Vista da cidade de Roma com a cúpula de São Pedro; acima, Dona Lucilia no ínicio dos anos 60

Como vimos anteriormente, Dr. Plinio se ausentara uma vez mais do convívio com Dª Lucilia, a fim de viajar para Roma, onde acompanharia as semanas iniciais do Concílio Vaticano II.

Arcos-botantes de benquerença

A Cidade Eterna se encontrava regurgitante de pessoas chegadas dos mais longínquos recantos do mundo. Era uma oportunidade única para alargar o âmbito de relações do jovem grupo dirigido por Dr. Plinio. Somando-se a isso os trabalhos diretamente concernentes aos debates do Concílio, não deveria sobrar muito tempo livre a ele para escrever cartas, pelo que sua correspondência nesse período é reduzida.

Em sua primeira missiva, comenta a visita feita ao Capitólio romano, importante edifício, situado numa belíssima praça. O conjunto é, por sua perfeita harmonia e proporção, dos mais belos do mundo.

Ao contemplar os cenários de Roma, Dr. Plinio não poderia deixar de pensar em sua extremosa mãe, cuja alma admirativa se encantaria com todas aquelas belezas

Naturalmente, ao contemplar o magnífico cenário da Roma dos Papas, não poderia deixar de pensar em Dª Lucilia, cuja alma admirativa se encantaria com tudo aquilo.

Se ela ali estivesse, percorreria devagarzinho aqueles espaços, apoiada no braço do “filhão”, e comentando, enlevada, este ou aquele aspecto — o belo azul do céu romano, os castelos de nuvens no horizonte a ressaltar a grandeza de milenares monumentos, o Tibre que vai serpeando vagarosamente por entre históricos edifícios e gloriosas ruínas — até que o declinar do sol lhe anunciasse o fim de tão agradável prosinha…

Roma, 22-10-1962

Luzinha querida do meu coração

Estou esperando ansiosamente uma carta sua. Em todo o caso, já soube por carta de um rapaz do grupo, que a Sra. recebeu bem a notícia de minha viagem: graças a Deus!

Aqui me tenho lembrado muito de minha Lú, e de sua conversinha que tantas saudades me faz, bem como de seus agrados, e de tudo o mais, de que sinto tantas saudades!

Especialmente, lembro-me da Sra. quando vejo certas coisas bonitas, de que a Sra. gostaria muito. Ontem, por exemplo, vi o Capitólio romano, que aliás já visitara em 1959. É estupendo. E logo pensei: como seria bom que a minha Lú do coração pudesse ver isto.

Escreva-me logo, minha Querida, falando-me de tudo a seu respeito, e especialmente de sua saúde.

Tenho trabalhado muito, comido muito, passeado um pouco em lugares lindos.

Mando-lhe junto as cartas a Rosée e Maria Alice. Assim a Sra. ficará com um noticiário completo.

Sou obrigado a interromper, pois são 16 hs. e às 17 terei uma reunião muito importante.

Minha querida, minha boneca, minha marquezinha: cuidado com sua saúde, e reze pelo filhão que a quer muitíssimo, lhe envia milhões de beijos, e lhe pede respeitosamente a bênção.

Plinio

Na carta seguinte, Dr. Plinio manifesta como sempre uma qualidade sem a qual um autêntico convívio não se estabelece: a abnegação. Dir-se-ia que, nesse inefável relacionamento com Dª Lucilia, a renúncia de cada um a si próprio reverte generosamente em benefício do outro; tal como os arcos-botantes de uma catedral que por si sós não se sustentariam, mas, apoiando colossais paredes, formam com elas um todo esplendoroso.

Manguinha de meu coração

Minha caneta azul está quebrada. Por isto, lhe escrevo em vermelho.

Gostei imenso de suas duas cartas. Tenho-as sobre meu criado mudo, para as ter sempre sob os olhos. E estou com umas saudades loucas de minha Mãezinha querida, de seus agrados, de sua presença, de sua prosinha, enfim dela, de tudo quanto é dela, e de tudo que a rodeia.

Poucas coisas me poderiam alegrar tanto, quanto saber que a Sra. vai bem. Cuide-se: nada de melhor a Sra. poderia fazer por mim. Melhor do que isto, só uma coisa: rezar por mim…

Não sei ainda bem o dia de minha volta, mas espero que não tarde.

Escreva-me logo, meu amor do coração.

Perdoe esta carta-relâmpago: estou ocupadíssimo.

Com mil e mil beijos, todo o carinho do filho que a quer imensissimamente, e lhe pede com respeito as bênçãos e orações.

P.

Cartas laboriosamente confeccionadas

Dona Rosée continuava a dar notícias a seu irmão, por breves que fossem, do estado de Dª Lucilia. Em 1º de novembro narrava ela de modo expressivo o quanto custava a sua mãe escrever aquelas comovedoras cartas:

Você a esta altura já deve ter recebido pelos menos duas cartas das três que [mamãe] escreveu. Vou mandar agora outra que ela estava confeccionando laboriosamente ontem! (Acabo de passar em sua casa para pegar a carta e não está pronta. Segue amanhã.)

Dois momentos da estada de Dr. Plinio em Roma: acima, a visita ao Capitólio; à direita, o jantar oferecido pelo Barão de Montagnac, no restaurante Ranieri (Dr. Plinio é o 2º da direita para a esquerda)

No local que mais fazia recordar a Dª Lucilia a presença de seu querido filho, o escritório do apartamento, ela estabelecia muitas vezes com ele seu contato epistolar. Já com a vista enfraquecida, ocupava tardes inteiras, pacientemente debruçada sobre as folhas de papel, nas quais a pena ia traçando com lentidão e esmero cada letra, para formar palavras carregadas de afeto e doçura, que ainda hoje encantam quem as lê.

Em resposta às duas cartas de Dr. Plinio acima transcritas, envia Dª Lucilia, com data de 1º de novembro, mais algumas linhas nas quais se percebe como estava preocupada com os grandes acontecimentos mundiais. Claro, sempre em primeiro lugar, por estar em causa a Igreja, sua atenção se voltava para o Concílio.

São Paulo, 1º Novembro 1962

Plinio tão querido de meu coração!

Parece-me estar tão, tão longe o dia de tua volta para os meus braços! (…)

Esta é a terceira carta que te escrevo. Mandei a segunda com a de Rosée e esta também vai em outra de Rosée. Espero em Deus que já estejas mais descansado, com bom apetite e cuidado com as perturbações de estômago!!

Não repares na minha letra, pois estou com reumatismo nos pulsos!

Com muitas saudades, beija-te e abraça-te muito, a tua velha Manguinha.

Em 4 de novembro Dona Rosée escrevia a seu irmão, enviando uma rápida mas boa notícia sobre Dª Lucilia:

Mamãe, graças a Deus, sempre ótima. Como o frio passou, até o reumatismo melhorou. Não lhe tem faltado companhia, mas naturalmente sonha com sua volta.

“Se for da vontade de Deus… que se faça!”

Em 10 de novembro de 1962, com a mente posta em Roma, Dª Lucilia iniciou nova carta, na qual deixou falar seu coração, transbordante de desvelo materno e de saudades, cujas intuições a propósito do regresso de seu filho não seriam desmentidas:

Filhão querido de meu coração!

Você não estará comendo um pouco demais nestes excelentes hotéis? — Não há o que me tire da cabeça, mas prevejo que ficarás por aí até o fim do Concílio e assim passarão em Roma o grande dia 13 de Dezembro — nosso grande dia!!! Será possível?

Estou te escrevendo às pressas, por isso deixo-te sem te dizer a falta enorme que me fazes!…

Chegue bem forte, sempre bom para a manguinha e até outra carta!!

Que Deus e Nossa Senhora te abençoem — Com todo o afeto te faz o mesmo, a mãe que te tem no coração,

Lucilia

Mais uma vez, pela escassez de correspondência de Dr. Plinio, pode-se deduzir como seu tempo estava tomado por intensa atividade.

A carta seguinte de Dª Lucilia, inacabada, é um carinhoso queixume por essa “imperdoável” falta:

São Paulo — 19-11-962

“Plinion”, meu coração, meu filho querido!

Estava tão aflita por falta de notícias tuas, quando um dos moços do segundo andar entregou a D. Carlota uma carta tua para me ser entregue. Radiante abro o envelope e vejo que não havia senão belos postais, para Yayá, os Languendoncks, a Zili e Nestor, e para mim… nenhuma palavra.

Como sabes vivo neste momento com o coração preso em Roma… recebo a carta… e nem um beijo, e nenhum abraço para mim…

[O que segue foi escrito por Dona Rosée]

Mamãe não acabou a carta e como estou com pressa vai assim mesmo.

Muitos beijos e bênçãos de tua mãe,

Lucilia

A grande expectativa pela chegada de missivas vindas de Roma foi amenizada por uma fotografia publicada na Folha de S. Paulo, na qual Dª Lucilia pôde rever a fisionomia de seu “filhão”, o que a levou a escrever novamente. Não se pode deixar de notar a despretensão de seu comentário. Nenhuma ponta de orgulho, nenhuma euforia pela honra de que ele fora objeto. Após referir-se à notícia de jornal, seus dizeres continuam serenos, tratando de assuntos caseiros, entre os quais ocupa sempre primeiro lugar seu amor entranhado pelo filho.

São Paulo — 22-11-1962

Filho tão e tão querido!!

Pelo que vejo, você ver-se-á obrigado a passar aí o dia 13 de Dezembro, dia de teus anos! — Sinto muito, mas se for da vontade de Deus… que se faça!

Sinto muito, mas que fazer? — O Castilho enviou-me ontem dois números da Folha de S. Paulo que reproduzia a fotografia de um grupo de amigos do Barão de Montagnac que lhes ofereceu um jantar honroso com a tua presença no restaurant “Raniere de Roma”. Vê se me escreves um pouquinho mais… sim?

Rosée tem me feito excelente companhia, e Maria Alice também, mas sempre às voltas com médicos, exames, jantares, em sua casa e para fora… isso cansa tanto! Yayá nas folgas do jogo vem sempre, às vezes para jantar. Dora e as meninas têm vindo menos com o avô doente!

Você recebeu as cartas que escrevi na semana passada para você?

Não tenho coragem de deixar de te escrever porque me parece que é te deixar um pouco mais longe!

Recomenda-me aos teus amigos.

Com minhas bênçãos envio-te muitos abraços, muitos e muitos beijos da tua “manguinha” que tanto te quer,

Lucilia

(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João Clá Dias)