Os filhos de Dª Lucilia — Rosée, nome pelo qual Rosenda ficou mais conhecida, e Plinio — constituíam o foco de sua atenta preocupação. Além disso, exercia ela sobre seus dois pequenos uma benéfica e exemplar influência, toda feita de convite à dignidade e ao sobrenatural. Na missão educadora dela, transparecerá com maior clareza o fundo cristalino de sua bela alma. Logo de início, ela se empenhará no sentido de que apliquem os primeiros lampejos de razão em distinguir duas imagens de sua devoção, uma do Sagrado Coração de Jesus, outra, de Nossa Senhora das Graças.

Em carta datada de 1925, enviada do Rio de Janeiro a seu filho, já moço, lembrará ela: “… pois como sabe, você e Rosée são confiados a Deus antes de nascer, e portanto, com fé e amor a Deus, vocês não poderão deixar de ser felizes, tanto mais que, por vocês, eu rezo noite e dia e é natural que as preces de uma mãe católica, mesmo de tão pouco mérito, sejam atendidas por Nossa Senhora, que também é mãe, e Nosso Senhor Jesus Cristo.”

Uma febre se vai com um simples toque de mão

A uma alma assim consonante com a bondade divina, quis Deus tratar também com bondade. Estando já arraigada em Dª Lucilia uma profunda benquerença pelos filhos, pronta estava ela para colocar-se diante das perplexitantes dificuldades de saúde de Dr. Antônio e, pouco depois, enfrentar uma triste e dolorosa separação.

Com sua invariável bondade, Dona Lucilia se dispôs a cuidar dos problemas de saúde de seu pai, até o momento de enfrentar uma irremediável separação

Fotos: Arquivo revista
Acima, Dona Lucilia em 1906; na página 6, Dr. Antônio

Certa ocasião em que ficara preso ao leito por forte mal-estar e febre alta — quiçá prenunciando a morte próxima — Dr. Antônio disse ter visto entrar, pela janela do quarto, o fantasma de um falecido amigo, que não levara vida muito louvável. Este se sentou ao pé da cama, fitando Dr. Antônio com um olhar malicioso.

Nesse momento, Dª Lucilia abriu a porta e entrou. Tendo a impressão de que seu pai delirava, aproximou-se e pôs a mão — que mais parecia feita de cetim — sobre a fronte dele. Dr. Antônio, como que acordando de um pesadelo, julgou ver o antigo conhecido saltar a janela. Sentindo então grande bem-estar, viu-se perfeitamente recuperado e constatou haver passado por completo a febre.

Súbito falecimento de Dr. Antônio

Todos os anos Dr. Antônio costumava comprar uma “Folhinha de Santo Antônio”, a qual, além de efemérides, trazia sempre algum pensamento para a jornada. Entregando a daquele ano a Dª Gabriela, disse:

— Sinhara — era o apelativo que lhe dava na intimidade — aqui está a nova folhinha, depois mande pôr aí… — E acrescentou, pensativo:

— 1909… — Fez um cálculo num papel e continuou: — Este ano eu vou morrer.

— Totó, não diga tolice — retrucou Dª Gabriela, zangando-se um pouco.

Dr. Antônio sorriu e acrescentou:

— Vou morrer este ano, vocês vão ver…

De vez em quando, durante as refeições, brincava com a faca, colocando-a sobre o pulso. Movendo-se um pouco aquela, ele dizia:

— Está vendo? Isto é sinal de que eu vou morrer.

— Não diga isso, onde já se viu! — atalhava logo Dª Gabriela.

Até que o momento chegou! 12 de novembro de 1909… Eis como tudo se passou:

Fotos: Arquivo revista
Última foto de Dr. Antônio, sentado à esquerda

Encontrando-se em Santos, onde era sócio de uma firma comissária que negociava com café, Dr. Antônio desmaiou quando descia do bonde. Alguém que estava por perto o reconheceu:

— Mas é o Dr. Antônio Ribeiro dos Santos! Precisamos avisar a família, que está hospedada no hotel Parque Balneário… — E o fez transladar até a tal firma comissária. Após ficar algum tempo ali, recostado sobre o balcão, foi levado para a casa de um sócio.

Logo chegaram os médicos, os quais, após examiná-lo, não viram outra saída senão recomendar que o deixassem em repouso. Entrementes, familiares e amigos iam aparecendo e formando rodas de conversa na sala ao lado. De repente, Dr. Antônio mandou chamar um filho e logo que o viu, apoiando-se sobre os cotovelos, disse-lhe:

— Olha, Antônio, estou me sentindo mal…

E sem mais palavras caiu morto.

Profundo trauma para Dona Lucilia

A notícia do falecimento de pessoa tão bem-relacionada como Dr. Antônio — o qual, aliás, se dava uma semana após o de seu irmão, Dr. Alfredo, diretor da Secretaria de Segurança Pública — correu célere e causou consternação.

Dona Lucilia não descera a Santos, tendo ficado à espera de que o pai a avisasse haver terminado os negócios, para então ir encontrar-se com ele. Nesse ínterim, tomou conhecimento do doloroso fato. Eram duas ou três da tarde quando soube do ocorrido. Sentiu um choque tão grande que caiu de cama, com forte indisposição.

O velório se realizaria na própria residência da Alameda Barão de Limeira. Às 22h o corpo chegou a São Paulo. Segundo os estilos da época, veio num trem especial — apenas com locomotiva, tênder e vagão fúnebre, todo recoberto com flores e tecidos negros — que avançava devagar tocando o apito.

Dona Lucilia, extremamente abatida, desde que recebera a notícia mantinha-se recolhida em seu leito. Ao se aproximar o momento de ser fechado o caixão, correram a avisá-la:

— Lucilia, se você não vier agora, não terá mais oportunidade de ver seu pai, antes que ele seja enterrado.

Com o esposo amparando-a de um lado e um tio de outro, tentou ela percorrer o meio quarteirão que separava sua morada da casa paterna. Naquele tempo, os enterros se davam num cenário impressionante. O cortejo até o cemitério era feito em carruagens antigas, douradas e pretas, com plumas; os cocheiros e lacaios, funcionários do serviço funerário, usavam chapéu de dois bicos, também com plumas, e trajes semelhantes aos do Ancien Régime.

Fotos: Arquivo revista
Aspecto de um cortejo fúnebre na antiga São Paulo, com carruagens douradas e pretas, adornadas de plumas

Dona Lucilia, à medida que ia caminhando ao longo da lutuosa e extensa fileira de carruagens, cada vez sentia soar-lhe mais aos ouvidos, e quase se diria no coração, como pancadas, as impacientes batidas das ferraduras dos cavalos sobre as pedras do calçamento. As forças lhe faltaram e se viu obrigada a retornar a casa. Foi assim que naquele doloroso momento se lhe tornou impossível o derradeiro adeus ao mui querido pai.

Eloqüente epitáfio

Entre as notícias publicadas nos mais variados jornais destacamos esta, aparecida na primeira página do jornal A Comarca, de Mogi-Mirim, no dia 1º de dezembro seguinte. Trata-se de um epitáfio, que bem resume o prestígio de que gozava Dr. Antônio:

“Causou dolorosa surpresa e geral consternação a notícia da morte, em Santos, na tarde de 12 de novembro, do Dr. ANTÔNIO RIBEIRO DOS SANTOS, vitimado em menos de uma hora por uma síncope cardíaca. (…)

“Amigo, por sua família, de nossa família, foi mais do que um companheiro político devotado, a quem muito devemos nas lutas que já pertencem ao passado: foi também um amigo fiel e dedicado, na boa e na má fortuna. Abençoada seja a sua memória.

“De Antônio Ribeiro, resta a lembrança inapagável de uma inteligência privilegiada, de uma consciência imaculada, de um caráter sans peur et sans reproche.1

Ocasião para maior progresso espiritual

Aquele doloroso acontecimento seria para Dª Lucilia um marco em sua vida. Ninguém teria podido imaginar que Dr. Antônio viesse a morrer tão subitamente, e o inesperado do fato tornou ainda mais cruel o golpe, sobretudo para quem tanto lhe queria como sua filha. Com o desaparecimento da figura protetora do pai, numerosas circunstâncias de sua vida mudavam, e ela se via, agora, em face de novas responsabilidades.

Na proporção dos obstáculos a vencer, crescem em virtude as grandes almas, para o que Deus nunca falta com sua graça, sobretudo quando implorada com confiança.

Tal foi o caso de Dª Lucilia, a quem sua nova situação proporcionaria maiores progressos espirituais. Nada indicava que o anúncio efetuado por Dr. Antônio, sobre seu falecimento ainda naquele ano, teria uma realização tão exata. A estima que votava a seu bondoso pai, somada às aparências de uma saúde normal refletidas na fisionomia deste, quando partira para Santos, não permitiram que o discernimento de Dª Lucilia previsse a morte dele naquela ocasião.

Daí em diante, deitará ela especial empenho no sentido de que males inesperados jamais a colhessem desprevenida. A solidez na prática dessa virtude deve ter custado muita energia de alma a Dª Lucilia, pois nada desagrada mais ao espírito humano do que considerar de frente as eventuais tragédias que possam suceder.

(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

1) “Chevalier sans peur et sans reproche” — “Cavaleiro sem temor nem mácula”. Epíteto pelo qual ficou conhecido Bayard, célebre guerreiro francês do século XVI, por sua bravura e virtudes.