Não obstante as falhas do paganismo, um pagão pode, potencialmente, amar mais a Igreja do que um batizado tíbio e conhecedor da doutrina católica
Anchieta catequisa os índios - Colégio São Luís, São Paulo

Ao contrário de certos pensadores que procuram enaltecer o papel exclusivo do raciocínio no conhecimento humano, Dr. Plinio nos demonstra a íntima relação entre o “amar” e o “conhecer”, seus graus e modalidades diversos, os quais devem convergir para um amor único — de todo o nosso coração e toda a nossa alma — à Santa Igreja e a Deus.

Consideramos em anterior exposição o papel da simbologia e o da inteligência na construção do conhecimento humano, e como a mentalidade distorcida do “ploc-ploc”1 o leva a desprezar o amor aos símbolos para se ater somente ao exercício “geometrizado” e frio do intelecto.

Relação entre amor e conhecimento

A esse propósito, poder-se-ia observar que é por demais repetida a sentença: “ninguém ama o que não conhece”. Esse princípio não é falso, porém torna-se necessário explicar o significado de seus termos.

Muitas vezes, o amor é mais intenso por aquilo que se conhece de modo insuficiente e cuja falta sentimos, do que por algo conhecido inteiramente.

Não raro, pode ser mais intenso o amor por algo que se conhece pouco

Por exemplo, um cego de nascença pode ter mais apego à vista do que um homem com visão normal. A tal ponto que se propusermos a ambos: “ofereçam a Deus o sacrifício de nunca ver, pelo êxito da causa católica no mundo”, o primeiro talvez não aceite, enquanto o segundo seria capaz dessa imolação. Ora, como o cego pode amar tanto aquilo que nunca possuiu? A razão é porque há nele um certo “ver”, ao sentir a carência da vista.

Entretanto, abstraindo de tudo isso, os de mentalidade “ploc-ploc”, de maneira apressada e sem procurar os matizes das palavras, gostam de dizer em latim: Nihil volitum nisi praecognitum2

Mas, o que significa aqui o volitum [querido] e o praecognitum [conhecido anteriormente]? Não se pode dar o caso de um pagão, apesar das lacunas do paganismo, amar potencialmente mais a Igreja do que um batizado tíbio, perfeito conhecedor da doutrina católica?

Lembra-me, nesse sentido, o fato narrado nas crônicas do Bem-aventurado José de Anchieta: um velho índio, vivendo nas matas brasileiras, passou anos e anos esperando pelo apóstolo jesuíta. Este por fim o encontrou e o batizou. Logo depois, o silvícola entregou sua alma a Deus, nos braços do santo missionário.

Então, às vezes uma pessoa conhece incentivada por uma lacuna que movimenta a inteligência. E quase se poderia dizer que o desejo de conhecer acaba produzindo o conhecimento. Ou seja, depende do modo de empregar as palavras “conhecer” e “querer” no sentido filosófico ou no corrente, distinção esta que alguns “intelectuais” não costumam fazer…

Modalidades do “amar”

De outro lado, a respeito da palavra “amar” caberia também certos aprofundamentos.

Conforme a versão da Bíblia, o primeiro Mandamento preceitua: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas as suas forças” (Dt 6, 5).

Tais palavras indicam que há graus de conhecer e de amar. Não apenas graus, mas modalidades, e precisamos empenhar umas e outros — que evidentemente não têm o mesmo significado — no amor a Deus.

Analisemos, então, o “amar” em algumas de suas várias modalidades.

O superior prazer de contemplar um belo panorama ou de saborear um delicioso prato é uma modalidade de “amar”, entre as muitas que devem tender para o amor único à Igreja e a Deus

O amor é um ato conjunto de diversas potências da alma. Se através do raciocínio chego à conclusão de que algo me convém, essa operação desperta em mim o desejo desse algo, e faço assim um ato de amor.

O desejo de conhecer pode acabar por produzir o conhecimento

R. Hucke
Lago Llanquihue, Chile; na página 19, Igreja do Sagrado Coração de Jesus, São Paulo

T. Ring

Exemplifico. Ouço falar de um determinado lugar a partir do qual se descortina um lindo panorama, onde encontrarei convivas de trato amável e saborosas refeições. Mas, informam-me que ali existe grande probabilidade de contágio de uma doença bastante desagradável.

Fico posto entre dois estados que conheço: a doença e a saúde, e as incertezas que matizam esse quadro. Faço um ato de amor à minha saúde se resolvo não ir, renunciando desfrutar de tais prazeres. Se, pelo contrário, decido por viajar, correndo o risco do contágio, fiz um ato de desamor à minha condição de homem saudável.

Compreende-se como esse assunto pode parecer complexo, pois às vezes vale a pena enfrentar um pequeno risco para a saúde, a fim de se obter um imenso gáudio físico. Nesse caso, o indivíduo não faz um ato de desamor à sua robustez, mas de amor a uma certa plenitude a qual ele sentirá, provavelmente, de modo efêmero.

Digamos que alguém de viagem pela Itália se depare com uma daquelas sedutoras vitrines de sorveteria, no país dos sorvetes monumentais. Ele está resfriado e pensa: “Sou forte, moço, e tomando esse sorvete terei um prazer muito valioso para mim, embora talvez passe alguns dias com dor de garganta. Isto será desagradável, mas constituirá um prejuízo efêmero para minha saúde.”

Ele então toma o sorvete, mesmo sabendo que algumas pessoas, gripadas como ele está, sofrem complicações, agravamentos, pneumonia, etc., que podem conduzi-las à morte. Porém, diz a si mesmo: “Trata-se de um risco remoto à minha saúde”. Quer dizer, ele fará um ator de amor menor ou maior ao bem-estar físico, tomando ou não o sorvete.

São essas algumas modalidades de amar.

Amor único à Igreja

O indivíduo que resolve dar sua vida e todos os bens nela contidos pela causa católica pratica igualmente uma dessas formas de amor. Assim fazendo, e sendo fiel a seu propósito, ele ama a Deus acima de todas as coisas terrenas. É um modo de “amar” com a razão, em que não entram os vis raciocínios feitos para se tomar ou não um sorvete, mas trata-se de algo sumamente elevado, onde incide a ação e a influência da Igreja.

Podemos nos unir à Esposa Mística de Cristo por diversos lados da alma, e todas essas aderências, todos esses amores somados constituem o nosso amor único à Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Por exemplo, as lembranças que conservo de minhas visitas, quando menino, à igreja do Coração de Jesus e dos sentimentos que ali tocavam minha alma; as recordações que todos guardamos de nossa Primeira Comunhão, de certas ações da graça em nosso íntimo, das impressões que tivemos ao ler a História Sagrada ou Eclesiástica, tudo isso constitui uma miríade de formas de amor das quais algumas — deveriam ser todas — ficaram em nosso espírito particularmente acesas: amor sensível, amor intelectivo, amor da mera vontade, amor de afinidade e tantos outros, e cujo conjunto compõe aquela adesão única à Igreja.

Há, portanto, variados graus e formas de amor, como os há de conhecimento. E cabe a nós, repito, aplicá-los todos no exercício mais elevado de nosso amor a Deus.

1) Cf. “Dr. Plinio” número 94, pp. 18 e ss.

2) “Nada é querido se não for antes conhecido”.