Retomaremos doravante, nesta seção, comentários do próprio Dr. Plinio às variadas facetas da figura de sua extremosa mãe. A seguir, as palavras por ele pronunciadas após receber de presente uma caixa belamente lavorada, para abrigar o xale lilás usado por Dona Lucilia nos seus últimos anos de vida.

Ofertaram-me a caixa ideal para as recordações da mãe ideal. Esta, aliás, não foi idealizada por mim. Eu a encontrei como o ideal para o qual olhei desde que nasci. E para o qual continuo a olhar, pensando nas delícias da eternidade as quais, pela misericórdia de Maria Santíssima, ela talvez já desfrute.

Grande elevação de alma

E eu considero o xale lilás guardado nessa caixa, lembrando-me da fisionomia prateada e lilás da senhora que o portava, e sinto-me ainda mais emocionado. Não posso me esquecer das conversas de mamãe comigo, em horas sempre noturnas, ela recostada em sua cama e eu sentado junto a seus pés. Nessas ocasiões, era-me dado notar nos horizontes do seu olhar, nos imponderáveis da voz, no trato de um carinho, uma delicadeza e uma elevação requintados, que havia no espírito dela muito mais do que suas palavras exprimiam.

J.C.Dias
Dona Lucilia em março de 1968, com o seu xale lilás. Na página anterior, o quarto dela em sua residência da Rua Alagoas, em São Paulo: cenário das conversas — “em horas sempre noturnas” — com Dr. Plinio

Percebia que ela possuía, por assim dizer, dois horizontes e duas vidas. Um, o horizonte da vida quotidiana de uma dona-de-casa, inteiramente imbricada no seu meio. A maior parte dos que conviveram com ela neste ambiente nunca suspeitaram que houvesse um outro panorama, uma outra vida. Nesta, ela meditava em subidas verdades, com as quais a Fé desdobrava os seus véus de ouro completamente; a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, a Nossa Senhora, abriam-lhe toda uma série de firmamentos, concepções e patamares de alma.

“Conversávamos pelo olhar; ela me estimulava e eu, a partir de certo momento, passei a incentivá-la na sua elevada disposição de alma…”

J.C.Dias
Dona Lucilia em 1968
Arquivo revista
Dr. Plinio em 1967, pouco antes de sofrer uma grave crise de diabetes

Conversávamos mais pelo olhar…

Nós dois nos achávamos tão envolvidos naquele contexto espiritual, os fios de linha daquele tecido eram de tal maneira trançados que nunca trocamos palavra um com o outro sobre esse ponto. Conversávamos pelo olhar. Ela me apoiava e a partir de um certo momento, eu passei a estimulá-la nessa disposição de alma mais elevada. As nossas conversas, quando eram a sós e à noite, poderiam ser comparadas ao vôo de dois pássaros que nem de longe chegariam até o sol, mas se deleitavam em ver que os raios do astro soberano batiam sobre suas asas.

Sem abandonarmos esse imbricamento, nos entendíamos, falávamos a linguagem do imponderável, do inefável. Em seguida, nos despedíamos afetuosamente, eu me retirava para dormir e ela permanecia na cama. Nunca voltei ao quarto de mamãe para ver o que ela fazia depois de eu sair. Creio que cada um imergia em suas próprias cogitações.

Maravilhoso caminho traçado por Deus

Ao longo dos anos, eu a via progredir na dor, no isolamento, numa espécie de despojamento de tudo, ponto por ponto, até o mais crucial, o mais interno e o mais doloroso. Nunca comentei com ela, mas creio que mamãe percebia meu afeto tanto quanto possível crescente, minha solicitude que se desdobrava, minha vontade de agradá-la de todos os modos, como mais não saberia fazer.

Lembro-me de que, alguns meses antes de eu ser acometido pela crise de diabetes, durante um almoço com ela senti qualquer incômodo pelo qual tive a impressão de estar gravemente doente. Meu pensamento imediato foi:

“Este convívio tão bom entre ela e mim, haverá algo semelhante assim na Terra? Se Deus me levar, desfará isso. É um grãozinho de areia no qual Ele é Rei. Estes grãos de areia têm de ser desfeitos desta maneira?”

Pouco depois, abatia-se sobre mim a prenunciada doença, e meus receios se confirmavam: “O desfazimento final está para vir. Deus me levará, e mamãe ficará sozinha. Ou ela soçobra na ilucidez, ou dar-se-á conta de algo e também morre.”

Aquele grão de areia parecia estar desfeito. Ora, não. Outros eram os desígnios da misericordiosa Providência. Sobrevivi à grave enfermidade, e durante o longo período de convalescença minha casa se encheu de amigos. Estes conheceram de perto Dª Lucilia, e passaram a admirá-la, a agradá-la com toda a espécie de atenções e carinhos. Onde tudo parecia o fim, no que dizia respeito a ela, um frutuoso apostolado começava a nascer.

Como não posso ficar maravilhado diante do lindo traçado que Deus desenhou ao longo deste caminho, e cujos contornos foram obtidos pelas súplicas de Maria Santíssima?

(Extraído de conferência em 22/4/1982)