Dona Lucilia, alguns anos antes de sua morte.

A bondade de Dona Lucilia não era restrita a seus filhos, mas se estendia a todos que dela se aproximavam. A propósito de um fato recordado por um primo, Dr. Plinio comenta as impressões que lhe foram deixadas por sua mãe.

Há impressões que ficam para a vida inteira e, uma vez enunciadas, marcam como os relevos numa moeda; aquilo está comunicado à moeda e nunca mais muda.

Assim também são as impressões insaciáveis. As impressões de que eu sou insaciável me foram dadas pela figura de Mamãe, de um modo tão magnífico.

Se no conjunto de excelências morais ­­de Dona Lucilia — que eu tanto amei e cuja recordação guardo no meu coração, com uma veneração e um afeto sem fim — há uma coisa que me impressionou, foi aquilo que havia em sua alma, ao mesmo tempo de muito elevado, muito impregnado das mais altas cogitações; e, de outro lado, de muito misericordioso, muito capaz de se dobrar sobre o que há de menor, de mais insignificante, para fazer o bem. Tudo isso faz com que eu me lembre dela para todo o sempre.

Não só eu, mas outras pessoas que tiveram ocasião de tratar com ela na infância ou em outras idades; ou que a conheceram quando eram pequenas e depois a perderam de vista, com o vai-e-vem da vida nesta cidade enorme que é São Paulo, mas que nunca mais se esqueceram.

Uma recordação afetuosa

Uma das impressões que me ficaram muito marcadas foi a recordação de um primo, sobrinho dela, portanto.

O Sr. Horácio Black1 foi quem recolheu essa recordação.

Ele foi fazer uma visita a esse primo e explicou que estava recolhendo recordações das pessoas que tinham conhecido Dona Lucilia, e que podiam lembrar alguns fatos. E esse primo frequentou bastante a casa de Mamãe, mais ou menos até ele fazer 30 anos de idade. Depois, os trabalhos o arrastaram para outros lugares, mas sem que ele deixasse de ter o tempo inteiro uma recordação muito afetuosa e muito respeitosa acerca dela. E quando o Sr. Horácio Black perguntou-lhe que impressão ele tinha dela, esse senhor contou esse fato.

Meus pais, minha irmã e eu morávamos na casa de minha avó2, que também era avó desse meu primo. Os pais dele foram fazer uma viagem ao Rio de Janeiro e deixaram uma filha e dois filhos hospedados na casa de minha avó, os quais deveriam ali ficar até que eles voltassem do Rio.

A menina, conforme os costumes daquele tempo, não dava trabalho. Os costumes eram ainda conservadores e ela era uma moça tão excelente que se tornou depois uma pessoa séria, correta, direita.

Mas um meninote, que tem liberdade de sair sozinho, e com os pais viajando, dava mais trabalho.

Dona Gabriela: obra-prima de personalidade

Minha avó era uma senhora muito altiva, muito bonita, eu diria, muito majestosa. Nós temos um quadro dela, pintado por um pintor parisiense do ano 1913, mais ou menos, que é uma verdadeira obra-prima de pintura, mas ela era uma obra-prima de personalidade. E ela, com a preocupação de manter os netos no freio para que tudo corresse direito, era ao mesmo tempo afetuosa, mas muito brava.

Minha avó era uma senhora muito altiva, muito bonita, eu diria, muito majestosa.

Quadro de Dona Gabriela pintado em Paris, no ano de 1913.

E na hora do almoço todo mundo precisava estar presente. Havia muitas casas onde os pais faziam questão da pontualidade absoluta. Toda a criançada tinha que estar em casa na hora certa para almoçar. Era esse o sistema de minha avó.

Esse meu primo, vendo-se livre dos pais dele, saiu antes do almoço e foi fazer um passeio nas cercanias da casa de minha avó. Mas ele não morava naquele bairro, gostou enormemente de passear e chegou muito tarde para o almoço.

Quando ele entrou, minha avó, diante de todos que estavam presentes para o almoço, perguntou-lhe com severidade:

— Fulano, onde é que você esteve?

Ele disse:

— Vovó, eu estive passeando.

— Mas você imagina que pode tomar tal atitude na casa de sua avó? Não compreende que seu dever é deixar a sua avó inteiramente despreocupada quanto a você, e precisa, portanto, estar presente na hora exata do almoço? Isto que você fez é um disparate.

Então ele desandou no choro. Era um menino de uns doze anos e chorão. Dona Lucilia, vendo que minha avó estava zangada, achou que não era o caso de liquidar o caso ali, mas levar o menino embora e mandar que lhe trouxessem almoço noutra sala da casa, e ela assistir ao almoço dele, conversar com ele, agradar-lhe um pouco.

Bondade de Dona Lucilia

Então ela virou-se para o menino e disse:

— Olhe, meu filho, não se preocupe; nós daqui a pouco vamos falar com sua avó, mas agora vou levar você para almoçar naquela outra sala.

Mamãe o suspendeu e ele abraçou-a. Foram para outra sala, onde ela arranjou o almoço para ele, conversou, explicou com muita bondade que meu primo de fato tinha andado errado; mas que ela ia arranjar com a avó dele para não lhe impor nenhum castigo, e todas as coisas se resolveriam bem.

Agora vem o lado interessante.

Esse primo contou que quando ela o segurou e o conduziu para a outra sala, ele sentiu que emanava da pessoa dela tanta bondade, tanta pena dele, tanta compaixão, tanta compreensão porque ele estava sofrendo e tanto desejo de fazer bem a ele, que ele parou de chorar, sentiu-se consolado e foi almoçar.

Ele tinha um apetite igual ao meu, um apetite feroz. Comeu o quanto quis. Depois minha mãe o deixou e na casa não se falou mais disso. Minha avó também não tocou no assunto.

Comentário dele:

— Tia Lucilia ficou marcada para mim a vida inteira como uma santa! Porque uma bondade tão grande ficou como que impregnada em mim, e até hoje eu ainda sinto o calor dessa bondade.

É um homem um ano mais moço do que eu. Está velho, portanto. Mas até agora ele sente o afeto de Dona Lucilia, a propósito desse pequeno episódio que para ele, enquanto menino, tinha sido uma tragédia.

Nas cercanias da sepultura de Dona Lucilia, as pessoas vão se aplacando, adoçando, tranquilizando, como se Ela lhes estivesse sussurrando alguma coisa aos ouvidos.

Sepultura de Dona Lucilia – Cemitério da Consolação, São Paulo. Em destaque, Dona Lucilia em 1968, meses antes de sua morte.

Tranquilizando e incutindo confiança nas pessoas

O trato dela com os que estão neste auditório, pelo que me é dado ver no cemitério3, é desse gênero. Quando vou ao cemitério, discretamente eu olho para as fisionomias, para ver como estão, o que exprimem. E frequentemente vejo pessoas que chegam preocupadas, e às vezes sofredoras. Ficam paradas; algumas rezando; noto, pelo rosário nas mãos ou pelos movimentos dos lábios, que estão orando.

Outras estão quietas. Tenho impressão de que aquelas cercanias da sepultura vão aplacando as pessoas, adoçando, dando um modo sensato de considerar as coisas, um modo de tranquilizar, de ter confiança, como se Dona Lucilia lhes estivesse sussurrando alguma coisa aos ouvidos.

É a realização, talvez, de uma missão que ela efetua depois de morta porque não pôde realizar em vida. Ela era principalmente mãe. Todo o modo de ser dela era voltado para ser mãe. E eu às vezes me perguntava: “Que coisa curiosa! Ela, com o espírito tão voltado para ser mãe, teve apenas dois filhos. Mas por que Deus despertou nela um amor materno tão enorme, para tanta gente, quando dela não haverá senão uma descendência tão pequena?”

Mas quando ela morreu e começou a aparecer essa descendência sobrenatural de filhos que a graça aproxima dela para rezarem em união com ela, para obterem graças pela intercessão dela, eu compreendi. Ela rezou e sofreu muito nesta vida para poder fazer muito bem na outra vida.

(Extraído de conferência de 15/1/1994)

1) Grande admirador da mãe de Dr. Plinio, o Sr. Horácio Black foi um dos principais colaboradores da obra “Dona Lucilia”, publicada em setembro de 1995.

2) Dona Gabriela Ribeiro dos Santos.

3) Dona Lucilia foi enterrada no Cemitério da Consolação, na capital paulista. Com frequência, jovens participantes do movimento fundado por Dr. Plinio dirigiam-se afetuosamente ao túmulo de Dona Lucilia.