Berlim, em 1902

A partir de uma análise profunda do temperamento do povo alemão, Dr. Plinio faz luminosas considerações sobre o costume, mostrando como este é o lado precioso transmitido pela tradição e, ao mesmo tempo, a fixidez de rumos de um povo na fidelidade a si próprio.

Vamos estudar o costume: o que é, como ele se fixa, relação entre costume e doutrina, costume e estrutura político-social.

Espaço físico e espaço psicológico

Para isso, parece-me que podemos partir da análise dessa fotografia de Berlim, entre 1895 e 1914. Portanto, retratando o ambiente dos anos de 1870, com a guerra franco-prussiana e a vitória da Alemanha, até 1914, com a I Guerra Mundial e a posterior vitória das democracias e da França.

Collection Kuhn (CC3.0)

Chamo a atenção, em primeiro lugar, para o seguinte: é um aspecto colhido de uma rua onde não se vê ninguém apressado; o corre-corre norte-americano não está presente.

Waldemar Franz Hermann Titzenthaler (CC3.0)

Uma coisa curiosa que se nota aqui é a seguinte: pelo trânsito, pelas pessoas que estão andando, é evidente que se trata de uma parte central de Berlim. Notem uma mistura entre passeio social e trato de negócio. Algumas pessoas estão manifestamente em passeio social, as senhoras sobretudo. Algumas delas muito hirtas estão enfarpeladas, com chapelões, vestidas com cuidado, como não se vê hoje em dia uma senhora que tenha trajes correspondentes aos que havia nessa época; e com esses trajes ela não sai a pé, mas de automóvel.

Collection Kuhn (CC3.0)

Vê-se que há alguns homens pelo meio que estão preocupados, tratando de negócios. E que o público que esses ônibus − uns transportes coletivos aí pelo meio − vão transportando é de gente que não está passeando, mas vem para a cidade a fim de fazer algo.

Outra coisa é a seguinte: os espaços. As pessoas não estão empilhadas umas em cima das outras, mas têm folgadamente espaço para andarem de um lado para o outro. É o espaço material que se liga ao espaço psicológico. Liga de que maneira? Ninguém tem muita pressa, não está muito preocupado nem acabrunhado, que é uma forma de espaço mental; por outro lado, há espaço físico em torno de cada pessoa: ninguém está na iminência de dar um esbarrão em outrem.

Homens e mulheres têm algo de militar

Essa gente, entretanto, já tem notícia de como são as ruas de Nova Iorque, e o entusiasmo deles vai para essa cidade e não para Berlim. Quer dizer, psicologicamente já estão andando em Nova Iorque.

Não que eles desejassem uma transformação imediata disso para ser como Nova Iorque. Mais ainda, eles nem estão pensando em viajar para lá. Mas desejam para a Alemanha, a médio termo, a novaiorquização. E, certamente, se tivessem alguém que procurasse criar no espírito dos netos deles uma nostalgia dos antigos tempos, e como voltar as costas a Nova Iorque, eles tirariam os netos dessa influência.

Isto aqui é, portanto, um modo de ser do progressismo nesse tempo. Eu chamo aqui progressismo a adoração do progresso.

Entretanto, misturando-se curiosamente com isso há um traço evidente da Alemanha kaiseriana: qualquer coisa que diz existir nessa cidade uma corte. Essas senhoras, esses homens, etc. têm na sua presença uma corte. E uma corte preponderantemente militar.

É a forma de governo determinando até o modo de andar. E havia aquele Kaiser de estampa muito militar, com cinquenta ou oitenta dinastiazinhas cujos chefes locais andavam sempre de uniforme e se gabavam de seus regimentos locais, integrantes do exército alemão. Isso se nota até no modo das senhoras andarem; a postura delas tem qualquer coisa de militar.

Marido, filhos, todos vão para a guerra, e as senhoras ficam fazendo bandagem para os feridos, ou tricô quando chega o inverno, a fim de cobrir os soldados; elas participam do esforço de guerra, ativa e militarmente.

Nos passos de alguns homens há algo de militar. Os mais civis ainda são meio militares. Não é o passo de um civil de hoje.

Notem o alto pudor dos vestidos. Eles não são bonitos, mas feitos de muito bons tecidos e têm uma certa dignidade e solenidade.

Há uma nota de hierarquia presente, inclusive nas relações entre as pessoas. Não é um trato igualitário.

Alemanha: aspectos externos e internos

Em 1918, portanto vinte anos depois, toda essa sociedade, essas dinastias estavam no chão. Olhando para isso, dir-se-ia que há recursos para viver cinquenta anos nessa situação, pois tem muita vitalidade. Entretanto, está tudo podre. Como se explica isso?

A guerra contribuiu muito, foi um trambolhão medonho, mas não justificaria isso. Vou dar uma prova: a monarquia dos Habsburg, muito menos militar, menos firme na aparência, etc., foi muito mais difícil de derrubar. O Tratado de Saint-Germain obrigava o destronamento dos Habsburg da Áustria, da Hungria, da Boêmia e de todos os tronos anteriores. E restaurar os Habsburg em qualquer trono autorizava imediatamente intervenção militar de todos os outros Estados na monarquia danubiana; o que equivaleria a dizer existir um pânico da popularidade dos Habsburg. E aqui não houve nada disso. Como se explica?

Vamos nos deter no caso. Há aqui hierarquia e monarquia.

Tiia Monto (CC3.0)
Vista de um campo em Ehrwald, Tirol, na Áustria

Não é uma cidade inteiramente laica, o sombrio está presente aí. Mas, para completar o quadro, devemos considerar o seguinte: Em dias bonitos, esses homens vão pegar borboletas no mato; põem calças curtas de tecido verde, com os joelhos de fora, meias grossas, chapéu com pena, e cantam acompanhados pela flautinha canções do Tirol; as mulheres vão também, vestidas de tirolesa, carregando sacões com sanduíches e outras coisas que fizeram em casa para os maridos e as crianças. E, encontrando uma árvore muito bonita, se seguram pelas mãos uns aos outros, fazem uma roda em torno da árvore e cantam.

Isso me causaria encantos, eu acharia ultrarrefrigerante e regozijante. Apesar de todos os meus superenlevos com a França, isso não tem nada de francês, mas é uma coisa maravilhosa. Eu me habituaria muito mais depressa em morar na Alemanha do que na França; entrava nisso de cheio, imediatamente.

Dessas coisas, qual é o suporte?

Primeiro, ideias estão presentes? Em segundo lugar, isso sustenta as ideias ou as ideias sustentam isso? A apetência desse povo criou clima para essas ideias, ou estas modelaram o povo? Analisadas essas questões, veremos o que é um costume.

Poder-se-ia fazer uma grande objeção ao que estou dizendo. Imaginem uma caixa de ferro, tendo na tampa e em todas as faces laterais pregos com as pontas voltadas para fora. Esse é o aspecto externo da Alemanha. Suponham que dentro da caixa tudo é acolchoado com pena de cisne, de uma cor alegrinha, engraçadinha. Essa é a Alemanha. Porque a vida íntima deles é a mais diferente possível daqueles pregos. Os pais querem bem aos filhos, em alguma medida os pais se querem bem entre si, e os irmãos se querem muito bem. A família tem uma coesão muito efetiva. E são capazes de cantar a afetividade familiar, tocando flautinha, violino; a mãe que entra de manhã no quarto do filho levando-lhe algo que ela preparou, tendo levantado mais cedo, porque o filho tirou nota boa no exame do dia anterior.

Coisas assim tornam o interior da casa ativo, gostoso, vivo, e também o interior de um regimento, de uma usina ou de uma escola.

BNS (CC3.0)
Imperador Carlos da Áustria

Jazida de energia que marcha

Vamos agora remontar ao que seria o mais interno disso.

Há no povo uma jazida, mais ou menos como aquelas de carvão e de ferro do Rhur, das quais, por mais que se tire, ainda têm mais dentro; tenho a impressão de que chegam até o centro da Terra, e até a varam do outro lado. Nos alemães existe uma espécie de jazida de energia, e energia saudável com a pulsação de um coração saudável, e que marcha; todo ritmo vital vai no impulso de uma marcha interna regulada e incansável. Não que eles estejam isentos de preguiça, mas esta é diferente de cansaço. Cansaço é uma situação de exaurimento. A preguiça é uma falta de vontade, viciosa, de contribuir com seu esforço.

Preguiça eles têm ou não, como qualquer um. Mas possuem uma dificuldade de cansar, uma regularidade, uma força, uma coisa inexaurível, e que é o grande capital da nação, coligada com uma saúde muito boa, também não se pode negar, não tendo a longevidade. Eles não confundem saúde com longevidade; é a plena Leistung1 durante o período da maturidade.

Se um homem, durante o período da maturidade – e até desde menininho –, deu uma Leistung forte, ele viveu. Teve aquele capital de Leistung, que aplicou em tudo.

Daí decorre uma necessidade do método e uma ausência do capricho. Eles têm gente caprichosa, é natural, está na natureza humana, mas o capricho é pouco preponderante dentro deles. É o método, o sistema, o planejamento, etc. que preponderam e tornam o fundo do temperamento deles apetente do estado militar. Quer dizer, isto forma militares e dá apetência de um modo de fazer que a condição de militar exige; de maneira que a militarização da vida é em parte pela importância que exerce na concepção deles, mas em parte porque toda a vitalidade deles pede isso. E querem isso, eles são assim.

Era uma época que não tinha cosmopolitismo, essas viagens internacionais, e cada povo se formava com o desenvolvimento natural de todas as suas próprias qualidades. Como resultado, eles modelavam uma vida de família, de cidade, modas, trajes, cultura exatamente assim. É a própria lógica deles, são batalhões de argumentos e silogismos que vão se dirigindo para a destruição de um sofisma.

E o modo de ser precisava ser o Império, com a tendência ao universal, que não é só a continuidade de Carlos Magno.

O empuxe, a expansão ordenada de tudo isto foi a história deles. A meu ver o apogeu da Alemanha nessa época – não do mundo germânico, com a Áustria, porque neste caso já é outra coisa – foi esse. E chegou a uma situação em que o temperamento e o modo de ser influiu a fundo num certo modo ordenado de viverem a Fé, os costumes e as relações privadas. E a Fé mais as relações privadas influenciaram as relações públicas. E estas, por sua vez, confirmaram nisso o domínio privado. Havia uma espécie de mistura entre o domínio privado e domínio público, onde tudo era coerente, desde o topete da senhora até a ponta do sapato bem encerado do militar, ou a cartola do professor, na plena floração e frutificação de uma coisa que era ela mesma.

Dois fatos culminantes da História da humanidade

O que é o costume dentro disso? O costume é feito pela repetição dos hábitos, nas mesmas situações, sempre se renovando para se explicitarem e se quintessenciarem.

Isto vem constituindo um legado histórico, a tradição: aquilo que o costume transmite de uma geração para outra. O costume é, portanto, a embalagem, o lado precioso que a tradição transmite. Mas é também a fixidez de rumos de um povo na fidelidade a si próprio.

Leopold Kuppelwieser (CC3.0)
Imperador Francisco I

E com a tradição e costume conjugados, a fisionomia da nação exprimindo tudo isso inteiramente, tem-se um povo que chegou à sua plenitude. É o traçado reto de uma história.

A Áustria fez isso com todas as peças da monarquia danubiana. Ela não oprimiu, não comprimiu, mas assimilou, soube fazer um cocktail, foi uma realização, ao mesmo tempo meio militar – porque é claro que sem tropas aquilo não se mantinha –, porém cultural e diplomática, etc., de uma altura muito grande. Por isso eu acho que a Áustria não é puramente alemã. Ela é uma obra-prima da política europeia.

Um oficial inglês escreveu uma biografia do Imperador Carlos, depois de este ser preso em Budapeste. Ele foi levado numa canhoneira inglesa pelo Danúbio até o Mar Negro. E passando por todos aqueles povos às margens do Danúbio, que eram, por assim dizer, “perseguidos” pelo Império, no percurso inteiro o povo todo aplaudia. Até em países – eu achei isso mais tocante – que nunca pertenceram ao Império Austro-Húngaro, como a Romênia. O Danúbio desemboca na Romênia, lá a população com trajes regionais cantava e aplaudia enquanto ele passava.

Este episódio e aquela atitude da população de Viena que quis oferecer uma festa ao Imperador Francisco I, para compensá-lo da derrota de Austerlitz2, porque ficaram com pena, são desses fatos culminantes da História da humanidade.

Isto é uma coisa que, por exemplo, um sul-americano, que se desenvolvesse como um austríaco se desenvolveu, poderia fazer talvez até com mais espírito de abarcamento; somos nós, já não é a Alemanha. Por outro lado, imaginem que se pusesse com esse povo que está aí dominando o Império Austro-Húngaro, como ele era nas vésperas da I Guerra, os croatas, por exemplo; eles realizariam atentados, gritariam injúrias, jogariam ovos podres, fariam de tudo.

Então, na apreciação da Alemanha tenho muita admiração. Mas na comparação com a Áustria entra muita restrição de minha parte. Creio que todos veem ser razoável.

Não se organizou uma expansão imperial no mundo que de tal maneira fosse isso. A romana teve algo, mas não foi assim. Ali é o triunfo do espírito cristão propriamente, algo da presença de Nosso Senhor Jesus Cristo.

(Continua no próximo número)

(Extraído de conferência de 29/8/1986)

1) Do alemão: Poder, capacidade de ação.

2) Batalha, ocorrida em 1805, na qual Napoleão derrotou a Áustria, provocando a queda do Sacro Império Romano-Germânico.