Fotos: Arquivo revista

Diante das mais duras contrariedades que a Providência permitiu enfrentasse ao longo de sua vida, Dona Lucilia manifestou invariável tranqüilidade e profunda confiança no socorro do Céu. Nessas horas de sofrimento, recorda Dr. Plinio, dela nunca se ouviu uma queixa nem uma lamentação, pois tinha sua alma alicerçada nos mais altos valores espirituais que devem reger nossa existência neste mundo.

Em diversos episódios da vida de mamãe transparecia a serenidade de alma que a fazia considerar com igualdade de ânimo todos os altos e baixos, todas as vicissitudes da existência humana. Esse estado de espírito era nela uma constante, mesmo quando os caminhos da vida se fechavam, às vezes, de modo assustador. Com meu testemunho de filho, posso afirmar que a vi passar por grandes infortúnios, sempre conservando a tranqüilidade e a dignidade que a caracterizavam.

Fotos: Arquivo revista
Dona Lucilia aos 50 anos, e a casa de sua mãe, onde ela morou com o esposo e os filhos, antes dos reveses financeiros

Mansidão diante dos penosos reveses materiais

Por exemplo, ao se unir em matrimônio com meu pai, ela trouxe consigo um dote considerável, suficiente para fornecer ao casal e aos futuros filhos um confortável sustento. Porém, em razão de alguns maus negócios, esse patrimônio se perdeu, e fomos obrigados a restringir o teor do nosso cotidiano material. Mamãe não teve uma palavra de dissabor nem de recriminação, aceitando aquele revés com mansidão e muita confiança na Providência Divina.

“Mamãe não lamentou a perda do dinheiro na minha derrota eleitoral; para ela, o essencial da vida era valermos alguma coisa, conhecer-se e querer-se bem…”

Fotos: Arquivo revista

Fotos: Arquivo revista
Na página 8: Dona Lucilia em fins da década de 50; à direita: Dr. Plinio em 1934, quando deputado pela Constituinte

Mais tarde, por outras circunstâncias, ela ficou sem o pecúlio que herdara da mãe, ocasionando uma queda financeira tal que nos vimos ameaçados de mudar para uma casa bem simples. Ainda me recordo das palavras dela, ao me explicar a situação:

— Meu filho, você é muito novo, não tem idéia do lugar onde vamos morar. Venha até a janela comigo, e observe as casas do outro lado da rua. Na melhor das hipóteses, nossa renda será suficiente para habitarmos numa residência modesta como uma daquelas. Agora, temos de nos preparar para essa eventualidade, porque se Deus permitir, esta é a vontade d’Ele e assim se cumprirá.

Porém, dizia-me isto com toda calma e toda dignidade, sem nunca deixar de ser ela mesma. Atitude assaz louvável, se considerarmos que havia um outro aspecto nesse infortúnio, para ela também penoso: em certas ocasiões, por falta de dinheiro, mamãe tinha de se vestir de modo muito simples. Usava o melhor que tinha para ir às missas dominicais, e a nenhum outro lugar, porque não possuía indumentária conveniente para se apresentar numa festa ou num encontro social. Pois bem, ia à missa com seus trajes surrados e asseiadíssimos, inteiramente segura de si, serena, sem nenhuma agitação.

Bela generosidade materna

Em meio a essas contrariedades materiais, mamãe não deixava de nos estimular em nossos empreendimentos, sobretudo se ela reconhecia haver neles um esforço em prol dos interesses da Igreja. Assim se deu quando, após o meu mandato de deputado pelo Constituinte, lancei-me como candidato avulso nas eleições de 1934.

Após a mencionada perda da herança de vovó, nos mudamos de fato para uma pequena casa, de aspecto exterior muito modesto, e ainda mais acanhado no seu interior, com acabamentos que deixavam a desejar.

Ora, uma tia de mamãe, conhecendo nossa situação econômica e o estado da casa onde iríamos morar, presenteou Dª Lucilia com uma quantia para ajudá-la a decorar a residência o melhor que fosse possível. Mas, ao saber que eu disputaria as eleições, mamãe me procurou e disse:

— Meu filho, temos este dinheiro que minha tia nos deu para terminarmos a decoração. Entretanto, se você julgar que será melhor aproveitado para se candidatar, aqui está, é seu.

Naquela conjuntura, apesar de nossas prementes necessidades financeiras, achei de fato que seria melhor para a causa católica que eu tentasse vencer o pleito. Então lhe disse:

— Meu bem, eu aceito.

Peguei o dinheiro — uma boa quantia para a época — e gastei inteiro na minha eleição. Fui derrotado. Mamãe não me fez a menor referência àquele montante, nenhum choro, nenhuma lamentação. Nenhuma palavra. Eu a procurei:

— Dir-se-ia que a senhora não lamenta essa perda.

Ela, com toda a serenidade, me respondeu:

— Não, não lamento. O essencial da vida, meu filho, não é ser deputado, e sim o valermos alguma coisa, conhecer-se e querer-se bem.

Mais uma vez, vê-se o feitio de espírito tão elevado e tão sereno quanto podia ser o dessa mãe de família, colocada nos horizontes de suas vicissitudes domésticas.

No extremo da vida, a mesma toada de calma e dignidade

Quando já anciã, ela começou a ouvir menos e a ter as vistas empanadas por catarata. Numa época em que a remoção desse mal não era aconselhável em pessoas idosas, mamãe se percebia caminhando para uma espécie de sepultamento em vida, posto que privada da visão e da audição. Situação para ela bastante dolorosa, pois era uma pessoa muito comunicativa e, de um momento para outro, se achava completamente isolada.

Notava eu que essa circunstância lhe trazia tristeza e melancolia, mas nenhuma amargura nem queixa. Trilhava seu caminho com o passo igual ao de todos os momentos, e seguia em frente.

“Ela se alegrava com as coisas segundo uma ordem de valores na qual primava o lado religioso, sem descuidar dos interesses contingentes”

Fotos: Arquivo revista / M. Shinoda
Fotos: Arquivo revista / M. Shinoda

Afinal, depois de economizar algum dinheiro, foi-me possível comprar para ela um aparelho de audição. O começar a usá-lo representou para mamãe como um reflorescer: pôde ouvir melhor e, com isso, participar novamente das conversas e do convívio familiar. Sua satisfação era notória, porém não de uma alegria intemperante. A toada da sua vida continuou na mesma linha, na mesma tranqüilidade, na mesma dignidade. Por um princípio de fidelidade, não mudou em absolutamente nada: “Meu modo de ser, com a graça de Deus, é o que me parece mais conveniente a uma senhora católica. Sejam os outros de outra maneira, eu continuarei meu caminho e assim será até o fim. Ainda que custe isolamento e incompreensão, assim será até eu morrer. Com calma e tranqüilidade.”

Fotos: Arquivo revista / M. Shinoda

Fotos: Arquivo revista / M. Shinoda
Na página 10: Dona Lucilia aos 80 anos; acima: aspectos do apartamento da Rua Alagoas; à direita: Plinio, a prima Ilka, a Fräulein Mathilde e Rosée

Acima de tudo, os valores religiosos

Pela misericórdia de Maria Santíssima, nossa situação financeira melhorou e nos foi possível mudar para o bom apartamento da Rua Alagoas, num dos melhores bairros de São Paulo da época, onde mamãe poderia passar o resto de sua vida cercada de mais conforto e dignidade. Dona Lucilia o percebeu e ficou muito satisfeita, sem perder aquela igualdade de ânimo e a temperança de espírito que, a meu ver, significavam a perfeita proporção entre o acontecimento externo e a repercussão interna dentro da vida dela.

De maneira que ela vibrava em face das coisas na medida em que essa vibração deveria existir, segundo uma ordem de valores em que o religioso estava acima de tudo. Abaixo — embora ela não soubesse empregar o termo — vinham os valores metafísicos, em seguida os morais, e, por fim, os interesses contingentes da existência humana, tratados com o devido e legítimo cuidado.

Quanto a estes últimos, por exemplo, lembro-me de como ela se desdobrava para que minha irmã e eu tivéssemos o necessário para mantermos uma boa saúde, ou uma ótima educação, contratando inclusive a Fräulein Mathilde, preceptora alemã que tinha sido governanta em excelentes famílias européias.

Quer dizer, mamãe não negligenciava o contingente, mas este se mantinha no manso e calmo terreno das coisas contingentes. O essencial da vida era se preocupar com os valores mais altos, religiosos, conformes à Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Era conhecer-se e querer-se bem…

(Extraído de conferência em 24/6/1973)