Analisando os desequilíbrios do instinto de sociabilidade radicados no orgulho, Dr. Plinio explica como do individualismo egoísta se chega à ditadura do coletivismo.

Outro fator para desviar o curso normal do relacionamento é o orgulho. A pessoa não se contenta com o bom conceito, a consideração, o respeito que estão nas proporções comuns ter, mas ela quer fruições violentíssimas de glória, só se contenta com extravagantes glórias imaginárias. A apoteose é a sua medida, e o que não for apoteose não lhe satisfaz.

Desejo de ser adorado

Resultado: a pessoa só concebe sonhos grandiosos, irrealizáveis, ou realizáveis com custas tremendas. Para quê? Para em certo momento beber a taça da admiração universal. É o relacionamento malfeito.

Reprodução

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Da esquerda para a direita: Frederico II, José II e Luís XIV

A pessoa quer, de algum modo, substituir-se a Deus e ser considerada como uma espécie de divindade. Quer beber da taça da admiração universal assim: não é que amem a Deus nele, porque perde a graça, mas o amem como ele é. Colosso é ele, a matriz de qualidades inefáveis que os outros devem amar enquanto tais. Se Deus é ou não é autor dessas qualidades, pouco importa. Residem nele e têm que ser adoradas nele. Ele cobra essa adoração.

Anseios desenfreados de sociabilidade

Anteriormente ao século XIX, duas grandes figuras da sociedade, com grandes sucessos, eram o guerreiro e o universitário. Ainda não havia o tipo do grande orador do mundo letrado e mundano, a não ser dentro das paredes da universidade. Então, era um professor a quem os alunos forravam com as suas capas o caminho para ele passar. Certas congregações universitárias naquele tempo dão ideia da glória universitária, como nós não imaginamos.

Havia outra forma de glorificação, mas essa estava monopolizada pelas dinastias, e era o poder público, o mando em grau supremo. Alguns monarcas eram sensíveis a isso. Então aspiravam esse mando, concebido um pouco de modo salomônico. Era o sujeito que tinha o direito de mandar, mas ao mesmo tempo um homem completo, reunindo em si a glória militar com uma sabedoria maior do que a do universitário, e que este venerava. Era o rei sábio e guerreiro, que presidia a corte e a organizava.

Khaerr (CC 3.0)

Léna (CC 3.0)
Vandeanos pedem a Cathelineau que chefie a insurreição – Museu Bernard d’Agesci, Niort, França Missa em alto mar, em 1793 – Museu de Belas Artes, Rennes, França

Quando se queria elogiar alguém, o intitulava de “Salomão”. Frederico II1 foi chamado de “Salomão do Norte”. Se há um homem que quis ser “Salomão” e não conseguiu foi José II2. Outro que bateu as asas um pouquinho na grandeza salomônica e não conseguiu voar até o alto e caiu baixo foi Luís XIV.

Tudo isso são desejos de sociabilidade desenfreados que começam pelo individualismo. Segrega o indivíduo do convívio social por uma aventura individual, ainda que seja do herói que se destaca e fica brilhando aos olhos de todo mundo, levando o afeto de todos atrás dele.

Até a atriz — a era por excelência das atrizes de teatro célebres foi o século XIX — que quando acabava seu papel no teatro choviam bouquets de flores, e até caixas com joias para ela. Eram convidadas para banquetes em casas nobres, etc. Tudo isso junto constituía a atração de um afeto universal que satisfazia até à pletora o instinto de sociabilidade.

Foi o povinho que se levantou contra a Revolução Francesa

À margem disso ficou sempre uma cota de população ainda não afetada por essa deformação das elites que se operou no fim da Idade Média e foi lentamente se espalhando pelas cortes, depois descendo para a alta burguesia e que durante muito tempo não tomou a plebe.

De maneira que o equilíbrio medieval que descrevi, com a sociabilidade temperante e bem centrada em Nosso Senhor, demorou a desaparecer. E o povinho de Paris que constituiu a Liga Católica, chefiada pelos Guise, contra os protestantes, não era levado por esses sentimentos, mas ainda era o pequeno povo de Deus que se mantinha na linha antiga. E era esse o verdadeiro sustentáculo dos restos da Idade Média e do Ancien Régime nas vésperas da Revolução Francesa.

Quando analisamos os acontecimentos durante a Revolução, notamos que quem se levantou contra ela foram as camadas não contaminadas por essa marcha de egoísmo subjetivo, introspectivo, e foram essas populações que defenderam as antigas instituições. Restos de estados de espírito assim, nos nobres e no clero ainda não contaminados, levaram também a certa defesa das antigas instituições. Mas o apoio era essa massa normal, tranquila, em que o instinto de sociabilidade não tinha sido deformado tão profundamente.

O romance, o teatro ambulante, as estradas de ferro, a industrialização

Com o progresso da tipografia, os romances de amor se espalharam por toda a massa da população das grandes cidades. Ao lado dos romances, difundiram-se também as companhias teatrais ambulantes que iam de cidade em cidade levando, infalível e invariavelmente, as pessoas a sonharem com o drama amoroso que desarticulava completamente a sociabilidade dos tempos antigos, porque introduzia uma vibração nova, intensa, que matava todas as outras e arrastava tudo no seu furacão.

A própria massa camponesa começou a ser mais atingida por isso com o estabelecimento das estradas de ferro, a facilidade de ir para o interior, mas também com a atração enorme que as grandes cidades foram exercendo, por causa da industrialização, sobre as pessoas do campo.

As pessoas que viajavam para a cidade entravam no circuito do romance. Quando iam passar férias no campo, levavam essa vibração e essa disposição, deixando sempre sementes atrás de si.

Paris 16 (CC 3.0)
Tomada da Câmara Municipal de Paris em 1830 Museu Nacional, Versailles, França

Havia uma interação campo-cidade que fazia com que a cidade influenciasse muito mais o campo do que o campo a cidade. De maneira que isso se espalhou como uma mancha de azeite, largamente.

O que deu o “golpe de misericórdia” foi a possibilidade de ter cinema por toda parte, depois o rádio e, mais tarde, a televisão.

Escravidão ao coletivismo

Como se explica que desse individualismo egoísta se chegue ao coletivismo?

Dizem os franceses: Tout passe, tout lasse, tout casse et tout se remplace3. À força de se esfregar nesse mito, ele se desgasta e as pessoas acabam percebendo a irrealidade dele. E um indivíduo, ao perceber essa irrealidade, fica mais ou menos como um drogado do qual tiraram a droga. Ele acha que a vida inteira não tem mais graça, perdeu todo o interesse, o entusiasmo, o élan, e que seu problema individual não existe, seu interior está como caramujo vazio, que só emite ruídos ocos à maneira de um mar que não significa nada.

Então o indivíduo olha para o mundo e encontra outro elemento que estimula sua sociabilidade. Ele percebe que esse mundo está engajado num ritmo de trabalho acelerado e muito interessante, enquanto é um corre-corre, com vibrações próprias, que lhe dão um gosto, um gáudio próprio de viver por todos vibrarem da mesma maneira.

Então, essa covibração o instala de novo no meio dos outros. E ele passa do homem que vivia no seu isolamento, para o homem cuja sociabilidade leva a perder-se no meio dos outros, na covibração dos outros.

Notem o seguinte: é tão possante o instinto de sociabilidade, que esses amorosos que se isolavam em parques, em jardins, de fato faziam assim porque sabiam que todos se isolavam. Irem todos ao parque-jardim e várias pencas de amorosos se cruzarem uns aos outros, era um isolamento sincrônico. Se eles devessem enfrentar a opinião universal que os desprezasse de fato por isso, o Tristão e a Isolda se separariam na mesma hora. E o amor mais violento ficava reduzido a cacos, se eles soubessem que todo mundo desprezava isso.

De maneira que, mesmo nos delírios do individualismo, ainda é a escravidão ao coletivismo que dá o tom. E o que no fundo move é o fato de todo mundo estar consciente de ser acompanhado por todo mundo.

Psique coletiva de uma pequena cidade

Evidentemente, as coisas não se passaram esquematicamente como estou descrevendo: acabou a “langorosidade” e só então começa aparecer o gosto do coletivismo, das vibrações. À medida que a “langorosidade” amorosa foi decaindo, já o coletivismo das vibrações foi substituindo. Não houve hiatos. Antes de a época seguinte reinar, ela já invade a anterior, e ambas convivem até a anterior morrer. Essas coisas se interpenetram como na embocadura de um rio.

Vamos tomar como exemplo uma cidade pequena, com cerca de vinte mil habitantes.

Pela natural distribuição das coisas, algumas pessoas têm muito mais aptidão, necessidade, predisposição, feitio — às vezes sem perceber — para viverem num intercâmbio tão grande, ágil e rápido umas com as outras, que formam uma psique comum da cidade, com o temperamento próprio à cidade. É gente que quando acontece alguma coisa na cidade, faz parte ativa do grande bolo — em vinte mil habitantes, um grande bolo de talvez treze, quinze mil habitantes — que vibram em uníssono a respeito de tudo.

E não só diante de um acontecimento. Nas horas em que não acontece nada, elas descansam do mesmo modo, gozam do mesmo estado psíquico e temperamental, gozam do não fazer nada, como poderão depois gozar do fazer alguma coisa. Vivem do mesmo ritmo e da mesma vida que circula entre todas elas porque, como se interpenetram muito, acabam formando um elemento comum entre si, que é a tal psique coletiva.

Depois haverá umas cinco, sete mil pessoas dentro das vinte mil que são isso menos intensamente e que constituem uma aba um pouco esclerosada. Mas são assim muito mais por bronquice do que por qualquer outra razão. Não por uma resistência ideológica, mas porque são mais átonas, mais broncas, vibram menos e estão mais voltadas para uma espécie de atonia absoluta.

Essa psique assim constituída passa por muitas ou por todas as alternações dos vaivens da alma humana comum.

Os pecados coletivos das nações

A alma humana tem épocas em que quer mais uma coisa, e épocas em que deseja mais outra. Assim também essa psique comum, ora quer mais isto, ora quer mais aquilo. E os indivíduos que estão engajados, todos eles, como uma espécie de plantação sobre a qual sopra o vento, se inclinam à vista do império dessas necessidades.

É um fenômeno instintivo também. Não confundam isso com esnobismo. Este é o esforço brutal que o indivíduo, que seria recalcitrante, faz para se pôr dentro desse sopro. Neste caso não, o sopro é instintivo.

Há épocas em que o homem é festeiro, épocas em que ele se torna “raciocinante” e épocas em que ele se torna sentimental. Às vezes num mesmo dia o homem pode passar pela predominância de um desses três estados de espírito.

O Iluminismo coincidiu com o período em que essa alma comum quis se pôr a raciocinar. Então foi a era da popularidade dos Descartes e dos Voltaire.

E a Revolução sofística, como a tendencial, tem períodos de maior ou de menor receptividade conforme as disposições dessa “alma” de doze mil pessoas. As almas de cada uma delas, postas em comum, sopram numa direção, noutra direção, de modo isócrono. É o instinto de sociabilidade.

Dr. Bernd Gross (CC 3.0)
Busto de Voltaire Ferney, França

Praticamente os grandes pecados da humanidade são cometidos por essas sociedades. Daí o fato da responsabilidade pelo deicídio cair menos sobre este ou aquele indivíduo do que sobre a massa da nação, o povo. Porque é fato que esse povo foi manuseado. Esses manuseadores têm uma responsabilidade enorme. Mas o povo, em última análise, é o que aceita ou rejeita o manuseio. E nisso ele é o grande executor da caminhada histórica.

E é por força desse instinto de sociabilidade assim, dessa imposição de todas as personalidades intensamente comunitárias, que se fazem os grandes pecados coletivos das nações.

O prazer cibernético

O prazer de certos homens modernos é o prazer cibernético de se tornar vibração pura, mera sensação coletiva e independente do pensamento. É a animalidade que se liberta da inteligência e de todo contato com tudo que não seja a própria animalidade, e que encontra o gosto de ser ela mesma.

Para essa posição tende o mundo todo contemporâneo. É um pecado que não bastaria dizer que foi fomentado por esse ou por aquele, porque teve o consentimento individual de milhões. E foi esse consentimento que constituiu o pecado da coletividade.

Naturalmente, alguém habituado aos padrões da Revolução sofística, pensa: “Voltaire escreveu um livro, quinhentos indivíduos o seguiram.”

Mas a questão é: Quem impulsionou a tendência? Voltaire escreveu um livro, quinhentos o seguiram. Por que o acompanharam? Por que não o seguiriam na Idade Média?

Quer dizer, Voltaire tem uma parte enorme de pecado, mas o grande pecador é a coletividade. Do contrário seria negar o livre arbítrio. O homem é o principal responsável do seu próprio pecado. Ele tem graças para evitar o pecado; se pecou é o responsável essencial, tenha tido Voltaire o caminho que teve.

Desde o começo esse pecado falseou o senso da sociabilidade e, falseando, fez da sociedade um canteiro eleito para a semeadura da Revolução; os homens todos usaram a sociedade e a sociabilidade para pecar. Acovardaram-se diante da Revolução porque não ousaram romper com o princípio da escravização à sociedade, não ousaram ficar sós, ser diferentes.

Os homens não deveriam estar sujeitos à mera sociabilidade. Somos criaturas humanas, batizadas, temos Fé! E o que nos guia é a nossa Fé!

(Extraído de conferência de 5/1/1984)

1) Rei da Prússia de 1740 a 1786.

2) Imperador do Sacro Império Romano-Germânico de 1765 a 1790.

3) Tudo passa, tudo cansa, tudo quebra e tudo se substitui.

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