Dona Lucilia na época de seu casamento

O estado matrimonial dará maior profundidade ao espírito sobrenatural de Dª Lucilia, tomando este último contornos mais definidos à medida que problemas, aflições e achaques se multiplicarem. Fiel a seu antigo costume, juntava as mãos, e com os olhos postos no Sagrado Coração de Jesus, implorava, por meio de sua querida Madrinha, Nossa Senhora da Penha, amparo e solução.

“A minha igreja”

Sua fervorosa vida de piedade, que no tempo de solteira tanto agradara a Dr. Antônio, não deixará de causar ao pai crescente admiração. Um dia, havendo observado de modo especial as longas orações de Dª Lucilia, deu-se entre eles ligeiro diálogo:

— Minha filha — disse num gracejo afetuoso — você deve ser terrivelmente molesta para com a Providência.

— Mas por que, papai?

— Porque você se dirige a Ela o dia inteiro! Deve ficar farta de tanto ouvi-la. Você pede, pede, pede. ­Aliás, o que você pede?

— Peço sempre as mesmas coisas.

Ainda em tom paternal, prosseguiu Dr. Antônio:

— Está vendo? Não é molesto?

Anos depois, sorrindo, ela própria relatava o fato.

Dr. Antônio, no intuito de ser elogioso, mas naquele mesmo tom de amena e meiga ironia, costumava dizer que Dª Lucilia nunca poderia morar junto a uma igreja, porque fugiria de casa e passaria lá o dia inteiro rezando… Às vezes Dr. João Paulo faria seu esse carinhoso gracejo.

Por feliz coincidência, situava-se precisamente naquele bairro dos Campos Elíseos, no qual ela residia desde jovem, um belíssimo santuário dos Padres Salesianos, cuja denominação correspondia à devoção de sua preferência: Sagrado Coração de Jesus. A esse templo ela dedicará, por toda a vida, uma grande afeição, a ele se referindo numerosas vezes como “a minha igreja”. Além desta e do já mencionado Convento da Luz, Dª Lucilia gostava muito da velha Sé, a antiga Catedral de São Paulo, demolida em 1911. Ela e outras senhoras da família estiveram presentes à última Missa celebrada no venerável edifício, e, tomadas pela emoção, chegaram de volta ao palacete Ribeiro dos Santos banhadas em lágrimas.

Como esposa, sob a proteção de Maria

Com saliente candura e limpidez de olhar, encarava Dª Lucilia o estado matrimonial e, ao mesmo tempo, com elevação de espírito, colocava-se sob o amparo e proteção da Santíssima Virgem para o perfeito cumprimento de seus deveres de esposa e mãe. Pequeno testemunho de suas sublimes disposições nos dá esta oração, por ela copiada de próprio punho, numa época não muito posterior ao casamento. Habituou-se a rezá-la de memória, mantendo o texto escrito guardado em uma gaveta:

Oração de uma esposa e mãe à Santíssima Virgem

Oh! Maria, Virgem Puríssima e sem mácula, Casta Esposa de S. José, Mãe terníssima de Jesus, perfeito modelo das esposas e das mães, cheia de respeito e de confiança, a Vós recorro e com os sentimentos da veneração, a mais profunda, me prostro a vossos pés, e imploro o vosso socorro. Vêde, oh Puríssima Maria, vêde as minhas necessidades, e as da minha família, atendei aos desejos do meu coração, pois é ao vosso tão terno e tão bom, que os entrego.

Espero que, pela vossa intercessão, alcançarei de Jesus a graça de cumprir, como devo, as obrigações de esposa e de mãe. Alcançai-me o santo temor de Deus, o amor do trabalho e das boas obras, das coisas santas e da oração, a doçura, a paciência, a sabedoria, enfim todas as virtudes que o Apóstolo recomenda às mulheres cristãs, e que fazem a felicidade e ornamento das famílias.

Fotos: Arquivo revista

Fotos: Arquivo revista
Duas igrejas freqüentadas por Dona Lucilia: à esquerda, a antiga Catedral de São Paulo; à direita, a igreja do Sagrado Coração de Jesus, no bairro dos Campos Elíseos

Ensinai-me a honrar meu marido, como vós honrastes a S. José, e como a Igreja honra a Jesus Cristo; que ele ache em mim a esposa segundo o seu coração; que a união santa, que contraímos sobre a terra, subsista eternamente no Céu. Protegei meu marido, dirigi-o no caminho do bem e da justiça; pois tão cara como a minha me é a sua felicidade. Encomendo também ao vosso materno coração os meus pobres filhos. Sêde a sua Mãe, inclinai o seu coração à piedade; não permitais que se afastem do caminho da virtude, tornai-os felizes, e fazei com que depois da nossa morte se lembrem de seu pai e de sua mãe e roguem a Deus por eles; honrando a sua memória com as suas virtudes. Terna Mãe, tornai-os piedosos, caritativos e sempre bons cristãos; para que a sua vida, cheia de boas obras, seja coroada por uma santa morte. Fazei, oh Maria, com que um dia nos achemos reunidos no Céu, e ali possamos contemplar a vossa glória, celebrar os vossos benefícios, gozar de vosso amor e louvar eternamente o vosso amado Filho, Jesus Cristo, Senhor nosso. Amém.

“Esta não é uma pergunta que se faça a uma mãe”

De volta a São Paulo após a viagem de lua-de-mel, Dª Lucilia e seu esposo fixaram residência numa casa quase contígua ao palacete Ribeiro dos Santos. O casal foi premiado por Deus com dois filhos: em 1907 (6 de julho) uma menina, que recebeu o nome de Rosenda, em memória da falecida mãe de Dr. João Paulo, à qual ele queria bastante bem; e, em 1908 (13 de dezembro), um menino, Plinio, assim chamado de muito bom grado por Dª Lucilia, para atender à sugestão de Dª Gabriela, que sempre desejara ter alguém entre os seus com este nome.

A bondade de que transbordava o coração de Dª Lucilia iria doravante derramar-se sem reservas sobre os filhos. Sua maternidade faria desabrochar um de seus mais sublimes aspectos de alma, ao ter de enfrentar com heroísmo uma difícil situação.

Ao examiná-la, o médico constatara que o parto seria arriscado. Muito provavelmente, ela ou o nascituro morreria. Assim, perguntou-lhe se não preferiria abortar, a fim de salvar a própria vida.

Ante essa absurda inquirição, Dª Lucilia, desagradada, respondeu:

— Doutor, esta não é uma pergunta que se faça a uma mãe! O senhor não deveria sequer tê-la cogitado.

Foi desse modo que, pouco tempo antes de dar à luz seu filho varão, quis a Providência pedir àquela extremosa e resoluta mãe católica um excelente ato de virtude. Assim, antes mesmo do nascimento de Plinio, a maternalidade de Dª Lucilia se exercia, em relação a ele, com todo seu desvelo.

O menino nasceu num domingo de manhã, enquanto Dª Lucilia ouvia tocar os sinos da igreja de Santa Cecília, chamando para a Santa Missa. O recém-nascido era tão franzino que o berço, caprichosamente preparado pela mãe, ficou grande demais para ele. Contam pessoas da família que ela, conversando um dia com seu pai, manifestou aflição pelo fato de Plinio não aparentar muita saúde. Dr. Antônio tomou-o nos braços, procurou a claridade junto à janela e, olhando bem o neto, tranqüilizou-a com estas palavras:

— Este menino viverá muitos anos!

Fotos: Arquivo revista
No olhar e no sorriso da jovem mãe, percebe-se a torrente de carinho e solicitude para com o filho recém-nascido

Um verdadeiro paraíso…

A fotografia em que Dª Lucilia tem o filho recém-nascido nos braços, bem denota a graça batismal que ela passo a passo enriqueceu pela sua correspondência e prolongou até o término de sua vida, aos 92 anos.

Com o olhar cheio de afeto, contempla ternamente o filhinho. Transparece-lhe no sorriso a torrente de carinho, de pena e de proteção diante da fragilidade do menino. Não é difícil perceber quanto ela se encanta com a candura que vê na criança.

Do conjunto de todas as fotos ao longo de sua vida, talvez seja nesta que ela apareça mais contente. Contentíssima, não por haver sido objeto de algum agrado, ou por ter recebido um elogio, mas apenas devido ao filhinho que leva nos braços.

“O convívio dela comigo era, para mim, verdadeiro paraíso”, lembra-se, saudoso, esse tão amado filho. “Sentia-me afagado, compreendido. Eu tinha uma noção muito grande de minha própria fragilidade. Sentia-me pequeno, doente. À força de toda espécie de tratamento, ela me transformou. Eu percebia inclusive que poderia morrer, mas notava também seu envolvente carinho e o enorme desejo de que eu vivesse. Eram como tônicos a me comunicar vitalidade. De dentro de minha fraqueza me vinha a seguinte idéia: ‘Ela quer tanto e pode tanto! É provável que consiga fazer de mim uma pessoa saudável. Que tragédia se eu morresse, e esse convívio fosse interrompido abruptamente!’

“Ora, eu queria viver. Sentia que, para mim, continuar vivo dependia dela. Essas cogitações não me vinham à mente só em relação a esta vida terrena, mas também em relação à outra. Não concebia um ambiente celestial que não fosse parecido com a atmosfera que sentia junto a ela. Mamãe foi um paraíso para mim até o momento em que cerrou os olhos.

“Além disso, ela me abriu outro jardim, incomparavelmente mais paradisíaco: ensinou-me a compreender e a amar a Santa Igreja Católica e me incutiu a devoção ao Sagrado Coração de Jesus e a Nossa Senhora.”

(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)