Ao contemplarmos, nas paredes deste ou daquele palácio, algum tapete do legendário Oriente, com desenhos misteriosos e matizadas cores que o tornam tão apreciado, ficaríamos surpresos se nos contassem as mil vicissitudes pelas quais ele passou, até ser exposto aos olhares curiosos e admirativos do visitante.

Concebido pela fértil e fantasiosa imaginação de algum rústico montanhês, foi ele meticulosamente tecido por mãos hábeis e fortes, acostumadas a alternar o manejo da cimitarra em combate com o da agulha do tear. Do ágil tramar aparentemente caótico de um sem-número de fios diversos, surgiu em pouco tempo uma bela superfície retangular da qual é difícil dizer o que mais encanta: se a forma de seus arabescos, o cambiante de suas vivas cores ou o sedoso de sua textura. Porém, a história do fabuloso tapete apenas começou.

Seu colorido ainda não adquiriu a firmeza necessária, nem a vivacidade adequada para encantar o olhar das gerações que, ao longo dos tempos, dele se utilizarão para amaciar o ruído de seus passos. Para tal deverá ser ele provado durante longo período no esquecimento, submerso em certas águas cujas propriedades lhe hão de conferir um quê de perenidade. Se o tapete pudesse pensar, do fundo das inóspitas paragens em que o rude artesão o lançou, certamente se perguntaria perplexo qual seu destino. Acabaria ele os seus dias sob o lodo? Ou na tenda ignota de algum sheik do deserto? Ou ainda no salão prestigioso de uma duquesa?

Subitamente, quando menos esperar, será resgatado das profundezas em que jaz, e exposto à luz do sol. Depois, passando por vales distantes, suportando os calores de longas travessias, ou permanecendo ingloriamente enrolado no armazém de algum comerciante, chegará por fim às mãos de seu definitivo dono. Estendido sobre o chão, será pisado anos a fio, muitas vezes por pessoas indiferentes à sua beleza. Ali ficará, humilde e fabuloso, até que um dia imprevisto morre seu dono. Seu filho, mais sensível que o pai, é o novo proprietário e profundo admirador do belo tapete. Abre-se então para este uma era de glória, pois seu novo senhor, a fim de subtraí-lo ao caminhar dos homens, suspende-o acima de todos os adornos do salão para ser apreciado pelos que têm alma grande.

Virtudes ainda mais admiráveis

Foi bem o que se passou com Dª Lucilia ao transpor os umbrais da ancianidade. A partir do momento em que completou 80 anos de idade, suas virtudes se tornaram ainda mais notórias aos olhos daqueles que haviam tido a graça de observá-la.

Revendo os diversos aspectos da matizada alma de Dª Lucilia, podemos dizer que talvez os mais belos eram harmonicamente opostos: de um lado, sua grande bondade, que transparecia em seu trato afável, sempre pronto a se reclinar sobre os outros para lhes fazer o bem; de outro lado, sua firmeza, seriedade e inquebrantável fidelidade ao modo de ser católico. Todas estas qualidades, ela as hauria do Divino Mestre.

Por uma providencial circunstância, três fotografias tiradas no 22 de abril de 1956, nos testemunham precisamente esses
magníficos lados de alma. Nessa ocasião, encontramo-la em casa de sua neta, Dª Maria Alice, onde se comemorou o seu octogésimo aniversário.

Na primeira podemos ver Dª Lucilia segurar pela mão o pequeno Francisco Eduardo, seu bisneto. É das poucas que a retratam conversando. Dá quase a impressão de ter movimento, de tal forma se apresenta comunicativa. Seu olhar é expressivo, e no seu todo se nota o desejo de agradar aos circunstantes, como só ela sabia fazer.

Porém, a fisionomia é de quem vive um hiato de contentamento e distensão em meio a uma vida na qual não faltam as cruzes. Embora o fato de haver chegado aos 80 anos lhe causasse júbilo, este era apenas um lado da medalha. Tão extensa vida, para quem pautou sua existência pela fidelidade a Nosso Senhor Jesus Cristo, não podia deixar de ser uma longa via crucis. Quantas recordações de toda ordem não terão passado pela mente de Dª Lucilia naquele dia!

A segunda fotografia mostra outro estado de espírito dela. Seu olhar profundo e pensativo está posto na consideração de altos horizontes, no extremo dos quais se encontra Deus. Dir-se-ia ser ela uma contemplativa, que vive na clausura bendita de seu mosteiro, voltada só para assuntos celestiais. Mas, não. Emoldurando esse olhar, vemos a fisionomia de uma tradicional dama paulista que vive a vida de sociedade, em pleno século XX.

No seu porte transparece também grande afirmatividade. O modo de cerrar os lábios é de quem serenamente afirma nada ceder, recuar ou transigir em matéria de princípios, nem para obter um sorriso. O caminho está escolhido e por ele está decidida a ir até o fim.

É a mesma atitude de alma que está presente nas fotografias dela tiradas em outras ocasiões, e de modo notável nas de Paris. Formam elas uma coleção na qual é patente a grande continuidade psicológica de sua vida, que nenhuma vicissitude foi capaz de alterar.

Muitos anos após a morte de Dª Lucilia, seu filho recordaria com saudades o octogésimo aniversário dela, ao comentar as lembranças que a segunda fotografia lhe evocavam:

“Várias vezes na vida eu a vi perplexa, com um pouco desta fisionomia. Ela mantinha o semblante imóvel, sem franzir a testa, o olhar fixo num ponto indefinido e como que ausente da própria face, meditando. Era sinal de que alguma preocupação lhe tomava o espírito, e calmamente estava se perguntando como agir.

“Quando julgava que suas apreensões se confirmavam, entregava-se resignada e confiantemente nas mãos de Deus. Nessas ocasiões, o que mais eu admirava nela era a calma em meio à apreensão.”

A última das fotografias constitui interessante prova da benquerença de Dª Lucilia, qualidade de alma que tanto marcou sua existência. Além de sua elevada distinção, nota-se grande comprazimento em sua fisionomia por ter nos braços um bisneto a quem podia envolver com toda a proteção de seu acolhedor afeto.

Presença doce e suave

Quem cruza a porta do apartamento da Rua Alagoas, tem logo sua atenção atraída pela atmosfera de calma ali reinante. Parece que, se entrarmos numa das salas ou abrirmos a porta do escritório, vamos encontrar Dª Lucilia sentada nalguma poltrona, entregue a profundas reflexões, ou desfiando lenta e compassadamente as contas do rosário, à espera do regresso de Dr. Plinio.

Sem prejuízo das renovadas e cativantes belezas de espírito do seu convívio, esse ambiente de serenidade difundido por ela em torno de si, e que continua a impregnar seu lar, era dos
aspectos mais atraentes e benéficos de sua presença.

Quando, naqueles saudosos anos, Dr. Plinio tinha algum trabalho que exigia maior
concentração de espírito — como por exemplo a preparação de uma aula ou a redação de certos artigos — ele se recolhia ao isolamento do escritório de sua casa. O simples fato de saber que Dª Lucilia ali estava, embora em outra dependência, era-lhe fonte de ininterrupto bem-estar de alma.

Às vezes ela assomava à porta e perguntava com carinhoso timbre de voz:

— Pode-se entrar?…

— Mas, mãezinha, entre aqui!

A fim de não interromper o trabalho de Dr. Plinio, ela se aproximava em silêncio, pousava sua mão sobre o ombro dele, dava-lhe um beijo e lhe dizia simplesmente:

— Filhão!…

Em meio à aridez do trabalho, esta tão singela saudação era um refrigério para ele.

Dona Lucilia permanecia longamente junto ao filho, sentada na cadeira de balanço, rezando ou dando pontos de crochet. Muitas vezes não trocavam uma palavra sequer, mas reconfortava-o a suave, aprazível e comunicativa presença materna.

De vez em quando ele apenas acariciava a mão de sua querida mãe, ou lhe fazia outro pequeno agrado, com o que ela muito se comprazia.

Sono profundo e reparador

A irradiação de serenidade ao redor de Dª Lucilia se manifestava, de forma muito particular, numa circunstância que poucos tiveram o privilégio de contemplar: seu repouso. O modo distinto e composto de estar deitada, os
braços estendidos ao longo do corpo, a respiração discreta e compassada, denotavam que para ela o sono não era um momento do dia em que os sentidos se desligam da realidade a fim de gozar intemperantemente algumas horas de inação. Mas sim uma dádiva de Deus, que suspende por alguns instantes as agruras da vida, permitindo a restauração das forças.

Quando Dr. Plinio, em menino, ia se despedir de Dª Lucilia antes de sair para o Colégio São Luís, algumas vezes a encontrava ainda dormindo. Ao deparar ele com aquela imensa calma, na
penumbra silenciosa do quarto, pensava consigo mesmo: “Como deve ser agradável dormir o sono dela.”

Era um sono profundo e reparador, de quem sabia dormir na paz. Acordava também tranqüilamente, mas já no primeiro momento abria os olhos para a realidade, não permitindo que o torpor a dominasse por um segundo sequer.

“Minha casa eram os olhos dela”

Além da esmerada prática diária dos atos de piedade, Dª Lucilia — empenhada em enriquecer ainda mais sua vida interior — entretinha-se na elevada consideração dos esplendores da Civilização Cristã. Seu espírito contemplativo era muito favorecido pelo amor à estabilidade, que agora as próprias circunstâncias de uma avançada idade tornavam propícia.

Uma das principais alegrias do dia-a-dia, nessa fase final de sua vida terrena, consistia para ela na admiração das maravilhas criadas por Deus, de modo especial a diversidade e o valor cultural — muito mais do que o material — das almas e dos povos.

Dr. Plinio, que dela aprendera o gosto pela estabilidade, via-se na contingência de viajar muito, impelido pelas suas intensas atividades apostólicas. Contudo, mantinha em São Paulo um ponto especial de referência: o olhar de sua bondosa mãe.

Nada o atraía mais. Por isso, ao retornar da rua, sua primeira preocupação era vê-la e sentir seu afeto, o que o levaria a afirmar em certa ocasião: “Minha casa eram os olhos dela. Ali eu morava”.

(Transcrito da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)