Carcassone, França

Durante a Idade Média, e mesmo até a Revolução Francesa, as relações sociais eram baseadas na verdadeira amizade, entendida como a Doutrina Católica a conceitua. Daí se originavam costumes que regulavam a vida social.

Evidentemente, a sociedade orgânica tem como matéria-prima homens, e, se não estudarmos essa organicidade no campo das relações privadas de homem a homem, não teremos apanhado a coisa na sua maior profundidade. De maneira que me pareceu que valeria a pena estudarmos essas relações, como começam, como brotam de homem a homem, para depois irmos mais adiante.

O verdadeiro benquerer gera a amizade

Não sei se esse pressuposto está bem explicado, porque do contrário pode causar certa estranheza eu descer de nível, mas, como verão, não é descida de nível e sim aprofundamento.

No que consiste esse analisar relações de homem a homem? Vou entrar logo na realidade prática, e posteriormente a examinaremos.

Penso que quem fizesse um estudo mais ou menos aprofundado dos assuntos da Idade Média, chegaria à conclusão de que nessa época as relações de homem a homem, em qualquer terreno, geravam uma coisa — quando elas se desenvolvessem normalmente — que hoje está quase desaparecida: a amizade. Uma amizade condicionada à natureza do assunto que os tinha levado a entrarem em contato. Mas um contato correto, mais ou menos longo, gerava necessariamente a amizade.

Por exemplo, dois homens que tomam contato entre si porque têm uma profissão e a exercem em comum. Não se compreenderia que eles exercessem essa profissão, digamos, durante dez anos sem motivo sério de queixa um com o outro, e que um não reconhecesse no outro as qualidades de bom católico, etc., e não nascesse daí um sentimento de afinidade, que não precisaria ser necessariamente pessoal, mas aquele tipo de afinidade que decorre do fato de estarem marcados pela mesma profissão.

Pode haver uma afinidade de caráter religioso-moral. Dois homens reconhecem um no outro um bom pai de família respeitável, um católico prestimoso, que efetua bons serviços à paróquia, que nas relações comuns não mente, cumpre a palavra, paga bem as dívidas que deve pagar, ou não tem dívidas, é econômico, parcimonioso, está construindo razoavelmente sua vida. Ainda que não tenham afinidades pessoais, isto gera entre eles uma afinidade profissional, que redunda numa amizade, porque o apreço recíproco de qualidades leva as pessoas a uma confiança, a um verdadeiro benquerer, o qual gera uma amizade.

Amizade de caráter ontológico

Numa sociedade intensamente católica, onde a forte maior parte das pessoas vive em estado de graça, e praticando bem os Mandamentos, etc., essas amizades nascem do contato profissional ou de outros contatos. Vejamos diferentes exemplos.

Dois outros homens se conhecem porque fazem parte, há muitos anos, da mesma Irmandade que se consagra ao culto do Padroeiro da cidade. Então, naturalmente se estabelece o mesmo mecanismo de compreensão mútua e eles se estimam. Ou será porque são parentes, e aí o caso é muito mais sério, pois na Idade Média se compreendia — e é a doutrina da Igreja — que as relações de família devem gerar, independente das afinidades pessoais, uma amizade de caráter ontológico, metafísico.

Ao pai e à mãe — e os filósofos, os moralistas dão esta razão — deve-se homenagem e respeito, ainda quando eles sejam ruins, porque são nossa causa; e o efeito deve, filosoficamente, reverência à causa. E por isso nasce daí uma série de bons ofícios dos filhos para com os pais, do respeito típico do efeito para com a causa, que se poderia fazer sentir assim:

Imaginemos um artista que esculpe em pedra uma imagem de um homem, e logo depois fosse dado a ela o dom de inteligir e mover-se; e que a primeira coisa que a estátua fizesse era dar uma bofetada no escultor. Nós teríamos a impressão de que essa estátua violou a ordem das coisas. Por quê?

Aquele que a esculpiu não é o pai, mas a causa, e sendo a causa daquela escultura, esta não pode ultrajar a causa. É uma razão de caráter profundo. E, dessa maneira também, a pertencença à mesma causa, quer dizer, vários provirem da mesma causa, cria entre eles um nexo. E o que se pode dizer do pai com os filhos, deve-se afirmar, guardadas as devidas proporções, dos avôs, bisavôs e até dos trisavôs, se alguém chegasse a conhecê-los; e, portanto, daquela ascendência à qual nós somos vinculados — mais ou menos remotamente, mas vinculados — por causa de uma fonte, uma origem comum da qual procedemos.

Confiança superaguda

Aí se acresce outra coisa: na Idade Média, em geral, toda a família tinha a mesma profissão ou profissões afins. Se, por exemplo, o pai era sapateiro, e pertencia à corporação dos sapateiros, o gosto dele era que o filho fosse sapateiro como ele — hoje não, o sapateiro quer que o filho seja advogado, médico ou engenheiro — e que tivesse até vários filhos sapateiros, que em diversos locais da cidade abrissem sapataria.

Mais tarde, já no início do Ancien Régime1, quando começavam a aparecer as sociedades comerciais, os familiares constituíam firmas, que antigamente em São Paulo eu conheci muito: “Fulano e irmãos”, ou “Fulano e filhos”, ou então “Família tal”, como donos. É o nome da firma que explora o negócio, todos trabalham juntos e têm um vínculo comum na Igreja Católica, mais firme, mais forte, mais vital do que todos os outros vínculos. E junto com esse vínculo, o vínculo da família no seu fundamento filosófico, como acabei de expor.

Em terceiro lugar, o vínculo de família criando normalmente afinidades que existem entre parentes, pela mesma educação, pelo mesmo temperamento, modo de ser, às vezes até pela semelhança dos rostos.

Depois, todas as outras relações sociais tendendo, na medida em que se prolongam, a formar vínculos mais profundos que se chamam amizades. De maneira que enquanto na vida contemporânea o nexo que prende uns homens aos outros são interesses, na vida antiga o que prendia era a amizade. Amizade podendo às vezes jogar contra o interesse.

Quer dizer, um amigo pode definir-se como aquele que está disposto a sacrificar o interesse por seu amigo, a confiar nele, e confiar não cegamente — a expressão “confiança cega”, bem analisada, é estúpida —, mas é uma confiança superaguda, que foi a tal ponto que levou a perceber no outro as razões pelas quais ele merece confiança. A confiança não é um ato de cegueira; quando não é uma coisa de um tonto, é um ato de perspicácia.

Isto é algo tão diferente do mundo de hoje, que nos é meio difícil compreender como seria uma sociedade vivendo assim, mas creio que sem esse elemento fundamental a sociedade orgânica não é possível.

A necessidade de negócios, etc., tanto quanto a natureza — a necessidade muitas vezes é natural — geram amizades; e toda relação humana que se desenvolve normalmente, e de um modo um tanto prolongado, produz amizade.

A verdadeira caridade

Um outro ponto é que as amizades são expansivas por si, de maneira que há um provérbio português, que passou para o Brasil: Amigo de meu amigo, meu amigo é. Quer dizer, o círculo de amigos tende a espraiar-se, dilatar-se e, numa cidade pequena, chega a abranger toda a cidade como se fosse uma família só.

De permeio com isso, existiam numerosas Ordens Religiosas na Idade Média, sem falar dos padres seculares, com esse poder de atração sobrenatural que possui a Igreja, fazendo com que numa cidadezinha, por exemplo, com vinte mil habitantes, possa facilmente ter dois, três conventos sem que ninguém julgasse demais. Conventos vivendo de terras que lhes foram doadas, as quais os religiosos mandavam cultivar, de donativos que recebiam, de direitos de cobrar impostos, que o senhor feudal da cidade, ou o governo municipal, davam-lhes; eles viviam disso e mantinham obras de caridade. E estas eram outro circuito de amizade, porque se entendia que o homem perfeitamente caridoso não é só o que manda doações para a obra de caridade, mas o que visita os doentes, e em geral os que sofrem.

Por exemplo, no ambiente da Idade Média, uma pessoa sabe que Fulano, seu colega, tem um filhinho que nasceu cego; o pai está fazendo o possível para curá-lo, mas não consegue e sofre muito com isso. Então, a pessoa aparece num domingo na casa desse colega, com o seu próprio filhinho para brincar com o filhinho cego do outro, explicando-lhe: “Você vai brincar com ele que é cego, precisa tomar cuidado, ter pena porque você um dia pode ficar cego também.”

O pai do menino cego via este passar uma tarde entretida, e sabia que o amigo estava exigindo um sacrifício de seu próprio filho, em benefício do filho dele. Podemos imaginar o vínculo que isso cria numa sociedade medieval!

Creio que sem nós restaurarmos essa noção das relações pessoais, todo o conceito de sociedade orgânica não se apanha bem, fica uma coisa ao mesmo tempo muito bonita, mas tem-se a impressão de que algumas raízes ficam de fora do chão.

A doçura de viver

Essas considerações são altamente distensivas dos nervos. E, de outro lado, não apresentam a família como um cárcere. É todo um ambiente que se desdobra: os parentes, depois há relações parecidas com as que se têm com os parentes, uns amigos tão próximos que são como parentes; depois os mais estranhos. Isto é grande como o mar que vemos longe, perto, em várias distâncias, e nos regalamos de observá-lo nessas diversas posições. Assim é essa espécie de mar de amizade, mas de católica boa vontade que se espraia por todo um ambiente, e que é propriamente a douceur de vivre2.

O amigo está disposto a sacrificar seus interesses pelo outro a ponto de perceber as razões pelas quais ele merece confiança.

Francisco Lecaros
Bayard arma cavaleiro a Francisco I na batalha de Marignan – Castelo de Blois, França

Eu queria que lessem Gens de la vieille France, do Lenotre3 — não é mais a Idade Média, mas a douceur de vivre existente na França antes da Revolução Francesa, cuja explicação se encontra aqui.

Por exemplo, um homem que possuía uma hospedaria na qual uma família inglesa hospedou-se por uma noite para prosseguir viagem no dia seguinte rumo a Paris. O dono da hospedaria e o inglês conversaram e fizeram muito boas relações. Na hora de pagar as despesas, o dono cobrou uma quantia que o inglês achou pequena e quis pagar mais; o proprietário não concordou, saiu uma discussão amistosa entre os dois, mas afinal ele cedeu e cobrou mais, e o inglês pagou.

Quando o inglês estava longe, ele precisou de alguma coisa que estava no porta-malas da carruagem, abriu-o e encontrou uma dúzia de garrafas de vinho que o francês tinha ali colocado às ocultas…

De onde vem isto? É da possibilidade de dois homens se encontrarem e terem de fato se formado vínculos de tão boa vontade recíproca, que na simples passagem criava um relacionamento deste tipo.

Um exemplo de autêntica amizade

Meu avô tinha terras pelo sistema clássico com que os paulistas antigos faziam fortuna, quer dizer, os pais dele trabalhavam em São Paulo e conseguiam dinheiro exercendo várias profissões. Quando podiam, eles compravam extensões de terra enormes, situadas longe, a dois, três, quatro ou cinco dias de viagem da capital, em lugares completamente ermos, onde a terra era baratíssima. Eles educavam os filhos aqui e, quando concluíam os estudos, o pai lhes dava um dinheirinho e dizia:

— Você deve ir para o interior, no limite em que a civilização chegou, e vai exercer a sua função lá. Eu lhe dou estas terras e, com o dinheiro que economizar, vai fazer uma fazenda para você lá, de maneira que você, hoje que não tem nada, morre fazendeiro.

Isso, aliás, deve ter acontecido nos países da América do Sul que tinham terra sobrando, e o sistema provavelmente foi mais ou menos esse.

Meu avô se formou na Faculdade de Direito e a minha avó tinha herdado do pai terras muito grandes, suficientes para formar uma fazenda esplêndida.

Ele era muito bom advogado e fez dinheiro rapidamente, exercendo a profissão. E, à medida que ganhava dinheiro, foi montando uma fazenda, e assim tocava a vida. Até que um dia passou pelo escritório dele um senhor — o qual era seu amigo desde o tempo de criança, e que o Imperador tinha elevado a Barão de Araraquara — e lhe disse:

— Totó…

O meu avô chamava-se Antônio, e seus amigos íntimos o chamavam de Totó.

— Totó, eu estive vendo sua fazenda.

— Que tal?

— Olhe, você é muito bom advogado, mas é um desastre como fazendeiro. Sua fazenda é a mais mal montada que pode haver, porque está gastando lá um dinheiro que não fica representado pelo que você despende. Você está se enterrando com isso.

— Mas o que vou fazer; não tenho jeito para dirigir aquilo.

— Se você quiser, eu tomo conta de sua fazenda e lhe entrego pronta daqui a alguns anos. Basta o seguinte: à medida que eu for lhe mandando as contas, você vai me enviando dinheiro para aplicar lá.

O meu avô aceitou, e tinha a delicadeza de não lhe perguntar como ia fazer. Ele também não dizia.

Ao cabo de tantos anos, ele apareceu e perguntou:

— Totó, quando é que você vai visitar a sua fazenda?

— Quando você quiser.

Marcaram o dia e foram. Estava uma fazenda primorosa, valendo muito bom dinheiro, por causa do trabalho do Barão de Araraquara ali. Ele fez isso sem cobrar nada e foi amigo do meu avô até morrer.

Isso era uma amizade nascida no colégio em que estudaram. Mas como no colégio se formava tanta amizade? Por causa de um ambiente; e o ser colega, uma coisa completamente irrelevante na vida de hoje, gerava frequentemente amizade.

O que decorria daí? Formava-se com muita facilidade toda espécie de grupos sociais.

(Continua no próximo número)

(Extraído de conferência de 3/9/1991)

1) Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.

2) Do francês: doçura de viver.

3) G. Lenotre, pseudônimo de Louis Léon Théodore Gosselin (*1855 – ­†1935). Historiador e escritor dramático francês.

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