A paz — na família, na nação, no plano internacional — todos a desejam. Mas onde e como obtê-la? Dr. Plinio dá-nos a resposta neste artigo.

Segundo São Tomás de Aquino, a paz é a tranqüilidade da ordem. Esta definição do Santo Doutor deixa entrever que há duas espécies de tranqüilidade: a que provém da ordem e a que provém da desordem.

A paz, fruto da ordem

Tome-se um adolescente saudável que dorme. Todo o seu físico está em ordem perfeita. Todos os órgãos funcionam admiravelmente bem. Nenhuma dor, nenhum malestar lhe perturba o repouso. A saúde — que é a ordem do corpo — gera nele uma tranqüilidade física que se traduz eloqüentemente pela placidez do sono. Fisicamente, o sono é, para este adolescente, uma situação de paz, pois que é um momento de tranqüilidade gerada pela sua ordem orgânica.

A tranqüilidade decorrente da ordem intelectual, moral e econômica existente num país é o que se pode chamar paz

O mesmo conceito se pode aplicar a um povo. Suponhase que nele tudo se encontre em ordem: as inteligências, pela posse segura e firme da Verdade, que é a Religião Católica; as vontades, pela sua vigorosa adesão à virtude que a Igreja ensina e ajuda a praticar; as sensibilidades, pelo completo domínio a que a sujeitaram a inteligência e a vontade; os corpos, pela existência de um alto padrão coletivo de saúde; a vida econômica, por um perfeito aproveitamento dos abundantes recursos naturais do lugar. Evidentemente, uma grande e benfazeja tranqüilidade reinará sobre toda a sociedade, como fecundo e feliz transbordamento da tranqüilidade interior de cada alma. Esta tranqüilidade completa, decorrente da ordem intelectual, moral e econômica existente no país, é o que se pode chamar paz: será a paz interior. A paz exterior se somará a esta, se também as relações do país com outros povos estiverem em ordem.

Assim, a paz é realmente a tranqüilidade da ordem.

Uma caricatura da verdadeira tranqüilidade

Retomemos o exemplo do adolescente. Em dado momento, durante seu sono plácido, alguma perturbação orgânica ocorre: será, digamos, uma nevralgia violentíssima. Imediatamente, com a cessação da ordem orgânica, desaparecerá a paz: o sono termina, e o paciente começa a dar mostras agudas de sua dor. É a desordem gerando a intranqüilidade. Imagine-se, porém, que a dor aumente tanto que chegue a causar um desmaio do paciente. A desordem orgânica terá chegado a seu auge, e a perda dos sentidos e a completa tranqüilidade do desmaio serão a consumação da desordem física.

Essa desordem, exatamente por se ter tornado muito aguda e ter com isto suprimido todos os meios de resistência, causará, com a aparente cessação da reação orgânica, uma tranqüilidade profunda. Esta tranqüilidade será o reinado da desordem, será o cúmulo da desordem, será a desordem erigida em soberana absoluta do corpo. Ela não será senão uma caricatura da tranqüilidade da ordem.

Em suma, o sono do adolescente, tranqüilo e saudável, e o desmaio profundo e perigoso que imaginamos em seguida, estão nos extremos opostos. Nos exemplos que figuramos, o maior bem orgânico do corpo terá sido a tranqüilidade da ordem; a intranqüilidade decorrente da desordem será um mal. Mas o mal supremo será, sem dúvida, a tranqüilidade da desordem, ou seja o desmaio, para não dizer a morte.

A tranqüilidade da desordem é o pior dos males

O mesmo conceito se pode aplicar à vida espiritual. Tome-se um homem de consciência limpa e reta: sua consciência estará em ordem, e esta ordem gerará nele uma tranqüilidade que se chama paz. O que não se tem dito e escrito sobre os encantos da paz de consciência! E no que consistem estes encantos, senão na suave e deleitosa tranqüilidade que a ordem origina? Se, por desgraça, a consciência deste homem passa a ser perturbada por uma ação má, esta perturbação suprime a ordem espiritual, e imediatamente a paz desaparece. É a luta terrível dos remorsos que cruciam a alma e, ou a elevam pela humildade e pelo auxílio da graça de Deus até as alturas de uma contrição, ou a abatem, pelo desespero, até os extremos a que Judas chegou.

Imagine-se, entretanto, que nesta alma desgraçada, pouco a pouco, os remorsos vão desaparecendo, até se transformarem em um vago rumor, que só de quando em vez perturba a consciência, logo abafado pelos ruídos das distrações mundanas. Evidentemente, o desaparecimento do remorso gera o desaparecimento da luta espiritual, e uma tranqüilidade embrutecida e opaca baixa sobre esta alma em que os últimos lampejos de virtude se extinguiram.

O risco é estabelecer a injustiça como regra fundamental de ação e norma básica das relações entre os povos

Nesta alma haverá novamente tranqüilidade. Mas uma tranqüilidade que, sendo o triunfo da desordem, constitui uma desgraça mil vezes maior do que a intranqüilidade das torturas de consciência, e se encontra no extremo oposto da tranqüilidade ordenada e feliz, em uma palavra, da paz de consciência autêntica, do homem limpo e reto de espírito.

Para resumir: a tranqüilidade da ordem é um grande bem, e só ela merece o nome de paz. A luta gerada pela desordem é um mal incontestável; mas o maior dos males será, certamente, a tranqüilidade da desordem, a tranqüilidade das consciências embrutecidas no vício, dos corpos desmaiados pela moléstia, dos cemitérios onde a morte campeia como soberana […].

Só haverá paz no mundo com a obediência à Lei de Deus

Estes conceitos merecem ser transpostos para o plano internacional. Só merece o nome de verdadeira paz a tranqüilidade decorrente da ordem das relações entre as nações. E como a ordem supõe obediência a Deus, só haverá ordem internacional quando houver obediência à Lei de Deus nas relações entre os povos. […]

Evidentemente, violações da Lei de Deus sempre as houve e sempre as haverá, com freqüência maior ou menor, na História da humanidade. Mas que se transforme a violação em direito, a desordem em hierarquia legítima e permanente, e se arvore como princípio básico e fundamental aquilo que é a negação radical e absoluta de toda a Lei de Deus, há nisto uma desordem monstruosa e profunda, com a tendência de se tornar definitiva, que deve apavorar todo espírito em que ainda bruxuleiam alguns lampejos, já não direi de senso católico, mas de simples e reta razão natural. Com efeito, o risco a que aludimos não consiste em uma simples injustiça. É na glorificação da injustiça como tal. É na consolidação da injustiça como regra fundamental de ação e norma básica das relações entre os povos.

A paz internacional será uma paz autêntica, se ela for a conseqüência da aplicação dos princípios da Lei de Deus à vida internacional. Realmente, a Lei cumprida gera a ordem, e a ordem gera a tranqüilidade, e esta tranqüilidade da ordem será a paz.

Será uma desgraça, já é agora uma desgraça catastrófica, que a tranqüilidade da ordem seja violada, e que esta violação traga lutas cruentas como aquelas que atualmente assistimos. A humanidade contemporânea pode ser comparada a um homem doente que se contorce tragicamente nos paroxismos da dor. E este espetáculo não pode deixar de concitar à piedade e à prece os espíritos compassivos.

(Excertos de artigo publicado no “Legionário” de 29/12/1940. Título e subtítulos nossos.)