Dona Lucilia em 1912; fotografia tirada em Paris

No acervo de suas reminiscências do convívio com sua extremosa mãe, Dr. Plinio colhe, uma vez mais, lembranças das manifestações de elevação de alma com as quais Dona Lucilia pontuava o quotidiano doméstico, e que tanto o atraíam, desde a mais remota infância, a estar sempre onde ela estivesse…

Em outras ocasiões já me foi dado recordar como, no contato com mamãe, eu percebia que o pensamento dela pairava, de modo habitual, em considerações elevadas, de ordem espiritual, postas na meditação das coisas divinas e das realidades sobrenaturais. Pensamentos que transcendiam, portanto, o comesinho e o terreno do dia-a-dia. Sem deixar de ser, porém, uma dona de casa e mãe de família, vivendo a sua existência doméstica e, pois, atenta aos afazeres concretos que sua condição lhe exigia.

Desejosa de atrair os outros à mesma elevação de alma

Mas, a propósito do concreto, ela se achava constantemente num estado de alma mais elevado, desejando que os outros do seu ambiente também subissem àquelas cogitações, a fim de participarem da alegria que a riqueza desses pensamentos lhe proporcionava.

A esses patamares do espírito, mamãe ascendia com muita suavidade, de maneira natural, tranqüila, sem esforço, e com uma estabilidade completa naquilo que ela via e naquilo que alcançava com essas reflexões. Além disso, com muita bondade e desejo de me atrair — a mim, ainda menino — para aquelas altas considerações. Nessa vontade de me comunicar suas expansões de alma eu compreendia que mamãe tinha essa visão superior das coisas, entendendo-as de modo diferente do que as pessoas em geral entendiam.

O gosto pelo estilo francês

Por exemplo, com a paz, a serenidade e a elevação de vistas que lhe eram características, Dona Lucilia se deliciava com as manifestações do espírito francês e com os produtos do requinte e charme alcançados por esse povo. Não era em nada por prazer mundano, e sim porque o mundo francês era para ela um imenso cabochon, uma pedra preciosa cujos reluzimentos se devia admirar. E nessa admiração ela nos convidava a nós, seus filhos, a igualmente apreciarmos e tomarmos gosto pelo estilo francês, como expressão do melhor que o talento humano até então havia engendrado.

Lembro-me, nesse sentido, de nossa viagem à França, em 1912, quando minha irmã e eu éramos muito pequenos, e mamãe procurava nos insinuar esse gosto através dos comentários que fazia, dos presentes que nos comprava ou das iguarias que nos levava para saborear em boas casas de chá. Tudo isso nos convidava a subir naqueles patamares onde ela passeava seus pensamentos.

“Plinio bleibt bei Mutter”

Naturalmente, eu a vi inúmeras vezes nesse estado de espírito elevado. E em tais momentos ela não era de falar muito: respondia bem às perguntas que lhe fazíamos, atendia-nos de maneira natural, mas percebia-se que sua cabeça estava posta em outra coisa. Seja como for, agradava-me de modo especial estar junto a mamãe nessas horas, e aquele estado de espírito dela, de alguma maneira se comunicava a mim. Então, era uma cena clássica: as crianças todas da família reunidas no jardim da casa da avó, brincando e correndo de um lado para outro sob a vigilância de suas respectivas governantas.

“Mamãe costumava repetir com imensa satisfação o dito da Fräulein Matilde: ‘o Plinio fica onde está a mãe…”

Dona Lucilia e Plinio, em Águas da Prata (SP); na página 8: Plinio, a prima Ilka e Rosée

A nossa, Fräulein Matilde, responsável por minha irmã, uma prima e eu, de vez em quando se aproximava para se certificar de que estávamos todos ali. E dava-se o fato que ela depois comentava com mamãe, e Dona Lucilia se comprazia em repetir (até na mais avançada ancianidade, ela se deliciava em recordar): com freqüência, a Fräulein notava que eu abandonava os folguedos da criançada e sumia do jardim.

“Onde foi parar o Plinio?”, perguntava-se, e se punha a me procurar pela casa. Invariavelmente, eu estava bleiben bei Mutter, isto é, eu tinha fugido para ficar perto de mamãe. Então, das outras vezes, quando a Fräulein percebia a minha ausência, não se preocupava. Dirigia-se tranqüilamente a algum dos ajudantes da casa e perguntava: “Onde está Dona Lucilia?”. A resposta indicaria o lugar do meu refúgio. Ela se aproximava da sala em questão, e de longe já ouvia minha conversa com mamãe. Claro, ela entendia muito bem que não devia separar o filho de junto da mãe, e sabia que Dona Lucilia não gostaria que ela me dissesse: “Venha cá, volte para o brinquedo!”

Pelo contrário, mamãe repetia com imensa satisfação o dito da Fräulein Matilde: “Plinio bleibt bei Mutter” — “o Plinio fica onde está a mãe”. Eu escapava do corre-corre dos meninos e ia para junto de Dona Lucilia. Como é natural, as crianças não gostavam muito de que eu fugisse, e dali a pouco começavam a gritar por mim. Então a Fräulein voltava para onde estávamos e comunicava: “Dona Lucilia, o pessoal está chamando o Plinio”. Com muito afeto, mamãe me beijava e me dizia: “Filhão, vá lá, desça e brinque com os seus amigos. Estão chamando você.”

Eu retribuía o beijo, dava um suspiro e descia. Mas, na primeira ocasião…

(Extraído de conferência em 9/5/1993)