Dona Lucilia aos 91 anos

Do trato ameno e acolhedor para com os outros, ao zeloso cuidado com sua própria saúde, Dona Lucilia procurou sempre manter o mesmo estado de espírito, nascido da prática da virtude, da convicção de seus princípios católicos e de um firme equilíbrio emocional, conforme no-la descreve Dr. Plinio.

Em mamãe, a par da sua invariável afabilidade e acolhimento para com os que dela quisessem se aproximar, seria preciso considerar também o aspecto de senhora de categoria que, sem se situar num patamar inacessível, sabia entretanto impor respeito.

Equílibrio em todas as coisas

Por exemplo, diante dela, não vinha a vontade de lhe dirigir uma brincadeira ou dito irreverente, menos ainda de desacatá-la. Se alguém se aventurasse a isso, ela, com suavidade, colocaria a pessoa no seu devido lugar, fazendo-a compreender como tivera uma atitude despropositada. A pessoa reconheceria e pediria desculpas, sem nenhum ressentimento da parte de mamãe. Ela nunca revidaria de modo rude: “Mas, afinal, eu proibi que agisse assim comigo!”. Não. Com mansidão e bondade, deixaria o outro constrangido pelo que fez de errado, mas sem afligi-lo nem magoá-lo com uma repreensão excessiva.

Era o modo de ser dela, equilibrado em tudo, fosse no relacionamento com as pessoas, fosse no cuidado consigo mesma. Aliás, de saúde frágil, mamãe sempre se cuidou judiciosamente, até o fim da vida. Sem nada de desgrenhado, dilacerante nem de tristeza do estado de enfermidade, mas com o equilíbrio do doente que se trata e se resigna.

A vida inteira num estado de espírito

Esses diversos aspectos se mostravam nela, cada um a seu modo, ocupando na sua alma o relevo que deviam ocupar e formando, portanto, uma harmonia emocional que importava numa harmonia relacional. Ou seja, mamãe convivia harmonicamente com as pessoas, porque seu estado emocional estava ordenado.

Agora, tanto mais se a observasse, mais se notava algo que, a meus olhos de filho, não é difícil reconhecer: uma longa estabilidade de alma. Se tomarmos algumas de suas últimas fotografias, ver-se-á que ela não se apresentava com aquele estado de espírito sereno e equilibrado só porque foi retratada “num momento fugaz”. Não se trata de um instante, mas de uma existência inteira vivida assim, a ponto de ela se tornar conatural a esse equilíbrio.

Não é, portanto, alguém que, num flagrante, foi fotografado numa hora feliz. Porque dizer: “Fulana de tal num instante feliz de sua vida”, seria quase afirmar que muitos dos outros momentos de sua vida foram infelizes e ela estava alegre somente naquele instante.

Ora, no caso de mamãe não era um momento feliz. Era ela, como foi durante longos anos. Toda uma vida passada nesse estado de espírito.

A questão é: como pode esse estado emocional perdurar tanto num espírito, se não for em virtude de princípios que são a justificação lógica desse estado emocional? Pois a emoção, de si, é algo volátil.

Convite a ter seus mesmos princípios

Então, como pode uma senhora, como mamãe, adquirir a estabilidade?

“Com predileção e solicitude maternas ela me educou, deixando-me como herança o dever de agir em função dos princípios que me ensinou”

Fotos: Arquivo revista/J. S. Dias
Fotos: Arquivo revista/J. S. Dias

É só por meio de princípios, talvez vividos subconscientemente e entrevistos conscientemente, de maneira tal que se diria ter o princípio nascido com o estado emocional. Este nutriu-se com aquele, e se desenvolveu mais do que o princípio puramente teórico.

Fotos: Arquivo revista/J. S. Dias
Fotos: Arquivo revista/J. S. Dias

Creio que mamãe, se nos ouvisse agora, ficaria pasma de saber que de uma simples dona de casa se pode fazer uma extensa digressão como essa. E se soubesse que me refiro a ela mesma, certamente tocaria na minha mão com seus dedos suaves, como costumava fazer, dizendo-me: “Meu filho, meu filho, não tanto…”

Fotos: Arquivo revista/J. S. Dias
Na página 8 e acima: algumas das últimas fotografias de Dona Lucilia, em 1968; acima, à direita: ela com Dr. Plinio, em 1961

Seja como for, ela tinha esses princípios, e tinha como missão própria de mãe convidar os filhos a tê-los também. A mim, na condição de filho, cabia receber esse legado, hauri-lo, amá-lo o quanto possível, e partir para duas coisas: a explicitação desses princípios em doutrina, e a sua aplicação prática na minha vida.

Quer dizer, como mãe e dona de casa, ela não fez outra coisa senão educar. Explicitar e agir era meu dever e meu papel, não o de Dona Lucilia. Para ela, apenas a existência dentro da vida de família. Como, aliás, ela entendia ser o resto da existência urbana de São Paulo ou de qualquer cidade: é um conglomerado de famílias onde todos vivem, sobretudo, no âmbito doméstico, e somente por acaso passam algum tempo nas ruas. Esta era a concepção — vejo bem que idealizada, catolicamente idealizada, e não muito objetiva — das coisas.

“Ela criou um ambiente”

Eu até ousaria dizer que mamãe, à maneira da Igreja Católica que explicita suas doutrinas e estabelece seus dogmas em face das heresias, chegava a explicitar seus princípios quando contestados de alguma forma. Do contrário, ela não agia senão como uma senhora do lar, educando e criando um ambiente na família dela. Porque isto é fato: o ambiente ela criou, e a influência, a presença e o perfume de sua pessoa ainda perduram na casa que hoje é minha. Quem a visita, poderá perceber que mamãe ali está presente, a todo momento.

A mim, pois, coube receber a predileção e a solicitude maternas com as quais me formou, e essa herança da explicitação e da ação. Por isso, em grande parte das doutrinas e pensamentos que desenvolvo, em muito das ações que empreendo, poder-se-á notar algo dessa inestimável influência que recebi de mamãe.

(Extraído de conferência em 21/4/1977)