À direita, o Marechal Foch; abaixo, cena da Primeira Guerra Mundial

Saber quando estar acompanhado e quando se encontrar sozinho para melhor refletir; das miudezas elevar-se às mais altas esferas do pensamento sem pretender digressões inúteis; saber aproveitar-se do relacionamento humano e das coisas comuns, sem se deixar desviar por eles; saber quando repousar e quando trabalhar ardorosamente: as capacidades do Marechal Foch — descritas pelo seu imediato, General Weygand — inspiram a Dr. Plinio comentários úteis para a vida espiritual e a luta diária do católico.

Na exposição anterior conhecemos o Foch amante da calma e da serenidade imperturbáveis, cuja existência quotidiana no seu estado-maior transcorria com a maior regularidade possível. Deixamo-lo no momento de seu rotineiro passeio após o almoço.

Nos momentos de distensão e passeio, o grande Foch não pensava nas agruras da guerra, e se entretinha com uma flor, uma plantação, ou na conversa com os camponeses sobre as colheitas e o bom tempo

Fotos: Arquivo revista

Prodígio de distância psíquica

Assim prossegue o artigo do General Weygand:

Quando o lugar de nossa residência é uma aldeia, numa casa isolada, saímos a pé. Se é uma cidade pequena como Cassel ou Senlis, um automóvel nos leva para fora do perímetro urbano ou a uma floresta vizinha.

Ou seja, Foch gostava de passear no campo, evitando as aglomerações de gente, mesmo pequenas, onde sua presença poderia dar azo a conversações e encontros que transtornariam aquela sua apreciada calma.

Essas saídas são uma verdadeira distensão. Se o solo não está por demais molhado, o General caminha através dos campos ou dos bosques, com seu passo elástico, característico dos habitantes dos Pireneus. Ele se interessa por todas as coisas da natureza e das plantações. Não perde uma só ocasião de se entreter com os cultivadores que encontra, a respeito do estado de suas colheitas, de suas esperanças, suas dificuldades.

Nesse momento, ele não pensa na guerra. Observa as árvores, uma flor, um bichinho, interessa-se pelas condições da lavoura e se entretém em breves diálogos com os camponeses. É um prodígio de “distância psíquica”1.

Agrada-lhe, sobretudo, nas vésperas das operações ofensivas, fazê-los falar das previsões do tempo, cuja influência pode pesar muito numa preparação de artilharia.

Conheço pessoas que, dirigindo automóvel, levam o gosto de não consultar os outros até o ponto de preferirem rodar dentro de uma cidade, esgotando combustível e pa­ciên­cia, na tentativa de adivinhar o itinerário. Ora, o grande Marechal Foch não agia desse modo. Gostava de conversar com os camponeses sobre o bom tempo e a chuva, aconselhar-se, receber informações, etc.

Das miudezas às mais altas esferas do pensamento

Na conversa, que jamais se arrasta ao longo do passeio, o General aborda, de maneira espontânea, todos os assuntos. Ele me falará com maior confiança, à medida que me conhecer melhor, a respeito de sua infância, sua juventude, sua família, de sua casa de campo na Bretanha. Indagar-me-á também sobre meu passado, meus familiares, minhas preferências.

Prolongamemto do conforto que procurava se dar nas horas das refeições, Foch se deslocava pelas frentes de combate numa Rolls Royce “notável”

Fotos: Arquivo revista
O General Foch (segundo da direita para a esquerda) visita o alto comando das forças norte-americanas

Era, portanto, uma conversa autenticamente distensiva, na qual ele se comprazia em ouvir o seu interlocutor. Bem ao contrário de alguns espíritos que não sabem escutar, mas somente falar, Foch se entretinha com as opiniões dos camponeses, com as reminiscências do seu chefe de estado-maior, etc.

É assim que o segui pelas escolas das cidades onde a carreira administrativa de seu pai o conduziu, para chegar até o Colégio São Clemente, de Metz. Foi ao longo desses passeios que eu, sem me ter encontrado com nenhum deles, travei conhecimento com todos os membros de sua família. Ele me falava, muitas vezes, de seu filho e me deu conselhos que foram preciosos para a educação de um dos meus.

Agradava-lhe igualmente falar amiú­de de sua propriedade de Trofeunteuniou, no Finisterra. Ele adquiriu esse solar 25 ou 30 anos antes, atraído à Bretanha pela Sra. Foch, originária de Saint-Brieuc.

Convém observar como um grande homem não se acha perpetuamente fazendo filosofia, mas sabe tratar do relacionamento humano e outras coisas comuns, sem se deixar envesgar por elas, tornando-se pessoa rasa e banal. Não. Das miudezas ele se eleva às mais altas esferas do pensamento.

Em tudo, dignidade que favorecia as cogitações

Exceto duas alamedas centenárias de tílias e faias, os bosques não existiam mais quando ele se tornara proprietário desse imóvel. Ele mesmo os tinha replantado e falava com amor das grandes árvores que começavam a crescer. Quando, depois da guerra, fiz minha primeira visita a Trofeunteuniou, não me espantei de nada: já conhecia o que iria ver.

Nota-se aqui a precisão com que Foch comentava sua propriedade, a tal ponto que Weygand a dava por conhecida, antes de vê-la pessoalmente.

Se, pelo contrário, uma visita a um quartel-general era prevista para o período da tarde, o General passava rapidamente pelo estado-maior a fim de se assegurar de que nada o retinha lá, e nos púnhamos a caminho imediatamente. Eu o acompanho sempre, assisto a todas suas conversas com os comandantes de exército, grupamentos de exército e de divisão.

Quer dizer, o Foch tomava as providências necessárias para se ausentar e não saía em disparada, como um furacão irrefletido. Por outro lado, Weygand estava a par de tudo que se passava entre o Marechal e os comandantes de exército, para poder assessorar bem seu chefe.

Em todos os momentos o grande general se portava com dignidade, procurando sempre o que mais lhe favorecesse as elucubrações exigidas pela guerra

Fotos: Arquivo revista

Fotos: Arquivo revista
Acima, Foch (segundo da direita para a esquerda) entre chefes militares aliados; na página 22, cena da Primeira Guerra Mundial

Devido à extensão das frentes de combate, esses giros ocupavam, mais ou menos, a tarde toda. A palavra de ordem consistia em não perder tempo, por isso nos deslocávamos bem rápido, a 80 km por hora, desde que o caminho o permitisse. Uma boa velocidade para a época. O carro do General é uma notável Rolls Royce, requisitada no início da guerra, no momento em que saía da usina. Destinada ao representante de uma grande firma alemã, sua fabricação tinha sido particularmente bem cuidada.

Então o Foch não usava um jipe qualquer, mas uma Rolls Royce “notável”, que lhe propiciava conforto nos deslocamentos pelas frentes de combate. Era, como se percebe, um prolongamento do mesmo conforto que ele procurava manter na hora das refeições, do trabalho, do descanso, etc. Tudo feito com dignidade, procurando sempre o que lhe favorecesse o raciocínio e as elucubrações exigidos pela guerra.

Uma viatura de apoio nos segue sempre para fazer face ao risco de uma pane de longa duração. No caso de um pequeno incidente, ou de um pneu a trocar, as equipes dos dois automóveis se põem ao trabalho, enquanto tomamos a dianteira a pé.

Para ganhar tempo, ir pensando e também fazer um pouco de exercício.

Recolhimento de um verdadeiro chefe

Esses mecânicos são tão hábeis e experientes que raramente chegamos a andar 1 km sem sermos alcançados por eles.

Com se vê, o Foch não se preocupa em dirigir os mecânicos, como um chefe de quinta classe, que manda em tudo, aos gritos: “Fulano, aperte aquele parafuso, verifique o virabrequim!”. Deixa que os entendidos façam o conserto. Então, havendo a necessidade de algum reparo no carro, ele se afasta e se põe calmamente a caminhar, sem ostentação. Cada um faz o que lhe compete. A recíproca do chefe militar metido a mecânico, seria a do mecânico metido a conselheiro de guerra… Quer dizer, uma completa inversão de valores.

Durante esses trajetos não há lugar, ao contrário do que acontecia nos passeios, para outros assuntos senão os de nossa tarefa.

Foch se deslocava com a determinação do que deveria se fazer em relação à guerra. Nada de conversa supérflua.

A recreação havia terminado. Ora o General pensa alto, ora fica silencioso por longos momentos, ora formula uma questão, pede uma opinião ou imerge novamente em suas meditações.

Interessante observar que este “pensar alto” é algo que qualifica a confiança dele em Weygand. Feliz o estilo de relações em que o chefe pode pensar alto diante do subordinado. Entretanto, ele tinha a preo­cupação de fazer sala para seu ajudante e, por isso, demorava-se em silêncio, formulava uma pergunta, pedia uma opinião, sem se considerar um “Dr. sabe-tudo” que não solicita sugestões a ninguém. Após uma pausa, ele se recolhe de novo em suas elucubrações.

Nos dias em que não deixamos o quartel-general, o trabalho reinicia depois do passeio; porém, o General, mais do que de manhã, gosta de ficar só.

Ou seja, pela manhã ele quase só recebia o Weygand, e à tarde preferia ficar sozinho. Esse é o verdadeiro chefe.

Dura existência de quem possui mais responsabilidade

É, aliás, o momento em que freqüentemente os visitantes se apresentam. Mas, nunca se escoou uma hora sem que eu não tenha de comparecer diante dele, seja a seu chamado, seja por minha própria iniciativa, para lhe apresentar um documento ou fazer um relato, pois ele exige ser posto ao corrente de tudo, imediatamente. No fim do dia, o General recebe os oficiais de conexão, que voltam das missões externas.

Eram os oficiais que se dirigiam aos vários fronts e regressavam com notícias. Ele os atendia ao término do dia, para não atrapalhar o trabalho habitual.

A refeição noturna, fixada para as 19 horas, interrompe os afazeres que se reiniciam às 20 horas. A partir desse momento começam a chegar dos exércitos os relatórios de fim de jornada, ou o chefe do 2º Bureau (que é o de espionagem) vem apresentar ao General a síntese dos acontecimentos do dia.

Cada dia constitui um todo. Após o jantar, ele possuía uma visão arquitetônica de como ocorreu esse todo. Para dormir sobre o assunto mais importante, ele queria tranqüilidade; por isso sua residência situava-se distante das estradas de grande movimentação.

Às 23 horas exatamente, uma vez dadas as ordens e feitas as previsões para o dia seguinte, o General termina sua jornada. Realizado o trabalho, ele faz seu repouso regularmente, não vendo nada de útil num ato de presença estéril. Suas noites são sempre boas e podem ser encurtadas como, por exemplo, durante a batalha de Ypres ou a ofensiva das bombas de gás.

Ou seja, apenas nas ocasiões de grandes lances.

“A existência mais árdua não é a de quem dorme menos, mas de quem tem maiores responsabilidades”

Fotos: Arquivo revista

Fotos: Arquivo revista
Cenas da batalha de Ypres, na Primeira Guerra Mundial, onde foram usadas as temíveis bombas de gás asfixiante

Antes de se retirar, o General entra no meu escritório e se dirige a mim, mais ou menos invariavelmente, nestes termos: “Boa noite, Weygand. Vou me deitar, e recomendo-lhe a fazer o mesmo”. Invariavelmente, também, eu lhe desejo uma boa noite, respondo afirmativamente ao seu convite para ir repousar e me assento de novo. Pois essa é a hora espreitada por meus oficiais, aquela em que devo lhes pertencer pelo tempo que tiverem necessidade, a fim de tratar das questões que não puderam ser examinadas durante o dia. É igualmente o momento de pôr em ordem o jornal de campanha.

Quer dizer, depois que Foch se retira para dormir, Weygand fará seu trabalho específico. Até esse momento ele obedecera; agora será verdadeiramente chefe do estado-maior. Em vista disso, alguém poderia dizer: “Então, é mais folgada a vida de Foch que a de Weygand”.

Não. Pois a existência mais árdua não é a de quem dorme menos, mas daquele que pensa mais e tem as maiores responsabilidades. E essa era a do Marechal Foch. Logo, era natural que seu repouso fosse mais prolongado.

(Continua em próximo artigo.)

1 ) Expressão usada por Dr. Plinio para indicar, às gerações mais novas, a serena presença de espírito, notada de modo característico em pessoas das antigas gerações, sobretudo quando postas em circunstâncias adversas.