Arquivo Revista
Dr. Plinio diante da Catedral Notre-Dame de Paris, em 1988

Devemos ter uma postura habitual de admiração pela qual sejamos capazes de ver nas almas dos outros toda a beleza existente ou desejada por Deus. Ao mesmo tempo, precisamos considerar nelas o que é diferente disso, para rejeitar. Essa posição continuamente admirativa nos dá a possibilidade de discernir o bem e o mal, a verdade e o erro, o belo e o feio. Sem isso, a vida não é interessante.

Por ser espiritual, a alma é de uma categoria muito superior ao corpo. Por isso, ver em alguém o reflexo de algo que há em sua alma vale incomparavelmente mais do que considerar aspectos materiais.

Onbekend / Anefo (CC3.0)
Coletor de lixo em 1945 – Jordaan, Holanda
Jamain (CC3.0)
Fate Ali Xá Cajar, segundo xá do Império Cajar Museu Louvre-Lens, França

A admiração enche a vida de alegria

Por exemplo, discernir a alma de um homem que está recolhendo lixo numa rua qualquer tem muitíssimo mais valor do que admirar a coroa magnífica do Xá da Pérsia, de tal maneira uma alma bem entendida é mais valiosa, ainda que seja uma alma deformada em que reconheço defeitos repugnantes, aos quais adquiro horror e me uno a Deus que os execra também.

A meu ver, o pitoresco da profissão de lixeiro está em que ele vive lutando contra o lixo e conservando a chama de seu espírito no meio do lixo; é um batalhador contra a sujeira, um antilixo. Logo, é bonito ser lixeiro. Tudo isso mostra o aspecto bonito da vida.

Conhecer uma alma e perceber no que ela é conforme ou contrária à Igreja Católica, notar as afinidades, as desarmonias, a beleza interna de todo esse universo que é uma alma, enfim, admirar a alma enquanto alma faz-me compreender melhor ainda como deve ser magnífico Deus, puro espírito.

Quem me conhece há anos me viu nas mais variadas circunstâncias, até mesmo quebrado, espancado por um desastre de automóvel. Contudo, nunca me presenciaram com tédio, com ar de quem não tem o que pensar porque, ainda que seja para prestar atenção num interlocutor o mais sem graça que seja, fico admirando como ele é um homem sem graça…

Entretanto, se é tão atraente analisar um homem, como deve ser prodigiosamente mais interessante conhecer as miríades de Anjos! Ver passar diante de mim tal e tal Anjo, todos interessantíssimos, curiosíssimos, com reflexos magníficos, rutilantes, que estupendo! Compraz-me imaginar quando eu, pela bondade de Nossa Senhora, estiver no Céu, como será poder cruzar com os Anjos nas vastidões celestes e perceber as harmonias magníficas deles. Por detrás e por cima está Nossa Senhora, Rainha dos Anjos e mais bela, Ela só, do que todos eles juntos; e acima d’Ela, Nosso Senhor Jesus Cristo, Homem-Deus.

The Yorck Project (CC3.0)
Coroação de Nossa Senhora, por Fra Angelico – Museu do Louvre, França

Vemos, assim, como a posição de admiração enche a vida de interesse, de alegria. Não é uma tristeza, uma cruz a carregar, mas é ter asas. Rejeitar a admiração porque ela pesa, equivaleria a um sujeito tão preguiçoso, que se um Anjo lhe oferecesse asas, ele dissesse: “Mas eu já carrego pernas e braços, e ainda vou ter que levar essas asas nas costas?” Ó seu tonto, você não percebe que são as asas que o carregam e não você que as carregará?!

NOAA (CC3.0)

Transformar essa admiração em asas que nos levem é o que devemos desejar, adquirindo uma capacidade de ver nos outros toda a beleza existente ou que fosse desejada por Deus. Mas, ao mesmo tempo, devemos considerar neles o que é diferente disso, para rejeitar e tomar horror, crescendo assim no amor ao Criador. Essa posição continuamente admirativa nos dá a possibilidade de discernir o bem e o mal, a verdade e o erro, o belo e o feio. Sem isso, a vida não é interessante.

Simbolismo do peixe-voador

Se, por exemplo, estou viajando para a Europa em um transatlântico, tendo a meu lado um homem da Nova Zelândia, o qual conheci naquele instante, vemos passar, de repente, uns peixes-voadores e ele me diz:

— Que interessante é ver um peixe-voador!

Viver analisando é a alegria de viver, porque é viver amando, odiando, voltado para Deus Nosso Senhor… esta é a posição normal do católico, e para isso nos são dadas graças especiais.

Eu penso: “É mesmo interessante, mas mais interessante é analisar o efeito do peixe- voador na alma desse neozelandês.” Não obstante, embora conhecer esse homem valha mais do que conhecer o peixe, não vou deixar de conhecer um para conhecer o outro. Quero conhecer ambos e admirar o que Deus pôs de admirável neles, como também censurar o que há de censurável ou defectível.

O peixe-voador, por exemplo, pode ser visto como a imagem da veleidade de um indivíduo que faz sonhos e não é capaz de os realizar: vive dentro da água, pula para fora e afunda de novo… Por um lado, olho e digo: “Que elegância! De algum modo supera a todos os peixes. Mas, por outro: “Que desilusão! Ele quis ser ave e não conseguiu.”

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Dr. Plinio durante uma conferência em 1990

Olho para meu interlocutor e pergunto:

— Você gosta de peixe?

Ele pensa que estou falando sobre peixe, quando de fato estou analisando a ele. Uma viagem assim, para mim, alcançou pleno êxito. É desse modo que se vive.

Viver analisando é a alegria de viver, porque é viver amando, odiando, voltado para Deus Nosso Senhor, ou seja, odiando o que é contra Ele e amando o que Lhe é favorável.

Alguém poderá objetar: “Mas, Dr. Plinio, será verdadeiramente possível uma pessoa ter na cabeça tudo quanto o senhor acaba de dizer? É de se pedir a alguém que tenha esse estado de espírito, essa mentalidade?”

Sebastião C.
São Domingos Sávio – Basílica de Maria Auxiliadora, Turim, Itália

Insisto no que disse anteriormente1: esta é a posição normal do católico, e para isso nos são dadas graças especiais.

Conferência sobre São Domingos Sávio

Certa ocasião li uma biografia de São Domingos Sávio, Santo salesiano que foi, em certo sentido, um dos discípulos perfeitos de um verdadeiro grande Santo, São João Bosco.

Essa leitura correspondeu a um apuro em que me encontrava: fui convidado pelos salesianos de São João del Rey a fazer um discurso sobre São Domingos Sávio, e aceitei sem mais pensar. Eles mandaram um aviãozinho para me pegar em São Paulo, embarquei e, quando deixei todas as minhas atividades para trás, já sentado no avião, pensei: “Bem, agora tenho essa conferência sobre São Domingos Sávio… Mas como vou fazer uma exposição a respeito de quem não conheço nada?”

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Dr. Plinio em Veneza, Itália
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Dr. Plinio em frente à Basílica de São João de Latrão, Itália

Cheguei lá para o almoço, onde estavam o Arcebispo, o Prefeito e outras notabilidades de São João del Rey. Avisaram-me que a sessão seria soleníssima, na maior igreja da cidade. Haveria, portanto, milhares de pessoas presentes, e confirmaram que eu deveria falar sobre São Domingos Sávio. Pensei: “Mas agora, como vou fazer isso?”

Terminada a refeição, eu disse ao padre responsável pelo evento: “O senhor poderia me arranjar um lugar para descansar, porque gostaria de fazer uma sesta antes da sessão. E também uma biografia bem pequena de São Domingos Sávio?”

Ele me deu um livrinho bem popular que trazia traços da vida do jovem Santo, que morreu aos 14 anos de idade. O que teria de extraordinário? Li aquilo e pensei: “Daqui não tiro nada… O que vai sair como discurso, não sei. ‘Salve Rainha, Mãe de Misericórdia!’” E por incrível que pareça, dormi.

Acordei e, enquanto me preparava para ir à igreja, ocorreu-me a seguinte ideia. O livro continha a narração de fatos que indicavam, entre outras coisas, o quanto a vida de São Domingos Sávio fora marcada por uma seriedade enorme, desde pequeno. Embora o autor não ressaltasse este aspecto, nos episódios contados por ele isto transparecia. Por exemplo, quando ia para o colégio, São Domingos levantava cedinho, ainda antes da aurora, e às vezes, com a neve caindo, viam-no passar em frente à igreja paroquial da aldeiazinha onde moravam seus pais, ajoelhava-se no pórtico da igreja, ainda fechada, tirava o chapéu e, se fosse preciso, na neve, ele ficava rezando durante algum tempo terminando as suas orações da manhã. Depois punha o chapéu de novo e caminhava para o colégio. Quem o via andar por detrás diria: é a miniatura de um homem!

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Dr. Plinio em visita ao Castelo de Chambord, França

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Fiz a minha conferência a respeito disso e Nossa Senhora me ajudou, pois logo no começo, quando eu disse: “Ele deveria chamar-se o Santo da seriedade”, todos que conheciam bem São Domingos Sávio compreenderam corresponder tanto à verdade que foi uma longa salva de palmas. Compreendi que estava no ponto e podia prosseguir. Foi um grande alívio e a conferência se fez a contento de todos.

Digo isto para ressaltar como de uma narração da vida de um menino, lida em um livreco, pode-se fazer a reconstituição da mentalidade dele.

O mais importante na vida é ler as almas

Vemos, assim, o quanto os menores episódios são interessantes, pois o que Deus colocou principalmente na vida para nós lermos são as almas: admirar as virtudes, as qualidades, detestar os defeitos; conhecer as nossas qualidades e amá-las, conhecer os nossos defeitos e detestá-los.

Lembro-me de uma época de minha vida, ainda em menino, em que eu me perguntava a mim mesmo o seguinte: “Quem sou eu? Eu me defino por onde? Quais são as características principais de minha alma e de que maneira elas correspondem aos traços de meu rosto, ao feitio de meu corpo, e o que devo acrescentar em mim para que os outros vejam o que sou e para eu representar o meu papel na vida, sendo aos olhos dos outros aquele que sei claramente que devo ser?”

Isso vinha com um certo tormento quando eu sentia que não era bem expresso e que os outros me tomavam mais ou menos como um anônimo, me tratavam como se eu fosse o que não sou, ora para mais, ora para menos, mas sobretudo para outra coisa. Uma sensação de mal-estar, até que me compus como eu achava que era, dando minha expressão ao que deduzi de minha alma: “O que minha alma tem de bom é tal lado assim, o que ela tem de ruim e que preciso vencer é tal aspecto. Esse lado ruim devo vencer por uma qualidade muito preponderante em sentido contrário, e que, portanto, a minha personalidade apareça muito, sob pena de eu não ter identidade verdadeira, de não ser sincero; construo um modo de ser onde sou inteiramente eu mesmo.”

Como se consegue isso? É um fruto da admiração. Admirando, se discerne; discernindo, escolhe-se; escolhendo, aceita-se ou rejeita-se. Sem admiração não há nada disso. Quer dizer, para o trabalho da inteligência e da observação, ter padrões segundo os quais se veem as coisas é absolutamente fundamental.

Deixo estas considerações entregues à meditação de todos, para compreenderem como é normal ser como estou descrevendo e, pelo contrário, como é inumano não ser assim. Devemos, portanto, censurar os ambientes sem admiração e admirar os ambientes nos quais se admira.

(Extraído de conferência de 15/2/1977)

1) Cf. Revista Dr. Plinio n. 256, p. 32-33.