Vaso cor-de-rosa diante do qual o pequeno Plinio (no destaque, fantasiado de marajá) costumava passar longos minutos, pensando no seu mundo de sonhos...

Uma alma eminentemente con­templativa, tanto no tocan­te às realidades sobrenaturais quanto às naturais. Este é, sem dúvida, um traço fundamental da personalidade de Dr. Plinio, que não pode faltar em nenhuma biografia que pretenda retratá-lo com fidelidade. Quando, já avançado em anos, falava da importância de uma contemplação do “pulchrum” do universo — reflexo das infinitas perfeições de Deus — acumulava uma longa experiência neste campo. Ainda criança, extasiava-se com a diversidade e beleza das cores que encontrava…

Lembro-me de algo que me acontecia muito, como a todo menino, sobretudo durante a hora de estudo. No colégio São Luís, da minha sala de aula era possível ver o céu. E, muitas vezes, os meus olhos fugiam para as pontas das árvores ver­des, balouçando com os ventos, e depois para o imenso azul. Era natural.

Com o vôo do urubu, imersão num mundo de sonhos

Em certas ocasiões eu via um uru­bu cortando o firmamento e não sabia tratar-se de um bicho feio como notei anos depois. Desse pássaro eu conhe­cia apenas o lindo perfil, seu vôo gracioso e seu esplêndido jogo de asas. É verdade que dele se vê apenas a silhue­ta, mas as silhuetas têm suas ele­gân­cias e o urubu era uma, deslisando pelo ar. De vez em quando voava com uma asa que parecia curta e a outra longa, ou então se virava e era a outra asa que crescia e a anterior parecia menor.

Quando percebia que ele planava e não batia as asas, eu pensava: “Como deve ser gostoso ser urubu! E como seria agradável se eu, a esta hora, pu­desse desprender-me desta car­tei­ra, deste papel onde, com uma letra pe­renemente feia, estou rabiscando coi­sas e sobre o qual, brincando com a bomba da caneta-tinteiro, deixo cair gotas de tinta e fico aborrecido…”

Então eu imaginava algo diferente. Como era menino, não sabia dar formulação ao meu próprio pensamento, mas o que me ia no espírito era: “Ah! Se eu pudesse sair voando pela janela, cortar o ar como o urubu, e morar den­­tro do azul muito tempo, sentar-me so­bre as nuvens, dormir um pouco sobre elas e brincar com o vento de tal ma­nei­ra que ele me levasse delicadamente para onde eu queria; ou se eu tivesse o prazer de fendê-lo sem gran­de esforço — isso seria uma diversão muito agradável, num mundo de sonho, mundo que não existe!”

Pedras, vitrais, olhares: a vida num ambiente mítico

Na mesma época, acontecia-me com freqüência outra situação que passo a descrever.

Aqui no Brasil é comum encontrar pedras que nada têm de precioso, mas cujo colorido é muito bonito. Desde ce­do, em passeios pelo campo, habi­tuei-me a notar essas pedrinhas e a catá-las. Minha idéia era a seguinte: como seria gostoso morar dentro de um ambiente que fosse todo da cor daquela pedra, da consistência que ela parecia ter, onde eu pudesse respirar e ficar sos­segado, sem ter de fa­lar com nin­guém, nem ninguém falar comigo. E colocan­do meu temperamento nas condições da pedra, assimi­lando tudo quanto tem na pedra, e por assim dizer, “esmeraldando-me”, “ru­­bificando-me”, “safiri­zando-me”, de ma­neira que algo da­qui­lo como que se entranhasse em mim e me enriquecesse com aquilo. Era para mim uma história de fadas sem fadas, em que a fada era o puro ambiente, era a pura cor dentro da qual eu mo­raria e, durante algum tempo, encontraria meu contentamento.

Daí o gosto que sempre conservei por esses tipos de pedras.

E daí, também, meu verdadeiro êxtase quando descobri que os vitrais de algum modo me satisfaziam esse desejo. Depois, quando descobri que certos olhares indicavam que determinadas almas como que vivem numa pedra ou numa água interior, ou num ar interior e que elas habitam em algo ou algo habita nelas — metaforicamente — que é como um líquido no qual elas existem e que traz fecundidade, força, serenidade, inspirações, vôos, que constituem uma espécie de redoma dentro da qual a pessoa vive. E essa idéia do viver em algo que não é o real, mas que poderia ser o real algum dia e no qual minha alma quereria viver, passou a constituir uma espé­cie de tendência freqüente no meu espírito.

O rio Arno, uma pedra líquida

Décadas depois, fui jantar num res­taurante ao longo do rio Arno, em Flo­rença. Os italianos, com muito bom gosto, fizeram um restaurante quase lacustre, porque a maior parte dele não estava construída em terra, mas num tablado cravado sobre o Arno. Tão perto da água, que se podia ouvir o ruído da correnteza bem abaixo de nossos pés. E, descuido bem latino, num certo lugar a prancha do chão estava meio rachada e os responsáveis se esqueceram de substituí-la. Então, pela fenda eu via o rio passar sob o piso do estabelecimento.

A água do Arno parece uma pedra líquida, não é transparente como podem imaginar uma pedra preciosa, mas opaca, de um verde que seria da cor de um azinhavre, pouco escura. Era como um rio de azinhavre correndo ali por baixo, que me dava uma impressão ultradeleitável.

As pedras que eu admirava, os vitrais com que me extasiava, eram para mim uma história de fadas sem fadas, eram as puras cores dentro das quais eu moraria e encontraria meu contentamento…

E eu, jantando sobre o Arno, um rio com sua densa história, com sua tradição, vendo- o correr e admirando aquela substância líquida, veio-me de ime­diato o pensamento: “Como seria bom morar dentro do Arno, quer dizer, num ambiente que fosse como o Arno!”

“A água do rio Arno parece uma pedra líquida; vendo-o correr e o admirando, veio-me de imediato o pensamento: como seria bom morar num ambiente que fosse como o Arno!”

Excelências simbolizadas no “jarro do Imperador”

Ainda uma reminiscência de menino. Havia em casa um vaso de alabastro, com alças e base de bronze, que pertencera ao Imperador D. Pedro II, donde o chamarmos de “jarro do Imperador”. Eu gostava imensamente de ficar admirando esse objeto, sobretudo o colorido dele que, ao menos para a minha ótica, situa-se numa po­sição dentro do mundo das cores que se pres­ta muito bem a uma espécie de carrefour , de cruzamento a partir do qual se parte para toda espécie de contrastes harmônicos. Então, das co­res de tonalidades mais carregadas para as cores de tons mais leves, diáfanos, das cores simples para as cores compostas, etc. Contemplando os matizes cromáticos daquele alabastro, eu podia imaginar toda sorte de cores possíveis. E, na linha dos meus sonhos de criança, também toda sorte de mun­dos, de realidades, de perfeições possíveis.

O cor-de-rosa e o branco se mes­cla­vam noutro jarro, de um nacarado mui­to parecido com o das conchi­nhas que eu encontrava e admirava nas praias de Santos e Guarujá. Ele tinha isso de próprio: fazia pensar em certas qualidades da matéria, pelas quais esta às vezes é mais excelente porque é dúctil, é mais excelente porque é flexível, é mais excelente porque é transparen­te. Ou, por oposição, será excelente por­que é indúctil, é inflexí­vel e é opaca. São formas de excelências diferentes da matéria. Po­demos imaginar então um objeto cuja perfeição estivesse na flexibilidade e leveza de um “quase não ser”, como podemos também pensar numa linda pedra, cuja excelência está exatamente no seu compacto magnífico.

Se um mero jarro de alabastro, se algumas tantas pedras semi-preciosas, se as cores dos vitrais ou das águas de um rio podem ser motivos de profundo deleite, qual será a satisfação no contato com Aquele que é tudo, e com a Mãe Santíssima d’Ele, obra-prima da criação?

(Ao lado, o “jarro do Imperador”)

O mundo de sonhos existe no Paraíso Celeste

Agora, essa manifestação de exce­lências contida naquele nacarado, trans­­­posta para a ordem dos seres vivos, levar-me-ia a pensar na possibilidade de existirem almas com uma força pé­trea, e almas com uma ductilidade e uma transparência de zéfiro. E na pos­sibilidade de haver puros espíritos diversos entre si, como são diversos entre si os mil estados da matéria. Ora, estes são os Anjos, habitantes do Céu.

E então aquele meu mundo de so­nhos, aquele ambiente mítico onde eu desejava morar não é quimera nem fan­tasia. É o Paraíso Celeste. Lugar que supera qualquer imaginação, lugar de inconcebíveis delícias, onde poderemos pas­sear pelos coros angélicos, povoados de espíritos “multicoloridos”, do­tados de excelências das quais as da matéria são simples imagens. Que coi­sa mais delicada e magnífica do que um ser que é magnífico enquanto delicado, ou, por outro lado, que é magnífico enquanto duro e rijo como o me­lhor dos aços?

No Céu encontraremos todos esses seres, e no contato com eles nos será dada uma satisfação indizível. Porque se um mero jarro de alabastro, se algumas tantas pedras semi-preciosas, se as cores dos vitrais ou das águas de um rio, uma vez analisados e admirados, podem nos ser motivo de profundo deleite, a quanto deleite pode pres­tar-se, então, o conhecimento de um espírito que eles simbolizam?

E qual será o deleite do contato com Aquele que é tudo? E qual será o deleite do contato com Aquele que é tudo e é Homem? E com a Mãe Santíssima d’Ele, obra-prima de sua criação?

Não se tem palavras para dizer…