Sine sanguinis effusione non fit remissio1. Esta afirmação encerra um profundo mistério. Por que Deus quis que o próprio Verbo pelo qual todas as coisas foram feitas2 Se encarnasse e vertesse, do alto da Cruz, até a última gota de seu preciosíssimo Sangue para remir suas criaturas? O mesmo ato de vontade onipotente que tirou do nada o universo não bastaria para operar a Redenção?

São questões que nos interessam a fundo e concernem a toda a nossa existência, pois o enigma da dor e da morte — que aflige e, por vezes, esmaga o homem — só encontra sua solução em Nosso Senhor Jesus Cristo3.

A cada ano, o Tempo da Quaresma nos convida a meditarmos na necessidade de associar os nossos padecimentos ao sacrifício redentor do Cordeiro de Deus para, assim, realizarmos os planos divinos.

De espírito fundamentalmente religioso, Dr. Plinio compreendeu e amou esta verdade, a respeito da qual teceu belos comentários que iluminam as páginas da vasta obra por ele deixada, e dos quais o leitor encontrará mais um exemplo na presente edição4.

Porém, Dr. Plinio não se limitou a compreender e amar o sacrifício. Sua admiração pelas vítimas expiatórias e, sobretudo, sua adoração pela Vítima suprema, levaram-no a oferecer-se em holocausto pela causa católica. Celebramos, neste mês, 40 anos de seu oferecimento avidamente aceito pela Providência.

Fiz esse oferecimento — dizia ele5 — na presença de várias pessoas. Conversávamos sobre a situação de nosso Movimento cujas difíceis vicissitudes pelas quais passava exigiam um holocausto dessa natureza. Como não via qualquer disposição para isso em meus interlocutores, pareceu-me que eu deveria fazê-lo. Então lhes declarei minha intenção de oferecer-me como vítima a Nossa Senhora.

Não imaginei que fosse ter uma tão grande repercussão. A conversa se deu no sábado à noite. Na segunda-feira, dia 3 de fevereiro, sofri o desastre de automóvel.

A Santíssima Virgem colheu com avidez esse sacrifício. Dir-se-ia que, por menos que ele valesse, Ela estava precisando tanto dele que fez como uma mendiga faminta — Ela, a Rainha do Céu e da Terra! — a quem se dá um pedaço de pão: põe-se o pão em sua mão, e ela leva-o à boca imediatamente. Nossa Senhora tinha fome desse sacrifício. Por assim dizer, mal o sacrifício foi oferecido, ele foi colhido.

Ao sair do hospital, notei ter ficado com a marcha impedida. Os médicos determinaram que eu permanecesse deitado por mais um mês. Eu percebia bem que, na melhor das hipóteses, teria de andar de muletas, o que, naturalmente, é uma limitação na validez de uma pessoa.

Minha grande preocupação era: até que ponto continuarei capaz de servir a Nossa Senhora, tocando adiante a luta que devo travar?

Percebia que minha saúde, em geral, estava boa. Embora notasse a memória um tanto abalada devido à forte pancada recebida na cabeça, o raciocínio estava perfeito. Cheguei à conclusão de que, se Nossa Senhora continuasse a me ajudar do ponto de vista intelectual, a invalidez física não teria maior importância.

Contudo, esse sacrifício foi acrescido de outros.

Era de se esperar que, se eu sofresse um desastre como aceitação de meu oferecimento, de algum modo e por algum sinal, Nossa Senhora de Genazzano far-me-ia sentir previamente.

Ora, isso não se deu, o que para mim parecia significar que o pacto de Genazzano, a promessa que Ela me fizera estava cancelada. E a prova disso era que eu tinha afundado num mar de infortúnios, sem nenhum sinal anterior no sentido de que esses infortúnios viriam.

Por cima do tormento de toda aquela situação — com operações, imobilidade, incômodos de toda ordem — vinha o problema pior, mais desagradável: os exames de consciência com uma espécie de solidão espiritual. “O que fiz eu para que essa promessa fosse desmentida? No que fui infiel? Acuse-se, seja franco consigo mesmo! Deve haver alguma culpa sua.” Uma espécie de terror acompanhado desta ideia: “Não foi o meu oferecimento, porque eu não recebi um sinal.”

Dez anos depois — durante os quais a graça de Genazzano pareceu-me apagada —, eu soube, por uma conversa fortuita, que no dia do desastre comemora-se a festa do Bem-aventurado Stefano Bellesini, o grande devoto da Mãe do Bom Conselho, cujas relíquias se encontram no Santuário de Genazzano.

Segundo as convenções entre Nossa Senhora e eu — se assim eu pudesse dizer — este poderia ser o sinal. Então o sinal fora dado! Mas eu só soube disso dez anos depois… Como Nossa Senhora estava ávida de um grande sacrifício!

Muito tempo depois, contaram-me o comentário de um conceituado autor — se não me engano, o Pe. Garrigou-Lagrange — segundo o qual, quando alguém se oferece como vítima expiatória, a Providência dispõe as coisas de maneira a que a pessoa não acredite estar padecendo por causa de seu oferecimento. Porque se ela soubesse disso, diminuiria tanto o sofrimento, que o próprio poder expiatório ficaria muito atenuado.

Vemos, então, a longa trajetória de um oferecimento que foi mais longe do que eu imaginava.

Nossa Senhora, por assim dizer, multiplicou o meu pedido, e fê-lo frutificar mais do que eu tinha oferecido, para que, em última análise, alguma coisa viesse para o bem da causa d’Ela.

1) Do latim: Sem a efusão de sangue não há perdão (Hb 9, 22).

2) Jo 1, 3.

3) Cf. Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n. 22.

4) Seção “Dr. Plinio comenta…”, p. 18-21.

5) Cf. conferências de 30/7/1983 e 3/2/1991.