O manifestante mais exaltado procura inflamar os ânimos de seus ouvintes: a imagem clássica da efervescência social...

Quantas discussões, quantos estudos e quantas pesquisas não se fizeram nos últimos cem anos, para procurar as causas da decadência da sociedade? Mas nunca se chega a  uma resposta satisfatória. Entretanto, as raízes do problema são facilmente identificáveis, como mostra Dr. Plinio.

O que é a “questão social” de nossos dias? Genericamente falando, “questão social” é todo o problema suscitado por alguma anomalia na vida da sociedade. Distingue-se de “questão política”, enquanto esta diz respeito à organização do Estado. Ninguém ignora que o mundo já conheceu muitas questões sociais que culminaram em conflitos: lutas entre plebeus e nobres, entre escravos e homens livres, entre nobres e burgueses na Idade Média e no século XVI, etc. Mas é um erro supor que a única forma de “questão social” é a luta entre classes. A corrupção dos costumes públicos e privados, a dissolução de todos os organismos que constituem a contextura social, a decadência da família, dos órgãos profissionais, das classes sociais, da probidade comercial, das artes, tudo isto pode constituir uma “questão social” monstro, que leve a sociedade à ruína. E uma questão social deste tipo pode existir, medrar, levar aos mais trágicos desfechos, sem que entre as classes componentes do organismo social haja a luta ou rivalidade.

Ruínas do Império romano: símbolo eloqüente da imensa destruição a que se entrega a sociedade contemporânea

Assim, pois, a luta de classes é uma forma de “questão social”, porém não é a única, e nem sequer é necessariamente a mais perigosa delas. O Império Romano do Ocidente, por exemplo, pereceu em virtude de uma imensa “questão social”: toda a sociedade romana, na Itália, como na Gália ou na Ibéria, estava radical e absolutamente podre; por isto e só por isto, conseguiram os bárbaros dominar os romanos; a questão social levou, pois, a sociedade e o Estado romano à ruína; nem por isto havia no Império uma luta de classes. (…)

Imenso fenômeno de destruição

(Nos dias que correm) sofremos de um fenômeno social de decomposição dos caracteres e das instituições, absolutamente tão vasto, tão profundo, tão virulento quanto o Império em seus últimos dias. Apenas, a agravar a situação, temos além de tudo uma luta de classes que o Império não tinha.

Temos também os bárbaros? Sim, e dentro das fronteiras. Em nossos dias, não há, como no tempo dos romanos, uma divisão entre o mundo bárbaro e o mundo civilizado. No mapa contemporâneo não existem, delimitadas com nitidez, as duas zonas anteriores à invasão: de um lado o território imperial onde a civilização decadente arrastava uma existência crepuscular; e do outro lado o mundo bárbaro que planejava a invasão, o saque, a universal destruição.

Católicos em procissão no norte da França: se alguém há que, tendo pertencido à Igreja, dela se separou odiando sua doutrina e suas instituições, esse é réu do Sangue de Cristo…

Hoje, os bárbaros vivem dentro de nossa civilização, e, mais ainda, são engendrados pelas próprias entranhas dela. Se nem todos são bárbaros, quase ninguém está inteiramente escoimado de um quê de barbárie. Todos os dias, quebra-se mais um pouco do que nos resta de nossa civilização cristã. Aqui, é um princípio que se nega; ali, uma tradição que se restringe; acolá, um costume sadio que se revoga. Hoje somos menos cristãos do que ontem, amanhã seremos menos cristãos do que hoje. Se tudo quanto se corrói, se arranha, se quebra, do velho edifício da civilização cristã, deixasse vestígios materiais, e se esses restos pudessem ser recolhidos e reunidos em um só lugar, poderíamos medir melhor com os olhos do corpo o que nem todo o mundo vê com os olhos do espírito. Notaríamos, então, com horror, a que proporções fantásticas chega este fenômeno de destruição. (…)

Na Igreja de Cristo, os caracteres de divindade refulgem como um sol. Se alguém há que, depois de ter recebido o santo Batismo e de ter professado conscientemente a Fé, ignora esses caracteres, tem culpa nisto. Se alguém há que, tendo pertencido à Igreja, dela se separou odiando sua doutrina, suas instituições, a civilização que engendrou, é réu do Sangue de Cristo. (…)

É doutrina católica que ninguém é tentado acima de suas forças. Deus dá a todos a graça necessária. Se, pois, um católico peca, peca livremente. A ocasião do pecado pode ser a fome, a luxúria, ou qualquer outra. Mas a culpa é dele. Assim, a razão de tantas apostasias está muito mais na debilidade das convicções e do fervor religioso de quem pecou, na sua falta de generosidade para com Deus. E consiste apenas secundariamente na ocasião que o levou ao pecado.

De tudo isto se conclui que (a “questão social”) e a luta de classes não resultam em nossos dias de causas apenas econômicas. Estas se incluem certamente no problema, não porém a título capital. E tantas apostasias não são senão um aspecto da enorme crise de caracteres contemporânea, que, em última análise, é uma crise religiosa.

À vista de tudo isto, como qualificar a ingenuidade dos que imaginam que, resolvida a questão econômica, estaria resolvida a questão social?

(Excertos de artigo do “Legionário”, nº 754, de 19/1/1947. Título e subtítulo nossos.)