Dr. Plinio aos 80 anos, durante uma conferência

Na concepção católica e orgânica de Dr. Plinio, toda exposição deveria ter a forma de uma conversa entre o conferencista e o ouvinte, e toda conversa, a de uma causerie: termo francês que indica um intercâmbio repassado de espírito, variedade e riqueza, sem a monotonia de certas aulas em que se é “obrigado a ingerir tablóides pré-fabricados”…

Em exposições passadas1 tratamos de alguns aspectos da arte da conversa, a qual se presta a muitos desdobramentos. Procurarei, portanto, abordar outras questões relativas a essa vasta matéria.

Necessidade de um acervo de temas

Para se conversar bem é preciso ter o espírito provido de diversos assuntos a se tratar. Nesse intuito, beneficia-nos o permanecer quieto durante algum tempo, represando na alma pensamentos, anseios, impressões que vão rendendo “juros” e alimentando a vontade de comunicá-los às pessoas.

Uma boa conversa nasce de pensamentos e impressões que renderam “juros”…

O primeiro movimento da conversa é, pois, uma sensação de excesso de coisas que, se ficassem apenas conosco, azedariam; porém, transmitidas ao próximo, proporciona-lhe alegria. Com isso de interessante: enquanto sentimos o desejo de expandir, temos também vontade de receber. Esse sobejo não é um fastio, mas uma superabundância que se quer compartilhar. E quanto mais se dá, mais se quer em troca: essa generosidade que nos leva a falar comporta um verdadeiro apetite de ouvir.

Daí o prazer da conversa entre dois indivíduos, na qual cada um — pelo imponderável do contato pessoal, do primeiro olhar, timbre de voz, de um aperto de mão, etc. — tem algo a dizer a seu interlocutor que não representará “sobras” de assunto, nem para Fulano nem para Sicrano. Há, pelo contrário, um encaixe entre os temas tratados por ambos, e essa complementação lhes favorece o gosto de conversar.

Enquanto um período de silêncio alimenta essa vontade de trato, a aula ou conferência (pelo menos as de tipo clássico), mesmo quando bem proferidas, raras vezes incutem esse desejo. Sai-se delas com a sensação de que se passou sob um rolo compressor, ficou-se ingurgitado de noções, tornando-se necessário respirar um pouco para digeri-las e depois comentá-las.

Sai-se de certas palestras e aulas asfixiados com a sensação de que passamos sob um rolo compressor

“Nas aulas do meu curso secundário, parecia-me que as matérias nos eram lecionadas como se fôssemos uma caixa de correio na qual se lança a correspondência”
Classe no Colégio São Luís, pouco depois da época em que o menino Plinio (no destaque) o freqüentou

Aulas compactas e indigestas…

Por exemplo, certos professores costumam ministrar aulas substanciosas, utilizando um artifício pelo qual entrouxa, dentro de uma hora, matéria que o espírito humano levaria cinco horas ou mais para assimilar. Sentimos como se houvéssemos recebido uma super-alimentação, não necessariamente por nos terem oferecido coisas muito nutritivas, mas em razão de o expositor ter obrigado nosso espírito a ingerir tablóides pré-fabricados com noções, definições, usando uma concatenação monótona, compassada, semelhante à de um homem andando pela rua com passos iguais, à maneira de um robô. Através da aula, o professor nos forçou a ouvir e até a saber o que ele quis. O resultado é a idéia de que toda a matéria exposta ficou sem vida em nossa alma.

Quando estudante, as aulas geralmente me causavam a impressão de coisas indigestas, semelhantes a blocos de metal compactos que eu precisava engolir. Vez ou outra, eram porosas, isto é, o professor deixava uma série de interstícios, comunicando suas observações pessoais, à medida que ia lecionando. Havia, então, uma interlocução do mestre com os discípulos sobre o tema, o qual não era martelado até penetrar nas cabeças dos alunos, causando-lhes sensação de asfixia.

De lá para cá, a fidelidade às teses da “RCR” 2 me leva a julgar que nada melhorou, e as aulas compactas continuaram…

Lembro-me do curso secundário no Colégio São Luís, em São Paulo. O início e o término de cada aula eram anunciados pelo toque do sino, e os mestres — padres ou leigos — se alternavam para lecionar sua matéria específica. Saía o de Geografia, digamos, entrava o de Português e, segundo o costume, os alunos se levantavam, rezava-se uma Ave-maria, após a qual começava a exposição.

A respeito dos professores — quando não se tratava de um penetrante jesuíta — vinha-me ao espírito a impressão curiosa de serem eles inteiramente impessoais: o de História fazia uma dissertação acerca da revolução industrial do século XIX da mesma forma como o de Química ensinava sobre o hidrato de carbono. Pareciam ser o mesmo homem, a mesma personalidade, um anônimo que trocava a fita de um aparelho de som. Não sentia eu sua presença, sua vibração, mas apenas que algumas noções eram introduzidas em minha inteligência, como se eu fosse uma caixa de correio na qual a correspondência é lançada.

Os mais velhos ainda mantinham a arte da conversa, mas os jovens já não sabiam saboreá-la

Se cada professor não se preocupar em dar à sua aula um tom de conversa, ele pode se tornar como um anônimo, igual aos outros, que apenas troca a fita de um aparelho de som…

Estímulo para o intercâmbio humano

Por que seria assim? A meu ver, pelo fato de o professor não ter a preocupação de dar à aula um tom de conversa. Se, quando estudante, alcancei o ensino moribundo, a conversa já estava praticamente morta, quase não se conhecia mais a arte de mantê-la. Os mais velhos ainda a cultivavam, mas meus coetâneos não tinham critérios intelectuais para acompanhar, pois não aprenderam a saboreá-la.

Houve um hiato, uma queda, um vácuo entre a geração dos meus avós e a minha. Aquela ainda conversava, a dos meus pais se achava numa transição e a dos seus filhos já não sabia fazê-lo.

Com muito pesar eu notava essa decadência, pois a conversa estimula a vontade de pensar e comunicar. Ela é um intercâmbio mental respirado, tonificante e verdadeiramente humano, que depois pode fomentar o desejo de consultar livros. Muitos julgam que se deve ler para em seguida conversar sobre o que se leu. É um erro, pois se deve conversar e depois ler a respeito do que se falou. Na conversa há assuntos que apresentam seus pontos atraentes e propiciam o anseio de consultar obras. A leitura, por sua vez, desperta o gosto da interlocução.

Não conheci meu avô materno, mas sim minha avó e seus irmãos, que freqüentavam a casa dela, onde eu residia. Na família de minha mãe morria-se tarde. E esses meus parentes, embora idosos, eram ainda fortes e lúcidos, e faziam entre si a conversa de outrora. Quando entrava alguém da geração de meus pais, eu previa uma certa queda no teor desse contato, com exceção deste ou daquele, que possuía na voz as cordas necessárias para tanger a lira da antiga arte de conversar. E se o novo conviva fosse de minha geração, a não ser algum jovem particularmente dotado, sabia que o nível cairia demais. Seria um tombo.

A observação dessas coisas me levou a apreciar a conversa, compará-la com algumas aulas anônimas do Colégio São Luís e a formar a idéia de que ela era a impostação natural do espírito humano. O homem, habitualmente, quando não está só ou fazendo leitura, está conversando.

Durante a causerie as mentalidades se visitam, entram em grande consonância

“Causerie”, uma conferência conversada

Houve um fator que me ajudou de modo extraordinário a degustar a conversa: um conjunto de revistas da Université des Annales, que minha mãe colocara fora de meu alcance, no escritório onde eu fazia sesta. Não porque a revista fosse má, mas para que eu dormisse, pois o médico o recomendara. Porém, assim que eu me pilhava na penumbra, arrastava-me até o lugar em que estavam guardadas e começava a folheá-las. Os artigos eram transcrições de conferências típicas da França de então, denominadas por uma palavra que não tem tradução inteiramente adequada para o português: causerie.

Causer significa conversar. A causerie é uma conferência proseada, em que o orador cometerá uma gafe se os ouvintes não tiverem certa sensação de estarem dialogando com ele.

Não se elimina a distância entre o expositor e o auditório, mas aquele sabe, ora ir até este, ora trazê-lo até si, sem que ninguém mude de cadeira. E o ouvinte, sem perceber, ora se sente muito engajado no que diz o causeur, o conversador, ora, pelo contrário, tem a impressão de estar o proseador no fundo da alma dele. Cada um se sente no íntimo do espírito do outro, e durante a causerie as mentalidades se visitam, entram em grande consonância. São visitas de personalidade a personalidade, em tom de conversa, em que um só fala, mas os outros participam pelo olhar, pelos gestos e atitudes.

“Se o conferencista, em geral membro da Academia Francesa de Letras, evocava Francisco I, surgia um ator trajado como um príncipe da Renascença, recebido com aplausos da platéia”

Acima, Francisco I; na página anterior, Dr. Plinio durante uma conferência

Em português o vocábulo correlato a causerie seria “palestra”. Contudo, não me parece que este tenha o espumante do termo francês, o qual representa algo mais flexível do que suponho ser a palestra italiana ou brasileira, antes conferências sem espartilhos, enquanto na causerie há um máximo de engajamento, de flexibilidade, de espartilhos, com extrema categoria…

A Université des Annales publicava causeries de membros da Academia Francesa de Letras — portanto, expositores sugestivíssimos, espumantíssimos — os quais ilustravam suas conferências com artistas da célebre Comédie Française: estes, vestidos com trajes de época, passavam pelo palco nos trechos indicados pelo acadêmico, e faziam uma grande reverência ao público.

Assim, se o conferencista evocava Francisco I, surgia um ator trajado a la príncipe renascentista, chapéu baixo ornado de pluma, e, com gestos característicos, dirigia um cumprimento à platéia. O mais das vezes recebido com palmas, pelo acerto da cena. Isso não pode ser comparado à televisão, nem mesmo ao teatro. É causerie.

Noutras ocasiões, para ilustrar a exposição, uma pianista famosa tocava músicas num piano de cauda, com som cristalino. Naturalmente, isso não figurava no texto, mas dizia-se: “a festejada pianista Madame Tal, tocou tal peça”. Tudo propiciava uma idéia soberana do que era a causerie.

A boa conversa deve lembrar a “causerie”

Portanto, a conversa deve ser de tal maneira que lembre vagamente a causerie francesa. E nunca um mero falar espontâneo, desabotoado, com uma intimidade sem respeito, que a torna repugnante. É necessário que seja agradável, afável, respeitosa; e a intimidade, cortês e distinta. Tais valores já estavam muito decadentes na minha época de moço. De lá para cá…

Eu tinha imenso gosto pela conversa entendida conforme expliquei. Ela supunha um tempo anterior de acumulação de flexibilidade, recursos mentais, e a vida que se levava naqueles anos era muito condizente com isso. Basta lembrar que eram numerosos os quartos de dormir nos quais, além do mobiliário comum — cama, mesa de cabeceira, cadeira, etc. — havia um sofá para a pessoa reclinar durante o dia e ficar pensando sozinha. Depois, quando ela ia conversar, tinha muita coisa a dizer… v

¹) Cf. “Dr. Plinio” números 76, 80, 82.

²) Revolução e Contra-Revolução, obra escrita por Dr. Plinio em 1959.