Serenidade, tranquilidade e bondade constituíam a nota tônica no modo de Dona Lucilia gerir os assuntos domésticos. Pequenos episódios, vividos com temperança e elevação de alma, deixavam entrever a prática de sólidas virtudes cristãs em meio ao cotidiano de uma dona de casa.

O modo de mamãe governar nossa casa é um assunto a respeito do qual nunca procurei fazer uma vista de conjunto, pela seguinte razão: era uma residência pequena, muito fácil de dirigir e muito bem dirigida, de maneira a causar a impressão, pela manhã, de que os objetos, os quais ao final do dia anterior estavam naturalmente um tanto desarranjados, tinham voltado por si mesmos aos seus devidos lugares, e que durante a noite a poeira fugira dos móveis.

Mario Shinoda

Aspectos do interior da casa de Dona Lucilia

Discrição, temperança e bondade ao dirigir os assuntos da casa

Por causa de seu gênio extraordinário, minha mãe era muito bem sucedida em matéria de empregadas. Estas demoravam um bom tempo trabalhando para ela e, quando saíam, era por não haver remédio: tinham encargos de família ou coisas semelhantes; às vezes, ainda voltavam para visitá-la. Assim, o problema das empregadas, muito tormentoso em diversos lugares — já naquele tempo as donas de casa se queixavam —, com ela não existia.

Dona Lucilia era muito discreta no que diz respeito aos problemas da casa, os quais eram pequeninos, e ela mesma os resolvia tão bem, que não se percebia terem existido. Não costumava se queixar nem sequer dos preços que subiam. Às vezes, ela me dizia: “Filhão, é preciso aumentar a verba…”; ou eu, prevendo a necessidade de aumentá-la, já entrava com o dinheiro, antes mesmo de mamãe pedir. Mas isso era feito com a naturalidade com que se toma um copo de água.

Realizamos algumas reformas na residência; na parte que lhe dizia respeito, ela orientava as mudanças perfeitamente bem. A seu tempo estava tudo instalado, mas ela não era nem um pouco o tipo de senhora supereficaz, nem superprática. Não se sentia nela aquela calefação desagradável da eficácia, característica da dona de casa que está fungando, e diz que fez isso, mais aquilo… Não! Dona Lucilia fazia tudo, mas com tanta bondade, tanta serenidade, tanta tranquilidade, que nem se percebia ter havido alguma dificuldade.

Mamãe tinha o hábito de tomar o café da manhã logo ao despertar. Geralmente, eu ainda não havia me levantado, e meu pai, que era muito mais madrugador, já estava acordado, lendo o jornal. Ela não se perturbava pelo fato de ele acender o abajur e abrir a janela. Tinha um sono caudaloso; dormia tranquilamente até a hora estipulada para acordar, com respiração profunda e muito regular, correspondente às suas boas condições cardíacas e, sobretudo, à sua temperança.

Mas quando meu pai saía mais cedo, ela ficava sozinha e recebia a empregada com a qual entrava em confabulações. Mamãe fazia-lhe perguntas sobre sua vida, e a empregada chorava suas complicações; desconfio que ela a ajudava financeiramente e lhe dava conselhos. Às vezes, transpirava alguma coisa do que a empregada lhe contava, quando não era confidencial e mamãe imaginava que podia nos entreter. Fora disso não saía nada. Também ninguém se interessava por saber.

Lembro-me de alguns minúsculos fatos domésticos, como competia a uma dona de casa, com uma residência tão pequena, e recebendo poucas visitas. A minha irmã, o marido dela e a filha desse casal iam a nossa casa com alguma frequência tomar uma refeição e conversar um pouco; também uma tia minha, irmã de mamãe, nos visitava bastante, mas no total isso formava um movimento doméstico muito pequeno.

”Coitada da gata!”

Uma casa em que moramos na Rua Itacolomy1 fora construída com muita inteligência por uma pessoa pobre. Os pormenores todos eram bem terminados, com material de categoria, trincos finos, estuques, lustres, vitraux, tudo de muito boa qualidade. Era, portanto, um ambiente onde nos sentíamos bem, embora fosse uma residência muito pequena.

A sala de jantar dava para um espaço por onde poderia passar um automóvel até o fundo do quintal, mas nós não tínhamos carro e Dona Lucilia havia transformado aquele local em galinheiro. Meu pai mandava jacás de galinhas de São José do Rio Preto2, onde ele tinha negócios, e as aves eram criadas ali.

Havia uma janela na sala de jantar que dava para essa passagem — coisa perfeitamente comum —, e depois o muro entre nossa casa e a do vizinho. Mas a proprietária que nos antecedeu nessa residência, com bom gosto em tudo, tinha feito crescer uma hera abundante ao longo do muro; na realidade eram dois muros, porque havia a parede de nosso terreno e a do outro, e a certa altura nosso muro acabava e continuava o do vizinho, com a vegetação cobrindo-o.

Não sei como uma gata, que estava para ter filhotes, se aninhou naquele lugar. Todo dia, na hora do almoço, aparecia e dormia ali, e dizíamos: “Olha a gata…” Mas não percebi que estivesse para dar cria, e mamãe também não me disse. Eu notava que ela mandava dar leite para a gata, mas fingia que não via… Não sei se era só leite, e também biscoitos e outras coisas. A gata se refestelava ali. Como aquilo entretinha mamãe, nós conversávamos um pouco sobre a gata.

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Em certo momento, percebi que a gata tinha tido uma série de crias, era uma algazarra de gatinhos miando, molestando toda a vizinhança, e isso não podia continuar. Entretanto, já prevendo a reação de mamãe, nos primeiros dias tive misericórdia com a gata… Quando as crias ficaram um pouco maiorzinhas, eu disse para nossa empregada, uma portuguesa chamada Ana, para pôr fora aquela gataria toda.

Porém, eu não quis fazer isso escondido de mamãe, pois seria um tanto violento, e estava disposto a entrar numa combinação: não jogar os gatinhos num rio, mas deixá-los num saco aberto, numa rua distante. Os gatinhos que saíssem de dentro, e a gata tratasse deles. Dona Lucilia não quis: “Oh! Coitada da gata, não vamos fazer isso!” Afinal de contas, a gataria se mudou quando quis… Ficou ali até o último ponto possível.

Um antigo relógio trazido de Pirassununga

Um outro fenômeno minúsculo, que ficou sem explicação, foi o seguinte: ela possuía um velho relógio de cozinha; não era objeto fino, e está guardado em casa. Esse relógio tinha pertencido aos pais dela, quando moravam em Pirassununga; depois, ao se mudarem para São Paulo, trouxeram o relógio, que funcionava na copa, em casa de minha avó, até 1934, ano em que passamos a residir em outra casa. E mamãe gostava do relógio porque era uma recordação de sua infância.

Quando nos mudamos para o apartamento da Vieira de Carvalho3, ela transportou o relógio e mandou colocá-lo na cozinha, na única parede disponível, acima do fogão a gás. Suspeito que o calor do fogão deteriorou seu mecanismo, porque o relógio, sempre muito pontual, começou a desacertar.

Ela, tão alheia a certas coisas práticas, quis que o relógio fosse consertado e eu mandei levá-lo ao relojoeiro; este afirmou não saber o que tinha acontecido, mas o relógio não tinha mais conserto, porque já não existiam no comércio as peças próprias. Eu disse isso a mamãe, ela lamentou, porém não quis jogar fora o relógio; embrulhou-o e guardou-o num armário.

Estava lá o relógio há tempos, quando certo dia meu pai entrou na cozinha para dar uma recomendação qualquer para a cozinheira, e o relógio se pôs a funcionar, e chegou a marcar meio-dia, mesmo estando empacotado!

Mario Shinoda
Dr. João Paulo, pai de Dr. Plinio

Meu pai tinha medo de ladrões e de fantasmas. Em relação a ladrões, ela era meio displicente; fechava a casa, mas sem as preocupações exímias de meu pai. Porém quanto a fantasmas, ela também tinha receio; não se apavorava como meu pai, mas tomava muito a sério. Contaram-lhe a questão do relógio, e ela ficou muito intrigada com o assunto. Eles mandaram a empregada pegar o relógio, para ver o que havia acontecido. O relógio estava tal e qual, não se explicava que tivesse indicado horas.

Quando cheguei à residência, eles me contaram o caso, querendo, sobretudo ela, sondar minha opinião, perguntando-me se eu julgava ser um prognóstico. Eu lhe disse: “Meu bem, a senhora anote a hora em que o fato se deu. Se acontecer alguma coisa, podia ser presságio. Se não acontecer, não foi nada.”

Um cego de belo porte e que conversava muito bem

Um outro episódio. Minha mãe tinha um primo que, quando criança de berço, sofrera uma conjuntivite, e um oculista, ao tratar dele, pingou nitrato de prata nos seus olhos, e o menino teve seus olhos queimados, ficando cego para a vida inteira.

Embora fosse um parente longínquo, era sempre muito bem recebido e bem tratado em casa. Ele nos visitava com certa frequência e tinha boa prosa. Aliás, era um homem de muita compostura. Não sei como aprendeu a manter o porte sendo cego, e não podendo, portanto, ver nos outros como conservar uma boa postura. Mas ele tinha um bonito porte e conversava muito bem.

Como não tinha ocupações, esse primo cego fazia visitas quilométricas: ficava nas residências dos parentes tanto quanto podia. E ela e meu pai eram muito pacientes e atenciosos para com o pobre homem. Mas quando se fazia necessário, mamãe se retirava para tratar de algum assunto da casa ou pôr orações em dia.

Ao retornar, ela encontrava, por vezes, essa cena engraçada: meu pai, que já estava bem idoso, dormindo. Mas ele não avisava o visitante, e se deixava afundar no sono. E o pobre cego não percebia que seu interlocutor estava dormindo, apenas notava que ele deixara de responder. E minha mãe entrava, então, pé ante pé, para o primo não notar, cutucava meu pai e fazia-lhe um sinal. Às vezes o cego percebia, porque meu pai acordava e dizia: “O que é, senhora?!”

E como sói acontecer com os cegos, o visitante tinha ouvido muito aguçado, e se dava conta do ocorrido. Mas, sendo muito discreto, não se pronunciava. Quando meu pai não dizia nada ao acordar, então o pobre cego nem percebia, e ambos retomavam a conversa com ele. Quando eu chegava, à noite, ela me contava o fato, achando graça.

Esses eram alguns dos pequenos episódios da vida doméstica…

(Extraído de conferência de 6/7/1982)

1) No bairro Higienópolis, região central de São Paulo.

2) Cidade a noroeste do Estado de São Paulo.

3) Avenida no Centro da cidade de São Paulo.

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