Dom João, Príncipe Regente Palácio Nacional de Queluz, Portugal

No país onde a bondade e o “jeitinho” representam um importante papel, o êxito da monarquia estava em ter monarcas afáveis, jeitosos e acessíveis, que dirigissem a nação como um pai governa sua família.

Um pouco antes de Dom João VI chegar ao Brasil, os emissários aportam na Bahia e mais tarde no Rio de Janeiro, com um recado: “Fantástico! O Rei e toda a corte vêm morar no Brasil!” Era uma coisa inimaginável! A vida de corte, um sonho! Uma espécie de paraíso terreno para a imaginação daquela gente, que se põe a delirar. Como receber o Rei? Que manifestações lhe fazer?

Dom João VI chega ao Rio de Janeiro

Certo dia, desce o Rei com a sua corte… O luxo da corte era muito maior do que o dos ricaços do Brasil, nem havia comparação.

Jornal da Exposição (CC3.0)
À esquerda, embarque da Família Real para o Brasil – Museu Militar do Buçaco, Portugal
Jean Baptiste Debret (CC3.0)
Abaixo, desembarque da Princesa Leopoldina Museu do Açude, Rio de Janeiro

Podemos imaginar o que significava para um habitante do Rio de Janeiro ver descerem, pelas escadinhas dos bonitos navios, fidalgos com roupas de veludo bordadas de ouro e prata, culotes com meias brancas, sapatos de verniz com saltos vermelhos, como usavam então os nobres. Desembarcavam em cortejo aqueles nobres, aquelas damas com saia balão, altas cabeleiras empoadas. Eles com chapéus de plumas, elas com joias até na cabeça e se saudando amavelmente… Ao troar dos canhões descem o Rei e a Rainha… É uma verdadeira feeria, quase um sonho.

Dá-se o encontro desses quase aborígines, semisselvagens, com essa corte e com aquele pinguinho de civilização que algumas famílias representavam. É um contraste que, para ser pacífico, exigia muito molejo dos dois lados. As diferenças muito grandes geram incompreensão, de lado a lado. Por exemplo, saia balão é uma coisa muito bonita. Mas o que uma filha de índios pensava da saia balão? Ela devia achar que aquelas senhoras eram anormais, estavam inchadas. Eles não dispunham do senso estético para compreender a beleza daquela abertura e como aquilo formava uma espécie de auréola em torno da senhora, halo de distinção e de respeitabilidade que afastava dela as pessoas.

Resultado: tendência do negro e do índio a caçoar dela. Ao mesmo tempo, muita admiração, pois sentiam a superioridade; de outro lado, vontade de debicar.

Aqueles nobres, homens frágeis, deviam parecer de porcelana para aqueles negros troncudos. Mas os negros deviam parecer muito estranhos para aqueles nobres. Era ou não verdade que isso devia gerar incompreensões, implicâncias, birras? Para aquilo tudo se concatenar bem era preciso ter, mais do que bom senso, bom coração.

MCM (CC3.0)
Aclamação do Rei Dom João VI no Rio de Janeiro Biblioteca Mário de Andrade, São Paulo

Um clima de convívio onde tudo foi se fundindo

Dom João VI soube muito bem conservar a pompa da corte, trazendo toda a sua fidalguia que fazia no palácio improvisado, atualmente sede dos Correios e Telégrafos do Rio, belas cerimônias com música do lado de fora, “beija-mão”, trono e tudo mais. Entretanto, ao mesmo tempo em que ele dentro de sua corte tinha esplendor, no trato com o povo se mostrava muito simples, bondoso e acessível. Parava a carruagem e dava uma prosinha. Nós sabemos bem como o brasileiro é sensível a isso. É uma coisa inteligente.

O Monarca teve de atravessar situações difíceis. Por exemplo, ele traz esses fidalgos todos. Onde fazer essa gente morar?

O Governo baixou um decreto por onde se realizava uma espécie de reforma urbana: quem tinha uma casa boa no Rio devia cedê-la para a corte. O pessoal da corte trazia dinheiro para arranjar residência, mas esta precisava ser cedida para os nobres morarem. Por vezes, os moradores dessas casas possuíam outras propriedades; não perdiam essas propriedades, mas que fossem morar onde quisessem. A casa melhor deveria ir para o nobre. Não é verdade que em outros países poderia dar em crime? Aqui, não! Protestava-se, choramingava-se, mas cediam.

Depois, nesse convívio, o lindo panorama, os pores de sol, as auroras, as amenidades do Rio; o negro alegre que canta e vende iguarias na rua; o índio menos alegre e mais melancólico, mas interessante e que para eles é uma novidade com quem falam; tudo isso prepara um clima de convívio onde as coisas foram se fundindo e arranjando bem. Ademais, dos povos europeus o mais “fusionista” é o português.

Jean Baptiste Debret (CC3.0)
À esquerda, chegada de Dona Leopoldina ao Brasil – Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.
MEPE/Safra (CC3.0)
Acima, Dona Leopoldina – Museu do Estado de Pernambuco, Brasil

O resultado é que as raças se vão fundindo e aquilo vai tomando uma certa homogeneidade. O Rei soube muito bem não tomar uma atitude de desdém. Então, por exemplo: hoje há teatro, mas naquele tempo existia um teatrinho para a gente da cidade. O Rei aparece na sua pompa. Quando ele entra, todos se levantam, fazem reverência. Ele se senta, já teve a dose suficiente de pompa que essa gente é capaz de engolir. Pouco depois, ele está como em seu quarto: espicha-se, dorme. Esse arranjo que não sacrifica nenhum princípio é inteligente, bem feito e indica muito o sentido da vida política brasileira.

Dom Pedro I, um homem voluntarioso e meio criador de casos

Quando se tratou da Independência, ele percebeu que o Brasil ia ficar independente. Então disse ao filho: “Pedro, se vier a Independência, põe tu a coroa na cabeça, antes que um aventureiro a coloque!”

Quer dizer, fique você Imperador do Brasil. Meu outro filho, Miguel, vai ficar Rei de Portugal. Mas este ponto não ficou tão claro assim…

Ele foi para Portugal. Aquele país entrou num regime de convulsões políticas de que não é o momento de tratar aqui. Dom Pedro I ficou governando o Brasil.

Vista a história de Dom Pedro I desse lado, que traços dele a alma brasileira conserva?

Dom Pedro era um príncipe eminentemente português, muito vistoso, bonito homem, pomposo. Ao mesmo tempo muito despachado e voluntarioso. Não tinha as habilidades políticas do pai.

O pai era mole e jeitoso. Ele era rijo e não-jeitoso. O que ele queria era ali, no duro! Nunca deu certo no Brasil. Quer dizer, pode ser no duro, mas é duro, durinho… Vá, mas tenha jeito… O brasileiro não é, nem um pouco, um povo de anarquistas; é até cordato. Mas tenha jeito, não criem caso, porque por aí não vai. Dom Pedro I era meio criador de casos…

Dom João VI casou Dom Pedro I com a Arquiduquesa Dona Leopoldina d’Áustria. Uma dama da mais alta educação e nobreza que possa haver. Filha do mais alto monarca da Europa, que era o Imperador da Áustria. Habituada a todo o luxo, requinte e à graça de Viena, veio ela morar no Brasil com um destino incerto. Era a tradição da Casa d’Áustria. A irmã dela, por exemplo, era casada com Napoleão. Os filhos do Imperador da Áustria odiavam tanto Napoleão que, quando eram criancinhas, tinham no quarto dos brinquedos bonequinhos representando Napoleão e forcazinhas onde o enforcavam…

GCI (CC3.0)
Dom Miguel de Bragança, enquanto Infante de Portugal exilado em Viena Palácio Real de Queluz, Portugal

Num determinado momento, mandaram chamar uma menina, a Arquiduquesa Maria Luísa, dizendo-lhe que o pai dela lhe queria falar! Ela foi e o Imperador lhe disse: “Maria Luísa, tu vais casar-te com Napoleão!” Ela aceitou, pois era princesa e existia para o bem do Estado. A Arquiduquesa tinha pânico, no começo, mas depois, ajeitou-se. Imaginem que ela brincara de enforcar aquele homem!

Imperatriz piedosa e muito respeitada

A Arquiduquesa Leopoldina vinha, entretanto, de um ambiente de gente muito pomposa, mas muito afável. A corte d’Áustria se caracterizava pela afabilidade. Esta simpatia afável e acolhedora caracteriza o modo de ser alemão nos seus aspectos mais simpáticos e é saliente nos austríacos.

Por exemplo: a rainha está à espera de nascer o seu primogênito. Enquanto isso, num teatro representa-se uma peça. Chega a notícia de que nasceu o primogênito da Rainha. Aparecem arautos, escudeiros, lacaios que interrompem a representação. Todo o mundo se levanta, porque percebem que nasceu o primogênito da coroa. Quando o primeiro filho era uma mulher, era uma decepção, mas quando se tratava do primogênito, este era proclamado ali, com grande elegância, distinção. O povo batia palmas e palmas. Depois recomeçava a peça.

Maria Teresa, mãe de Maria Antonieta, quando ela estava no teatro nasceu o primogênito de seu filho José. Ela manda interromper a música e, pondo-se de pé, diz de sua frisa para o povo:

– José teve um filho!

– Viva! Viva!

Era um menino que nascia da Áustria inteira. Era um outro modo de ser…

A Arquiduquesa Leopoldina chega aqui e habitua-se enormemente ao Brasil. Transforma-se numa entusiasta das florestas brasileiras. Vai à caça das borboletas, ela mesma entra de botas na mata virgem. E naturalmente conta isso em cartas para a Europa, como era, etc., porque lá havia fascínio por essas coisas. Eram novidades naquele tempo. Ela era mais ou menos como a princesa que foi habitar em Marte e manda flores de lá para a Terra…

Ela era muito querida do povo. O Imperador começa a ter indiferença para com ela e a gostar muito de uma senhora a quem confere o título da Marquesa de Santos, a qual era casada com um homem de família afidalgada de Minas Gerais. Dom Pedro I se entusiasma por essa senhora e começa a coabitar com ela…

Isso cria na corte e no Rio, onde a Imperatriz era muito querida e venerada – porque piedosa, muito respeitada, muito direita, com os melhores costumes –, um choque contra o Imperador. E o modo de ser dele peremptório aumenta esse choque. Ele teve uma filha da Marquesa de Santos. Era um duplo adultério, uma coisa indecente. Ao invés de conservar isso em segredo, Dom Pedro I registra a criança como sua filha e dá-lhe o título de Duquesa de Goiás. Ademais, inventa que numa cerimônia da corte a menina deve ser apresentada à Imperatriz.

Reúnem-se, então, todas as damas vestidas com esplendor. Tratava-se de uma cerimônia de corte quando uma alta fidalga era apresentada à soberana. A menina é introduzida na sala, passa pelas mãos de algumas damas até que, afinal, a mais graduada de todas apresenta-a à Imperatriz.

Grande curiosidade para ver a atitude da Imperatriz… Esta teve uma reação que encantou a todos. Beijou a menina e disse: “Minha filha, tu não és a culpada…”

Isso é mais do que saber fazer as coisas, é ser boa… Quem não é bom, não sabe fazer isso.

S. A. Sisson (CC3.0)
José Bonifácio de Andrada e Silva

Com Dom Pedro II abre-se uma era nova

Dom Pedro I arranja um jeito de ter uma briga com a Imperatriz e a maltrata muito na presença da concubina. Embora não esteja documentado, correu a notícia de que, estando Dona Leopoldina grávida, ele lhe deu um pontapé.

Depois, ele embarca para uma guerra com a Argentina, a propósito do Uruguai. Quando ele está na guerra, recebe a notícia de que a Imperatriz tinha morrido…

Dá-se, então, o oposto: ele se toma de um remorso louco, suspende as operações da guerra e volta para o Rio de Janeiro para venerar a sepultura da mulher da qual ele não tinha sido digno… Mas durante todo o tempo da viagem tranca-se no camarote e fica diante de um quadro da Imperatriz, chorando e pedindo perdão.

Espalhou-se o comentário de que ele teria morto a Imperatriz com um pontapé, o que teve, evidentemente, um efeito profundamente negativo, principalmente no temperamento brasileiro.

Por outro lado, havia uma série de coisas favoráveis do lado dele: o Brado do Ipiranga; o heroísmo dele entrando em São Paulo com a Independência proclamada; compõe ele mesmo o Hino da Independência. É, portanto, o herói que salva a unidade do Brasil e, ao mesmo tempo, assegura a independência do País. É um lance de alta popularidade. Além disso, ele tinha ministros muito competentes, os irmãos Andrada, com quem ele brigava, mas sabia conservá-los.

Entretanto, as ideias liberais do tempo obrigaram-no a constituir uma Câmara e um Senado. Estes começam a querer fazer leis. Ora, ele era filho de rei absoluto e não estava habituado a isso. Resultado: “Não senhores, quem manda sou eu!”

wikipedia:pt (CC3.0)
Dom Pedro II – Museu Imperial do Brasil, Petrópolis

Em certo momento, ele recebe a notícia da morte do pai, e começa a correr aqui o boato de que Dom João VI não tinha regulado quem seria o Rei de Portugal: se seria Dom Pedro I, Imperador do Brasil, reunindo de novo as duas coroas; ou seu irmão, Dom Miguel.

Se as duas coroas se reunissem novamente, perdia-se a independência. De outro lado, se ele ficasse no Brasil, perderia o trono de Portugal, onde já se estabelecera uma brigaria a esse respeito entre duas correntes: uma favorável às ideias novas, revolucionária, caminhando para o republicanismo e que queria Dom Pedro I, porque este era um homem de temperamento despótico e com ideias liberais; e o partido reacionário, composto por “ultramontanos” do tempo que desejavam Dom Miguel.

Crise no Brasil, briga em Portugal… Acaba dando-se um jeitinho: Dom Pedro I que vá para Portugal e faça a vida dele lá. Deixa o filho aqui como garantia da unidade nacional, em mãos de José Bonifácio, o proclamador da Independência.

Com essa criança começa o maior reinado do Brasil. Dom Pedro II sobe como menino de berço em 1831 e só vai ser deposto em 1889. Portanto, mais de meio século de reinado.

Abre-se uma era nova, e com isso mudam-se todos os costumes. Mas deixemos para tratar sobre isso em uma próxima ocasião.

(Extraído de conferência de 2/11/1985)