Dª Lucilia na década de 1950

Já vimos como, dos dons concedidos a Dª Lucilia pela Divina Providência, um dos mais insignes era o discernimento das psicologias, que a auxiliou decisivamente a educar e formar seus filhos, como também a perceber quem, entre os amigos de Dr. Plinio, o estimava de verdade.

Dois episódios demonstram a singularidade desse dom. Certa vez, Dr. Plinio convidou para jantar em sua casa um jovem colega dos meios católicos. Durante a refeição, Dª Lucilia observou discretamente o convidado, entrevendo algo de peculiar nele. Assim que o rapaz se retirou, ela disse a seu filho:

— Tome cuidado com aquela mão… O modo de ele pegar no garfo é muito esquisito…

Dª Lucilia relacionava, talvez de forma intuitiva, aquele modo “esquisito” com algum defeito moral não inteiramente explicitado. Uma certeza se firmara em seu espírito: aquele “amigo” não deveria ser merecedor de confiança. E, mãe zelosa, para isso alertara Dr. Plinio. O pressentimento dela foi em breve confirmado pelos fatos: algum tempo depois esse rapaz abandonou seus correligionários, causando grandes dissabores ao filho dela.

Noutra ocasião, Dr. Plinio convidou para almoçar em sua casa um de seus amigos mais chegados, pertencente às Congregações Marianas. Durante a refeição ouviu-se tocar o telefone. Poucos instantes depois, veio a empregada avisar que o Sr. X estava na linha, e tinha um assunto urgente a tratar com Dr. Plinio. Este interrompeu o almoço para atendê-lo. Como o aparelho ficava numa sala ao lado, Dª Lucilia e o visitante para lá também se dirigiram.

Mais de uma vez Da. Lucilia alertou seu filho para as inimizades que se  opunham a ele dentro do próprio Movimento Católico (Acima, Dr. Plinio recebe a visita do Almirante Yamamoto na sede do “Legionário”)

Já nesse tempo, a posição de intransigência em relação aos adversários da Igreja granjeara a Dr. Plinio não poucas inimizades, mesmo dentro das fileiras católicas, pois era grande o número daqueles que, para não lutarem, preferiam uma composição qualquer com o mundo. E nos assuntos que seriam tratados nesse telefonema jogavam-se altos interesses da Causa Católica.

O Hotel São Paulo, em Águas da Prata, e fac-símile da segunda carta transcrita abaixo

Dª Lucilia tudo observava em silêncio, com seu calmo e luminoso olhar. Em seu íntimo, certamente rezava por seu filho, para que o Sagrado Coração de Jesus o amparasse nessa dificuldade.

Terminado o telefonema, voltaram à mesa e a conversa retomou seu rumo. Quando o visitante se retirou, Dª Lucilia perguntou a Dr. Plinio:

— Você viu a reação dele enquanto você falava ao telefone?

— Não, mamãe, estava tão absorto na conversa que não prestei atenção.

Num tom de voz grave, porém repassado de solicitude, ela o advertiu:

— Meu filho, cuidado com este seu “amigo”… Sempre que você estava com a fisionomia preocupada, ele manifestava contentamento; quando você dava uma boa resposta a seu interlocutor e punha os pingos nos “is”, ele ficava indiferente ou demonstrava tristeza… Este não é seu amigo!

Não muito tempo depois, Dr. Plinio recebia desse “amigo” verdadeira “punhalada” nas costas…

Pode-se perguntar como Dª Lucilia, pessoa tão reconhecidamente bondosa, tinha uma desconfiança que a levava a discernir o mal através de detalhes na aparência insignificantes. De fato, o conceito de bondade que se espalhou em numerosos meios católicos brasileiros, em especial a partir do fim da década de 30, era bem diferente da verdadeira concepção dessa virtude, ensinada pela Igreja.

Desde essa época há a tendência de confundir bondade com uma complacência em relação a certas formas de mal, o que redunda quase sempre em fechar os olhos obstinadamente ante ele, como se não existisse.

Bem diferente era a alma de Dª Lucilia, na qual se reuniam, numa admirável síntese, a bondade e uma inquebrantável firmeza de princípios; a misericórdia e um aguçado senso de justiça; a afabilidade e uma inteira seriedade de espírito. Este conjunto harmônico de virtudes lhe propiciava, com certa freqüência, perceber o que as situações e as pessoas tinham de bom ou de mau.

Novamente em Águas da Prata

Até o fim de sua longa vida, Dª Lucilia suportou com suave resignação a incômoda doença de fígado, que freqüentemente a obrigava a guardar o leito por alguns dias.

A par dos contínuos socorros médicos prestados por Dr. Murtinho, este continuava a recomendar à sua paciente assíduas temporadas na estância termal de Águas da Prata, que começava a criar fama. No fundo, talvez julgasse surtirem mais efeito os meios de cura dados por Deus do que os medicamentos criados pela imperfeição do engenho humano, princípio este adotado também por Dª Lucilia.

É certo que nos períodos passados por ela naquela cidade, escrevia com freqüência a seus filhos. Porém, a voragem do tempo e as vicissitudes da vida apenas nos legaram escassas linhas de um epistolário sem dúvida abundante. De 1935, são estas duas cartas que até nós chegaram. Uma para Dr. Plinio, outra, poucos dias depois, para a filha, Dª Rosée.

Prata, 29-5-935

Filhão querido!

Graças a Deus e a Maria Santíssima, fizemos excelente viagem e aqui estou um pouco cansada, e tremendo de frio. O dia esteve lindo mas nunca pensei que fizesse tanto frio aqui! O jantar esteve bem bonzinho. A comida é simples, mas boa, pelo menos a de hoje. Eu disse ao gerente, logo que cheguei, que a força de hábito era o que me trazia ao Hotel São Paulo, porque tinha ouvido dizer que a comida estava muito ruim e que receava, se fosse assim, não poder agüentá-la.

Ele mostrou-se incomodadíssimo e me garantiu que seria tão bem servida quanto o permitissem as condições do lugar. Vou começar amanhã com o regime das águas do Paiol e peço a Deus ardentemente para que eu melhore bastante. (…)

[Com] minhas bênçãos e muitos beijos e abraços de tua mãe extremosa,

Lucilia.

Da. Lucilia (ao fundo) e o pequeno Plinio (à direita), numa de suas antigas estadas em Águas da Prata

Na carta a sua filha, entre os assuntos caseiros — consultas ao Dr. Murtinho e outros — é curioso notar a despretensiosa referência de Dª Lucilia à estima a ela devotada por uma senhora belga, hospedada no mesmo hotel.

Prata, 4-6-1935

Filha querida

Tive o prazer de receber anteontem tua carta e estranhei que não tivesses aludido a um cartão que te escrevi no dia imediato ao em que te mandei a carta, te pedindo referências quanto á minha passagem de volta, pois o chefe recolheu a que levava, dizendo ser aquela somente de ida, e que para a volta, deveria me munir de outra aqui, isto é, comprar outra.

Será possível que a [agência] esteja nos explorando por esta forma, ou terei-me enganado, e seja realmente preciso comprar outras? — Peço-te que me mandes dizer qualquer cousa a respeito.

Peço-te também que digas ao Murtinho que tenho tido estes dois últimos dias freqüentes vezes adormecimento nas mãos, e se ele crê que possa isso ser devido aos banhos, que acho tão agradáveis e que dizem ser indicados para fazer boa a circulação. Sentiria muito se tivesse de deixá-los. Estou começando agora (…) a sentir os bons efeitos da água do Paiol.

Teu pai ainda não me escreveu depois que aí está. Estou todos os dias à sua espera. Como vai a minha queridinha?¹ Tenho tantas saudades dela!

Tem aqui no hotel uma belga inteligentíssima, mas que não deixa de ser um pouco “toquée”², que tem uma prosa muito interessante, que me distrai muito, mas também me cansa um pouco, porque não quer me deixar, e até no meu quarto ela se intromete e não me deixa. Sua prosa é ótima, e sei que gostarias muito de ouvi-la sobre suas inúmeras e interessantes viagens. Quando a ouço, me lembro sempre de ti, principalmente quando fala sobre a Rússia. Ela mora na Argentina, e veio só fazer estação em Caldas, e depois em Prata. Regula em idade comigo, ou um pouco mais velha, mas é exuberante de vida! O marido e os filhos ficaram, mas parece que mesmo assim, adora os filhos que são cinco, três moços, e dois pequenos.

Metade do pessoal já foi. Somos apenas nove agora, e daqui a poucos dias vai nova turma. Quando chegar a vez da minha belga, vou achar bem falta!

E você, querida, como vai de saúde? E o Antonio, anda com algum novo bom negócio em vista? Dá-lhe por mim um abraço.

E a minha casa e criadagem, como vai? Já estou com muitas saudades de vocês e da minha casinha.

Com minha bênção para todos três, envio-te muitos beijos e abraços. De tua mãe extremosa,

Lucilia

(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

1) Referência à neta, Maria Alice.

2) “Desequilibrada”, em francês.