que este pobre é tão rico!

É bem verdade que, se a qualquer desses açodados e estandardizados personagens do século XX se oferecesse de ser este sublime mendigo, eles recusariam horrorizados. Para eles, riqueza de personalidade, elevação de vistas, privilegiada força de alma, originalidade pessoal, respeitabilidade venerável, tudo isto vale menos do que uma vidinha calma, estável, farta. Ou então um vidão folgado, lauto e desanuviado.

Mas, se se oferecesse ao mendigo perder todos os seus tesouros de alma para ser um homem padrão da imensa e monótona colméia contemporânea, com quanta indignação ele o recusaria!

E, a meu ver, a opção do mendigo seria a certa. Só ela estaria verdadeiramente consoante com o senso católico. O mendigo é que teria razão.

(Transcrito da Última Hora, Rio de Janeiro, de 9/7/1984)

1) Cabelo em desalinho

2) As veias jugulares e os tendões do pescoço

3) Barbante fino

4) Tigela de madeira, pouco funda