Dona Lucilia em 1906

Ao nos descrever o temperamento e a forma de ser de sua mãe, Dr. Plinio salienta o afeto e a delicadeza de alma com que ela se relacionava, e a atitude que tomava perante a vida: um sentir-se a todo momento na presença de Deus para, no fim da existência terrena, apresentar-se ao Criador com todos os sacrifícios aceitos e a Ele oferecidos.

Para melhor se compreender a personalidade de mamãe, é preciso tomar em consideração ter sido ela, fundamentalmente, uma senhora do século XIX, como aquele tempo entendia o modo de ser que uma senhora devia manifestar. O que em nada desmerece as características das damas nascidas nessa quadra histórica, pois a excelsa Santa Teresinha do Menino Jesus, nos seus escritos, na sua conduta antes de se tornar carmelita, e mesmo depois de ter ingressado no convento, portou-se em tudo como uma moça francesa do século XIX. As poesias da santa, os cânticos compostos por ela, seus desenhos e sua linguagem, eram próprios da jovem dos idos de 1880, assim como o pai dela, Sr. Martin, percebe-se pelas suas fotografias, era o típico Monsieur daquela época.

Donde, o ponto de partida para se entender mamãe é situá-la como uma senhora nascida e formada, na sua mocidade, no século XIX.

Invulgar maturidade de espírito

Essa característica, somada a outras peculiaridades, faziam dela uma pessoa cuja mentalidade dir-se-ia muito anterior à da sua geração. Por exemplo, no convívio doméstico, Dona Lucilia conversava com a mãe dela quase como se fossem da mesma idade. Por outro lado, em relação à irmã seis anos mais nova, tratavam-se como se entre elas houvesse um valo divisório. Quer dizer, mamãe demonstrava possuir mais afinidade com as coisas e pessoas do tempo de minha avó — portanto, na flor do século XIX — do que com as de sua época ou pouco mais novas.

Um fato ilustra bem essa situação. Nas primeiras décadas do século XX, muitas mulheres começaram a aderir à moda de cortar os cabelos, deixando-os bem curtos, junto ao queixo. Algumas parentes de mamãe, inclusive suas irmãs mais novas, logo adotaram o penteado em voga. Dona Lucilia, porém, nunca cortou os cabelos, e faleceu usando os cabelos compridos, como era típico das senhoras do século anterior.

Basta analisar, aliás, fotografias dela tiradas quando tinha seus 35 anos, e posteriores, para se perceber tratar-se de uma pessoa da ­Belle Époque, que atingira uma maturidade de espírito maior do que o comum das mulheres de sua geração.

Características da antiga dama paulista

Poder-se-ia então perguntar como se apresentava uma senhora da aristocracia paulista do século XIX, como era mamãe.

Fotos: Arquivo revista/J. S. Dias

Eu diria que era uma senhora afeita, de maneira acentuada, ao âmbito doméstico. Passava a maior parte de seu tempo em casa, gostava de cuidar das coisas do lar, ausentando-se poucas vezes para acompanhar as filhas. Duas ou três vezes por ano assistia a algum espetáculo de gala, especialmente quando atores estrangeiros encenavam peças no Teatro Municipal.

A par desses eventos, a vida social consistia em visitas a amigos e parentes, nos moldes de outrora. Chegava-se à casa, tocava-se a campainha, a governanta ou outra ajudante aparecia:

— Pois não?

— Dona fulana está?

— Ah, sim, por favor, entre. Vou avisar que a senhora a espera.

A anfitriã se fazia aguardar durante alguns minutos de estilo, e então surgia, afável e acolhedora.

— Ah! Bom dia! Como vai a senhora? Quanto gosto em recebê-la!

— Vou bem, e a senhora, como está? E os seus filhos, como vão?

Sentavam-se, e durante duas ou três horas desenrolava-se aquela conversa de visitas, entretenidas para elas e — devo dizê-lo — bem menos para os filhos e acompanhantes…

Seja como for, mamãe recebia e fazia tais visitas, agradava-se com elas e à noite, durante o jantar, prolongava aquela satisfação comentando tais e tais aspectos, esse ou aquele fato aventado durante o encontro da manhã ou da tarde.

Assim era ela, o seu ambiente, o tempo no qual nasceu e cresceu, e cujas influências marcaram sua vida.

Agora, cumpre assinalar também o papel de uma senhora com essas características, dentro do convívio doméstico. Ela devia demonstrar uma forma de inteligência por onde compreendesse os imponderáveis do caráter, do temperamento, da tradição, da missão e do estilo da sua família. Compreendendo isso, era-lhe dado representar nesse conjunto, com sutileza, o equilíbrio afetivo. Esse era o papel da senhora.

Equilíbrio comunicativo

Daí se perceber em mamãe um modo de ser pelo qual estava com a alma sempre franqueada para uma comunicação de equilíbrio emocional elevado. Ou seja, para aquelas pessoas que conviviam com ela, Dona Lucilia participava esse estado de espírito e lhes oferecia beneficiar-se do seu equilíbrio comunicativo.

Formada na mentalidade das antigas gerações, mamãe procurava sempre mostrar seu estado de espírito afetivo, desejoso de se comunicar e de ser aceito pelo próximo

Fotos: Arquivo revista/J. S. Dias
Dona Lucilia aos 91 anos; na página 8: sua mãe, Dona Gabriela, em 1912

Entendamos o que chamo aqui de equilíbrio. As últimas fotografias de mamãe nos falam muito dessa característica. Nelas se nota ressaltado, sobretudo, um estado afetivo, desejoso de se comunicar, de ser aceito pelo próximo. Esse estado afetivo, por sua vez, contém muitas disposições de alma. Por exemplo, vendo-a, sentimo-nos em presença da boa mãe de família. Noutra ordem de idéias, percebe-se que é uma pessoa para quem a vida transcorreu inteira, conforme os desígnios de Deus, sob o amparo de Maria Santíssima. É uma pessoa vivida, que considera o sacrifício da existência consumado. Está pronta para morrer.

Assim como o sacerdote, ao término da celebração eucarística, diz: Ite missae est, (“ide em paz, a Missa terminou”), assim mamãe, no fim de sua vida, podia afimar: Oblatio facta est. A oblação dela está feita. Não lhe resta mais o que viver,

É o oferecimento, repassado de serenidade, de quem sofreu tudo e, do outro lado do sacrifício, encontrou a paz.

(Extraído de conferência em 21/4/1977)