Interior da Catedral de Notre-Dame de Paris

A inda muito moço, Dr. Pli­­nio despontara como no­tável orientador da juventude ca­tólica. Abordando com coragem te­mas às vezes espinhosos e polêmicos, ele utilizava as páginas do “Le­gio­ná­rio” para proporcionar uma for­mação adequada aos jovens. Exemplo disso são os dois artigos publicados em ja­neiro de 1932, nos quais comenta as obras de um gran­de escritor católico francês.

A literatura de nossos dias, acorrentada à sensua­lidade, está em franca crise de assuntos. Esta cri­se é, mesmo, o mais sério problema com que têm de lutar todos os literatos hodiernos. O cinema, o romance, a novela, a poesia, tudo enfim, es­tá assolado por uma tre­menda crise de temas. Os enredos giram eternamente em torno de casos amo­rosos. Ora, os aspectos amorosos da vida, por mais que nos modernizemos, só podem dar lugar a qua­tro combinações: ou são duas pessoas casadas, que abando­nam seus respectivos lares para constituírem juntas um ter­ceiro sobre os escombros da felicidade de seus primeiros côn­juges; ou é uma pessoa casada, que se apaixona por uma sol­teira, culminando a paixão numa ruptura dos laços conjugais; ou a ruptura não se dá, mas morre oportunamente o cônju­ge embaraçoso, de sorte que o viúvo ou viúva pode, mal fe­cha­do o caixão do defunto, atirar-se nos braços da outra; ou são duas pessoas solteiras que se tributam mutuamente um amor combatido barbaramente pelo “sogro” implacável.

J. K. Huysmans

Estes casos comportam evidentemente algumas varian­tes. Ou o crime corta o nó górdio de uma vida supérflua, que ameaçava durar demais; ou o adultério brutal põe termo a uma situação incômoda; ou o cônjuge supérfluo se suicida discretamente, para deixar o lugar a seu sucessor mais feliz.

Evidentemente, porém, estas combinações também são limitadas e se esgotam ao cabo de algum tempo. De tal sor­te que, quem se entrega assiduamente à leitura de roman­ce durante cinco anos, fica conhecedor de todo o estoque amoroso de nossas livrarias. E, com um pouco de argúcia, poderá ver, logo ao ler as primeiras páginas, qual o desfecho da história, desfecho este que depende das inclinações do autor, e dos sentimentos e posição que atribui aos personagens do romance.

Cena parisiense na época em que Huysmans residia na capital francesa

Um autor que combata este círculo vicioso, para ingressar em um campo novo, é, evidentemente, um Cristóvão Colombo do espírito, que abre para a inteligência continentes novos, mundos inexplorados. É o que se dá com Huysmans, um dos mais estranhos e admiráveis escritores do século passado [século XIX]. Seu mérito foi o de ter sa­bido confeccionar as mais espantosas obras literárias que se possam imaginar, abstraindo totalmente de com­pli­ca­­ções amorosas.

Igreja de Saint-Germain-des-Prés, uma das muitas visitadas por Huysmans, quando teve início seu penoso processo de conversão

J. K. Huysmans, literato naturalista, residente em Paris, encontrou-se a certa altura de sua vida mergulhado em tre­menda crise intelectual. Suficientemente lúcido para abo­mi­nar seu século, mas destituído de qualquer amparo sentimental em alguma amizade sólida ou afeição de família profunda, Huys­mans, ao mesmo tempo que se isolava cada vez mais do convívio de todos, fazia dentro de si um vácuo tremendo.

Tendo abandonado todos os seus amigos, destruído todas as suas antigas ilusões, perdido todos os seus parentes, vivia isolado em Paris, em pequeno quarto, onde passava dias infindáveis em companhia de um gato, a maldizer indefinidamente o século XIX.

Foi então que conheceu um pseudo-médico, des Hermies, fidalgo “déclassé” , que freqüentava rodas espíritas, de mágicos, astrólogos, etc. no “bas fonds” canceroso que exis­te em Paris.

A princípio, seduziu-o no amigo o cunho original e miste­rioso de sua vida. Esta sedução se acentuava à medida em que ia privando com as pessoas mais che­gadas a des Hermies, todas elas atacadas de um mis­ticismo acatólico e doen­tio, que exalava os miasmas da mais absoluta putrefação espiritual. Levado por suas inclinações de diletante, Huysmans não recuou à vista de tal ambiente.

Sobreveio-lhe, nessa ocasião, em condições misteriosas, um convite para que assistisse a uma “missa negra”, celebra­da em honra do demônio por um sa­cerdote privado de ordens sacras. Excitada fortemente sua curiosidade, aceita o convite e é conduzido a um lugar estranho, em que se amon­toam mulhe­res e homens carregados com o peso de todos os vícios e todas as baixezas. Sobre o altar, um Cristo rin­do, num rictus  ignóbil, ultrajante.

Toca uma sineta, entra o sacerdote. Começa a missa, entre contorções dos presentes. Quando chega no momento da consagração, o sacerdote pronuncia as palavras sacramentais banhado em suor, a voz repassada de ódio, o olhar carregado de estranhos eflúvios diabólicos. Distribui a Sa­gra­da Eucaristia aos presentes, que a profanam abominavelmente. Gargalhadas satânicas, blasfêmias tremendas, insul­tos implacáveis, nada se poupa ao Corpo adorável de Nosso Senhor.

Manifestações evidentemente diabólicas irrompem por todos os lados. É o triunfo de Satanás, glorificado pelos assistentes num delírio de abjeção e de infâmia.

Enojado, ferido nos poucos sentimentos que ainda lhe res­tavam, Huysmans se esgueira pela porta e foge espavorido.

Desde então, uma grande preocupação assaltou sua inte­ligência e acabou trazendo-o submisso aos pés da Igreja. Vira o demônio, vira o espírito das trevas urdindo contra a Sagrada Eucaristia as mais tremendas infâmias.

Ora — refletia ele —, se o demônio, de cuja existência já não posso duvidar, odeia a hóstia consagrada pelos sacerdo­tes católicos, é porque realmente ela é o Corpo de Cristo. Logo, a Igreja Católica é verdadeira.

Daí uma conversão dolorosa, penosa, que se vai arrastan­do através de inúmeras lutas, de combates sem fim, travados contra a carne rebelde às injunções da vontade, e o espírito rebelde às exigências da Fé. Quando entra em uma igreja, extasia-se diante das belezas da liturgia católica. Sua alma se eleva até os pés de Deus, ao som do órgão, no desen­rolar grave e compassado da música sacra. Poucas almas sentiram como a sua as belezas do cantochão. Sua des­crição do De Profundis , do Miserere  e da Missa de defuntos são as mais belas páginas que tenha lido em minha vida.

Ao fundo, Notre-Dame de Paris, num anoitecer de neve

Freqüentando assiduamente as igrejas de Paris, a todas surpreende nas suas horas de mais intensa sen­ti­mentalida­de. Ora é Notre Dame de Paris, detendo nas suas ogivas se­cu­lares uns restos de claridade coada através dos vitrais, enquanto some no céu, lentamente, tristemente, um sol crepus­cular. Ora é uma igreja operária, na qual observa detidamente as mulheres paupérrimas, os mendigos, os operá­rios exaustos, os miseráveis dos arrabaldes de Paris, que vêm dirigir a Deus, depois de um dia de intenso trabalho, preces infindáveis, enquanto, de dentro do tabernáculo, o Senhor invisível os consola repetindo mudamente o Sermão da Mon­tanha: “Bem-aventurados os que choram, os que sofrem, os que têm sede de justiça”…

No entanto, Huysmans ainda não ousou aproximar-se dos sacramentos. Recai no pecado com tal facilidade que nem se atreve a aproximar-se do tremendo tribunal da Penitência.

Resolve, então, ir fazer um retiro numa Trapa. Começa aí a parte culminante de seu segundo livro, “En Route” (“A ca­minho”), de que me ocuparei no próximo artigo.

(Transcrito do “Legionário”, nº 93, 31-1-32. O segundo artigo da série será reproduzido no próximo número.)