“A entrega das chaves a São Pedro” (iluminura medieval)

Eu te darei as chaves do Reino dos céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus (Mt. 16, 19).Instituindo São Pedro chefe da Igreja, Nosso Senhor lhe conferia este poder que está simbolizado no brasão papal pela chave de ouro e pela de prata. A primeira significa o governo exercido sobre a Igreja; a chave de prata, a autoridade indireta sobre a ordem temporal: sem governar os povos, o Papa os ensina, orienta, previne, repreende.

“Cristandade: a chave de prata” era o título de um livro cuja redação Dr. Plinio iniciara por volta de 1950, mas que, por determinadas razões, deixou inacabado. Entretanto, a parte concluída lança uma luz tão esclarecedora sobre a História universal, que, a partir de hoje, publicaremos diversos trechos dela nesta seção.

Quando, em 1942, preparávamos o livro “Em Defesa da Ação Católica”, fizemos a leitura dos principais documentos dos últimos pontífices, isto é, Leão XIII, São Pio X, Bento XV, Pio XI e, por fim, Pio XII, atualmente reinante.

A História nos documentos de Leão XIII

Tivemos então oportunidade de verificar que, nos atos do magistério supremo da Igreja, a História é objeto de numerosas e importantes referências.

Mais do que outros, dela se ocupou a fundo Leão XIII. Com efeito, o imortal Pontífice não só expôs em seus documentos numerosas e interessantes apreciações sobre diversos episódios históricos e vistas de conjunto clarividentes sobre quase todas as fases do passado da Igreja e da humanidade, como foi além, pois escreveu uma encíclica (“Parvenu à la 25e. année”, de 19 de março de 1902), inteiramente consagrada à narração da história da Cristandade, e outra (“Saepenumero considerienter”, de 18 de agosto de 1883), dedicada aos estudos históricos.

A par disso, os documentos de Leão XIII contêm muitos ensinamentos de valor sobre a Filosofia da História e a Teologia da História. Quase não há campo do estudo histórico de que o grande Pontífice não tenha tratado, marcando-o sempre com o traço do talento, e não raras vezes do gênio.

Caráter sistemático dos documentos de Leão XIII sobre a História

Confrontamos uns com os outros esses numerosos textos sobre a História. Causa impressão sua extraordinária interdependência. Percebe-se que Leão XIII não se contentou em considerar aspectos esparsos da História, mas que a estudou e analisou em todo o seu conjunto, elaborando a respeito dela o que se pode chamar um verdadeiro sistema.

Em outros termos, partindo dos dados fornecidos pela Filosofia e pela Revelação, Leão XIII mostra quais são os assuntos essenciais em torno dos quais se move toda a História; e, analisando in concreto os acontecimentos, suas causas e seus efeitos, põe em evidência que seu sentido último e mais profundo se encontra nas suas relações com esses assuntos essenciais.

O Papa Leão XIII, Pontífice de valor excepcional,deixou preciosos ensinamentos sobre a História

Outras vezes ele se compraz em partir dos fatos históricos in concreto, para os analisar a fundo, chegando assim ao terreno da pura doutrina, e mostrando como esses fatos confirmam os ensinamentos da Filosofia e as verdades da Fé. Por uma ou por outra via, Leão XIII procura demonstrar sempre algumas verdades essenciais que dão sentido, ordem, clareza, ao dédalo aparentemente inextricável do desenvolvimento histórico, ao tumultuar caótico das ações humanas ao longo dos séculos.

Pareceu-nos que seria interessante fazer um estudo conjunto dos textos de Leão XIII sobre a história, a fim de pôr em evidência o sistema a que se prendem. Para isso, o método mais prático consistiria, a nosso ver, em selecionar os textos essenciais, agrupando-os por assuntos, analisando-os, confrontando-os entre si, e pondo em realce os princípios que afirmam explicitamente, que logicamente se lhes deve pressupor, ou que deles se devem legitimamente deduzir. Postos assim em evidência estes princípios, em sua nudez, em sua clareza, em sua simplicidade, estaria conhecido todo o sistema.

Parece-nos de real interesse, por muitos títulos, conhecer o pensamento de Leão XIII sobre História.

Interesse do presente estudo: a) do ponto de vista biográfico

Antes de tudo, do ponto de vista estritamente biográfico. Pelo seu valor excepcional, Leão XIII tem suscitado inúmeros biógrafos, que procuram esquadrinhar todos os aspectos de sua personalidade. Ora, nunca se terá um conhecimento exato da mentalidade desse grande pensador e homem de Estado — “homem da Igreja”, melhor diriam os antigos — se não se estudar seu pensamento sobre a História. Com efeito, poucas coisas definem melhor a mentalidade de um homem do que o juízo que ele faz sobre seus semelhantes, sobre as idéias, as paixões, os interesses que os agitam, sobre a legitimidade e a eficácia dos meios de que se servem, sobre a autenticidade de seus êxitos ou a extensão de seus insucessos. Seus semelhantes, dizíamos, em toda a extensão da palavra, isto é, seus contemporâneos, como seus antecessores no que Calderón de la Barca chamou o “palco do mundo”. E tudo isso está amplamente contido no sistema histórico de Leão XIII.

b) para a História da Igreja

Leão XIII governou a Igreja de 1878 a 1903. Isto é, por 25 anos. Pontificado mais extenso do que o seu, só o de Pio IX, que reinou de 1846 a 1878, e talvez o de São Pedro.

Esta simples consideração bastaria para dar ao pontificado de Leão XIII uma importância particular, acentuada pelo fato de que seu governo eclesiástico transcorreu em uma época especialmente delicada para a vida da Igreja. Esta, com efeito, se encontrava em presença de um mundo novo, que se construía sobre a base dos princípios racionalistas, liberais e igualitários da Revolução Francesa.

Coube a Leão XIII a grave missão de fixar a atitude da Igreja perante o mundo novo, edificado sobre os princípios da Revolução Francesa (“A tomada da Bastilha”, em 1789)

Competia ao Papa fixar a atitude de uma instituição quase vinte vezes secular, como a Igreja, perante esse mundo novo, e traçar normas de pensamento e de ação para milhões de fiéis que, por toda a terra, aguardavam a sua palavra para se definirem em favor ou contra a nova ordem de coisas. Na verdade, Pio VI, e seus sucessores até Leão XIII, já se tinham defrontado com esse problema, e em face de um tufão revolucionário quase sempre aberto e desbragadamente hostil, haviam combatido com denodo. Pio IX, particularmente, lutara com êxito contra o espírito da Revolução, mas esse êxito criara um problema novo. Ao longo dos anos, alguma coisa — essencial ou não — na corrente revolucionária foi se transformando. Seus líderes, cada vez mais, recrutavam-se nas fileiras da burguesia rica, cultivada, poderosa, que dirigia os destinos da Europa. As idéias sustentadas em 1793 pelos sans culotte e pelas tricoteuses eram agora defendidas por gente de casaca e cartola. O mundo que essa gente organizava não era o do Terror; era, pelo contrário, um mundo burguês, e nesse mundo oferecia-se à Igreja uma situação de calma e liberdade.

Que fazer? Aceitar o pacto? Rejeitá-lo? Poucas vezes alternativa mais pesada em conseqüências se apresentou a um Papa. Tocou a Leão XIII fazer a opção.

Enquanto esse grave assunto ia tendo seu curso, no subsolo da sociedade humana outra revolta rugia. Era a grande insurreição operária, provocada pela paganização, pelas idéias de 1789, pela máquina que fazia ouvir de vez em quando suas cacofonias, a perturbar a placidez burguesa da Europa vitoriana, e a prenunciar as crises, as angústias, as tragédias do século XX.

No conflito entre capital e trabalho, como agir, que partido tomar? Outra grave alternativa que tocou a Leão XIII enfrentar.

De outro lado, a descrença se assenhoreava da alma e do coração das classes cultas. A ciência parecia abalar os fundamentos da Fé. Diante da maré montante do ceticismo, do indiferentismo, do positivismo, do criticismo, como agir, que métodos de luta ideológica empregar? Outro grave problema que tocou a Leão XIII resolver.

Enquanto essas difíceis questões desafiavam a argúcia do Papa, um vento de simpatia pela Igreja soprava sobre as nações cismáticas e protestantes, e negociações muito importantes se estabeleciam para a volta ao redil das ovelhas e venerandas comunidades cristãs do Oriente, bem como da poderosa e influente Igreja Anglicana. A facilidade das comunicações com a África e o Oriente abria para a Igreja a era das missões. E um renouveau católico intenso nas nações fiéis lançava os gérmens do apostolado leigo organizado, que São Pio X haveria de estruturar na Itália com o nome de Ação Católica.

Em face de tudo isto, a História nos conta como agiu o Pontífice. Mas por que fez? Por que não seguiu outras diretrizes concretas, neste ou naquele caso? O historiador não pode permanecer indiferente a este problema, que não se resolverá satisfatoriamente, se não se tomarem em consideração as concepções de Leão XIII sobre a História.

De fato, diante de uma situação concreta qualquer, um homem esclarecido não agirá sem lhe conhecer os antecedentes, os fatores que a fizeram como é, e que assim a conservam; o rumo para onde caminhavam as forças que lhe deram origem, e segundo as quais ela mesma provavelmente se moverá; os princípios, os interesses, as paixões de cuja pujança ela resultou; em uma palavra, as causas próximas e remotas dessa situação, a sua História, enfim.

Leão XIII terá, pois, tomado na maior consideração a História do mundo em que se encontrava, para fixar diante dele a sua própria conduta. E suas idéias sobre essa História devem ser tidas logicamente como elementos de primeira grandeza na explicação de todo o seu modo de agir.

c) na História do século XIX

Em nossos dias, os estudos de História religiosa são extraordinariamente apreciados, mesmo por historiadores pessoalmente indiferentes a qualquer religião. Compreende-se melhor do que há trinta anos a importância intrínseca do assunto. Não nos deteremos, pois, neste ponto. Cremos, contudo, que uma História do século XIX que não tomasse em consideração o papel muito considerável que nele exerceu a Igreja seria falha. Ora, para a determinação deste papel, Leão XIII é figura de importância evidente. O prestígio pessoal do Papa, mesmo fora dos meios católicos, concorreu para tornar ainda mais profunda a influência de suas atitudes. E daí decorre o interesse de conhecer as considerações históricas em que essas atitudes se inspiraram.

Para os intelectuais, estadistas e políticos contemporâneos, católicos ou não, revestem-se do maior interesse as considerações de Leão XIII acerca da História, analisada por ele com olhos de pastor e de guia.

d) para os políticos contemporâneos

A História tem sua face voltada para o passado. Esse passado, porém, Leão XIII o considerou também com olhos de pastor e de guia, procurando desvendar nele os prognósticos dos dias vindouros. Sua obra histórica termina com um conjunto de previsões que cuidadosamente anotamos. Ora, essas previsões se confirmaram geralmente, e dão aos políticos e estadistas de nossos dias uma noção impressionante sobre as verdadeiras origens de nossas atuais crises.

e) para os intelectuais acatólicos

Não se pode pedir, é claro, a um intelectual acatólico que aceite como suas, concepções que se firmam em doutrinas filosóficas e religiosas que ele não aceita. Mas nenhum homem de pensamento contestará ser da maior importância conhecer uma concepção histórica como a de Leão XIII, deduzida dos princípios filosóficos e religiosos que constituem a própria alma da civilização cristã.

f) para os intelectuais católicos

Para o católico, a fidelidade a esses princípios é um imperativo de honestidade intelectual. Pois, ou tem a Fé que professa, e a lógica o força a aceitá-la em todas as conseqüências; ou não lhe aceita as conseqüências e a lógica o obriga a repudiar os próprios princípios de que tais conseqüências fluem. Assim, um historiador católico que não leve em conta a doutrina da Igreja, ou muda sua concepção da História, ou não é verdadeiro católico.

Dizemo-lo especialmente com vistas aos professores, máxime os professores secundários, condenados tantas vezes a lecionar anos inteiros a História com base em compêndios inteiramente leigos e agnósticos. Sabem eles que seus alunos católicos não terão verdadeira formação histórica nesses compêndios, e muitos desejariam ardentemente um livro que lhes permitisse retificar nas aulas as lacunas dos manuais escolares. É que sua honestidade intelectual sofre pelo fato de se verem quase forçados a dar um curso que não toma em nenhuma consideração suas convicções nem as de seus alunos.

(Continua no próximo número)