Numa carta de Dr. Plinio e noutra de Dona Lucilia, percebe-se a seriedade, o respeito e o carinho, que são predicados de um mundo profundamente contrarrevolucionário e, enquanto tal, autenticamente católico, onde há desigualdades harmônicas e bem concatenadas. É o oposto do mundo revolucionário, no qual o indivíduo se sente peça de um mecanismo, fragmento anônimo e sem expressão de um mesmo ser total que não significa nada e, portanto, a bem dizer morto dentro daquilo em que ele existe.

Ao nos referirmos ao relacionamento humano, quando é que devemos dizer “convivência” e quando precisamos usar o termo “convívio”? A meu ver, é uma pergunta toda feita de musicalidade, pois a diferença está nos matizes da língua portuguesa, ao menos a falada no Brasil. Não sei bem se no português de Portugal, do qual eu admiro muito outros matizes, esse existe.

Convívio e convivência

No meu modo de entender, “convívio” é uma palavra mais nobre e mais destinada às coisas imponderáveis, que nos permite fazer sentir a riqueza do significado do relacionamento.

A convivência é uma forma menos nobre na qual se quer fazer sentir aquele gênero de interpenetração de almas, resultante do mero fato de as pessoas estarem muito largo tempo juntas.

A essa distinção corresponde uma noção mais profunda, porque realmente há uma forma de intimidade que só a convivência dá. Embora seja um estilo inferior de intimidade, ele tem seu papel no relacionamento total. Contudo, este relacionamento lucra muito mais com o convívio do que com a convivência.

Onde meu convívio com Dona Lucilia se refletia era em nossa correspondência epistolar. Por exemplo, ao rever recentemente duas cartas, emocionei-me ao constatar a identidade de datas. Com efeito, nunca imaginei que eu estivesse redigindo a mamãe no mesmo dia em que ela estava me escrevendo também. Ademais, tenho má memória e logo após ter postado a carta no correio já esqueci o dia em que a redigi. Também não me ocorreu sequer de mexer nessa correspondência antiga que eu nem sabia que Dona Lucilia guardava.

Aliás, há até um detalhe tocante neste sentido: algum tempo antes de minha mãe morrer, notei que ela ia às gavetas de um móvel de seu quarto e rasgava muitos papéis. Não percebi que ela, prevendo sua morte, estava destruindo aquilo que pudesse dar trabalho aos outros para verificar. Não me passou pela cabeça, porque a saúde dela era tão regular que não podia se pensar na proximidade da morte. Anos antes ela tivera uma crise cardíaca, mas havia passado já sete anos. Depois disso vi o médico, após auscultar o coração dela, virar-se para mim e dizer baixinho: “Não sei o que houve… Parece o coração de outra pessoa. Está novo e bom!”

Fico comovido de ver que ela conservou, não sei se todas, mas pelo menos muitas das cartas que lhe escrevi.

Diferença e semelhança de modos de ser

Relendo as duas cartas juntas, como um terceiro que as analisa de fora, pareceu-me que traziam uma diferença e, ao mesmo tempo, uma semelhança prodigiosas de modos de ser individuais.

Em que está a diferença prodigiosa? Na carta de Dona Lucilia nota-se o temperamento feminino, portanto muito delicado e voltado para as coisas com cuidado, expondo compassadamente e com primor todos os pormenores do que ela escrevia, pesando bem todas as palavras, à maneira de um mosaico bem arranjado onde cada pedrinha foi polida adequadamente antes de ser colocada no lugar com esmero.

Na minha missiva vê-se uma coisa diferente: é um lutador que está viajando para melhor lutar; que escreve às carreiras no meio de uma porção de outras coisas que precisa fazer; que redige exprimindo com todo o impulso possível umas duas ou três ideias centrais. O impulso poderá valer alguma coisa, os pormenores nada. Porque as ideias centrais estão fortemente – eu diria truculentamente – vincadas, e o resto fica assim insinuado, certo de que ela saberia pentear as fímbrias despenteadas do tapete que eu mandava. E que, recebendo de mim essas linhas gerais, ela compreenderia depois cada coisinha como era. E que seria perda de tempo passar a minha mão, à maneira da mão cuidadosa dela, sobre os pormenores que mamãe instalaria na cabeça dela muito melhor do que eu mesmo poderia fazer.

Então, as minhas não são cartas bem cuidadas exceto num ponto: que as ideias centrais estivessem bem firmes, bem expostas e, se possível, até fulgurantes. O resto que se arranje. Mamãe arranja… Lá vai a carta.

Porém, descontada essa diversidade de modos de exprimir – em que entra a minha nativa truculência, o meu gosto pelas hipérboles, ao contrário do gosto dela pelo comedido –, nota-se a semelhança. E a semelhança está na enorme valorização dada por cada um à relação de afeto com o outro. E cada uma das duas cartas, a seu modo, afirma este afeto de uma maneira que é, ao mesmo tempo, a manifestação da certeza inteira do afeto da outra parte. De ambos os lados o empenho não é testar o afeto da outra parte. É conseguir manifestar inteiramente o afeto que se tem.

Seriedade, respeito e carinho

Apesar da diferença de situações – ela é mãe e eu, filho –, é um afeto impregnado de muita seriedade, de muito respeito e carinho. Então, a mesma escola de seriedade, respeito e carinho, existente nas duas cartas, é expressa por cada qual a seu modo.

Assim, a seriedade e o modo pensativo de ser dela se exprime na própria lentidão. A lentidão do curso das coisas é a lentidão de um pensamento que caminha atento a todas as circunstâncias e a todos os pormenores, que não tem pressa de concluir e que vai assimilando tudo, que percebe, e depois expondo na mesma lentidão tudo quanto pensa. E na carta tudo tem a sequência desse pensar e sentir. Tudo se exprime em ordem, e dir-se-ia que é uma grande dame que passa avançando tranquila e sobranceira, deixando para trás a longa cauda das suas impressões.

Essa é a seriedade, a gravidade. Nós poderíamos dizer que os outros predicados da carta vão na mesma linha. Quer dizer, o respeito é o mesmo. Ademais, ela está certíssima de todo o respeito – dizer respeito é muito pouco –, da veneração entranhada e profunda que eu tenho para com ela.

Mas, ao mesmo tempo nota-se que, tanto quanto a mãe deve respeitar o filho, ela me respeita, e que ela se respeita enormemente enquanto mãe. Não há, por exemplo – não estou criticando, é um modo de sentir as coisas –, certas fórmulas que começaram a se usar depois do tempo em que ela me formou, como expressões assim, para pai ou mãe assinarem cartas aos filhos: “Teu pai e amigo ou tua mãe e amiga.” Amigo é tão menos do que pai ou do que mãe, que se tem a impressão de que na fórmula “sua mãe e amiga fulana de tal” quase o termo “amiga” reduz a palavra mãe ao tamanho de um ponto final. Entre mamãe e eu nada havia dessas relações meio alegres entre camarada e camarada.

Vê-se que Dona Lucilia fala com a gravidade de quem está falando para um filho. E que ela sempre se habituou a falar de cima respeitando-o, respeitando-se e com isso ensinando-lhe a respeitar e também a tomar gosto de ser respeitado.

A carta que escrevi para ela, por mais apressada e até atabalhoada que seja, é densa e quase explosiva de respeito, o qual se nota em todos os pormenores, em todos os afetos, de todos os modos. Mas não é respeito só, é veneração.


Quanto ao carinho, de parte a parte são tão parecidos que se diria ser um único carinho procedente de dois polos, de um e de outro lado do Atlântico, que se encontram. Existe ali a afirmação de um modo de ser, de pensar e de sentir as coisas que vale a pena descrever dessa maneira. Não porque estivéssemos em jogo ela e eu, mas porque tem esse predicado de ser profundamente contrarrevolucionário e, enquanto tal, autenticamente católico.

Dois mundos: o da Revolução e o da Contra-Revolução

O que isso tem de profundamente contrarrevolucionário e católico? Se comparamos as máximas revolucionárias com o ambiente que envolve essas duas cartas e a tradição que está por detrás desse ambiente – a velha e milenar tradição da Civilização Cristã – e, por detrás disso, a Igreja Católica, mestra e fonte de vida dessa tradição, e, na Igreja Católica, Nossa Senhora e Nosso Senhor Jesus Cristo, então compreendemos a completa diferença entre a Revolução e a atmosfera dessas duas cartas. São dois mundos.

Poder-se-ia perguntar: Em face desses dois mundos, em qual deles uma pessoa se sente bem encaixada? A meu ver, alguém só se sente verdadeiramente homem no mundo das desigualdades harmônicas e bem concatenadas. No outro, o indivíduo se sente peça de um mecanismo, tão somente molécula de um mesmo copo de água, fragmento anônimo e sem expressão de um mesmo ser total que não significa nada e, portanto, a bem dizer morto dentro daquilo em que ele existe.

Imaginem, por exemplo, que uma sala enorme, construída de cimento, estivesse organizada de maneira a ter elementos necessários para nela viverem duzentos beija-flores esvoaçando de um lado para outro, segundo seus pendores e peculiaridades, atraídos por esta ou aquela flor. Comparem um desses beija-flores com um grão de areia sepultado no meio da laje, fixo, atarraxado e fazendo parte da massa de cimento, nunca se movendo nem sentindo, apenas existindo. Esta é a diferença entre uma alma massificada no anonimato igualitário e a que vive de sua vida própria, num convívio cheio de seriedade, respeito e carinho, em meio a desigualdades harmônicas como o esvoaçar dos beija-flores, os quais uns vão para cima, outros para baixo, jamais dão trombada e nem voam no mesmo plano. Enfim, é um outro mundo!

(Extraído de conferência de 8/3/1980)