Leandro W.
Rothemburg, Alemanha

O estilo burguês, sem levar diretamente à oração, cria as condições para o espírito ter vontade de rezar e sentir-se bem quando reza. Nele a arte procura exprimir o bom senso, o pudor, o recato, a estabilidade, a continuidade, o equilíbrio das coisas bem ordenadas desta Terra, e a criação de uma ordem de coisas que mais permite ao espírito humano elevar-se ao mais alto do que propriamente o eleva.

Creio que em nenhum país do mundo a vida burguesa, no que ela tem de legítimo e digno, atingiu graus de desenvolvimento como na Alemanha e, com ela, o incremento de um valor característico da ordem burguesa, sem o qual não se compreende o que é a aristocracia.

Pedro Morais
Catedral de Colônia

O espírito aristocrático e o burguês

Enquanto a tendência para os píncaros e de se servir dos valores culturais para considerar continuamente o mais elevado é peculiar ao espírito aristocrático, e estabelece junção entre este e o espírito religioso; no espírito burguês, a arte procura exprimir o bom senso, o pudor, o recato, a estabilidade, a continuidade, o equilíbrio das coisas bem ordenadas desta Terra, e a criação de uma ordem que mais permite ao espírito humano elevar-se ao mais alto do que propriamente o eleva.

Por exemplo, a Catedral de Colônia é um edifício eminentemente aristocrático. Ela eleva o espírito humano a tudo quanto há de mais alto.

Já uma casa alemã burguesa, apesar até de ter seu teto em forma de cone, não se pode dizer que eleva o espírito humano ao mais alto. Ela cria condições para que ele se eleve por si, mas é uma coisa diferente.

Ambiente que convida à intimidade

Analisemos, por exemplo, algumas construções alemãs tipicamente burguesas, uma delas utilizada provavelmente para a prefeitura ou outro órgão público, o que se nota por causa do brasão e do relógio, característicos de edifícios desse gênero. O estilo é típico das pequenas cidades burguesas, incontáveis na Alemanha medieval, muitas das quais ainda se conservam hoje.

Vê-se uma casa mais ou menos da mesma época, inteiramente coadunada com a prefeitura, e, no fundo, uma igreja barroca, mas que ainda tem o caráter modesto burguês, de uma igreja de pequena localidade, não como uma catedral de uma importante cidade como Colônia, prestigiosíssima metrópole cultural de todo o Reno.

A parte térrea da residência forma uma espécie de hall aberto solidamente sustentado por um madeirame trabalhado discretamente, mas com uma certa distinção de linhas. Vê-se o corpo do edifício, e duas saliências que se projetam sobre a rua. Há mais um andar em cima e advinha-se que lá há guardados objetos de toda ordem, como cadeiras velhas da bisavó, empilhados ali em quantidade. É o sótão onde, ademais, mora a criada…

Procuremos com a vista da imaginação penetrar janela adentro. Têm-se uma sensação condizente com a vida burguesa, mas que não se experimenta no estilo aristocrático: a intimidade.

A vida aristocrática não convida à intimidade, mas a um perpétuo estadear magnífico de si mesmo, produzindo uma naturalidade no esplendor. O verdadeiro aristocrata é inteiramente natural dentro do esplendor, mas não tem intimidade. Esta encontra-se em uma casa burguesa.

Imaginemos dentro da sala um armário onde guardam a roupa de ir para a festa, mas quando chegam em casa dão um suspiro de alívio, tiram o sapatão, a roupa que apertava, sentam-se numa cadeirona macia, esticam-se: “Enfim, em casa!”

É o gosto da intimidade, do móvel cômodo, do ar tépido, da luz tamisada que não deixa entrar a realidade de fora, do cortinadinho, dos objetos próximos uns dos outros e ao alcance da mão, em que o homem descansa do trabalho manual.

Pormenores do ambiente e da intimidade do lar burguês alemão

Nada disso é necessário para o aristocrata. Pelo contrário, vamos supor que ele está junto à mesa, toca uma sineta e manda o criado pegar um livro. Não se pode pedir isto a um homem como o burguês que trabalhou o dia inteiro, e que quando tem um livro, que é uma grossa Bíblia, já a tem ao alcance da mão. Onde está o criado? Está a mulher, que quando o marido a solicita muito, resmunga com uma pitoresca rabugice burguesa…, de maneira que não é bom mexer muito com ela, pois também trabalhou o dia inteiro.

Percebe-se uma coisa curiosa: quem está dentro desse ambiente sente-se a uma légua da rua. A residência é construída de modo a constituir uma atmosfera completamente diferente, dentro da qual o ruído da rua não penetra. A pessoa está na intimidade de um ambiente que ela marca e onde ela sente até um pequeno gozo.

Ermell (CC3.0)
Vista de Bamberg, Alemanha
Ermell (CC3.0)
Antiga Câmara Municipal de Bamberg, junto ao Rio Regnitz

Quando chega o verão, à boa maneira alemã, abre-se a janela, põem-se pedacinhos de pão e vão os passarinhos comer, e o alemão fica todo contente. Ou, então, coloca um pote com gerânio pendurado ao lado de fora para o concurso de flores da prefeitura. Precisa ganhar o prêmio, porque é muito bonito.

Comento com delícias as construções do mundo alemão, porque acho tudo isso maravilhoso.

Os regalos da vida burguesa e convite ao recolhimento

O que isso tem de ver com a contemplação?

É o lar sem pretensões, honesto, da família legítima, constituída segundo os Sacramentos. É a casa onde o refulge o modesto esplendor da vida de família, que está longe de ser o do celibato na vida religiosa ou o da aristocracia, mas um esplendor próprio que se manifesta com o seu prosaísmo. É a dignidade do corriqueiro, onde a pessoa pode recolher-se, isolar-se e, dando repouso e silêncio ao corpo, começar a meditar. Não é o conforto do preguiçoso que se afunda numa poltrona e torna-se amolecido. Não é isso. Tudo é mais varonil e, por isso, dessas casas, em épocas de guerra, saem os melhores guerreiros do mundo. Em tempos de paz, comedores de pão, tocadores de flauta e violino.

Há, portanto, uma harmonia que convida ao recolhimento, à oração. Num ambiente como esses, uma pessoa sentada em uma sala ou ajoelhada num oratório, pode isolar-se de tudo. Assim, essas casas, sem levarem diretamente à oração, criam as condições para o espírito ter vontade de rezar e sentir-se bem quando reza. Aí estão os regalos da intimidade e da vida burguesa.

O espírito de cruz

Não posso terminar esse comentário sem uma bofetada na Revolução.

A Revolução diz: “O pobre plebeu, esmagado…” Se for para gozar a vida, eu acho discutível o que é melhor, se é essa vida numa casa burguesa ou em um palácio. Passar num palácio quinze dias pode ser muito agradável. Será igualmente agradável viver a vida inteira nele, numa contínua representação, numa perpétua ostentação?

Nunca sustentei que o palácio fosse o melhor lugar para gozar a vida. O gozo da vida, mais na proporção do homem, é o do burguês da Idade Média. Palácio corresponde a sacrifício. Parece-me indispensável termos isso em vista.

Na casa burguesa pode haver espírito de cruz. Em certo sentido, o palácio é uma cruz para o indivíduo que mora nessa casa e não se dá bem conta de como é o palácio, pois ele precisa ter muita resignação para não residir e não invejar quem resida no palácio. Por outro lado, essa própria vida que estou descrevendo com todo o seu conforto comporta um lado de trabalho muito duro. De maneira que não é a casa, mas na vida de trabalho duro do burguês que entra a cruz.

A patriarcalidade do espírito alemão

Consideremos agora uma praça pública de uma cidade alemã, já de um certo desenvolvimento, como Frankfurt.

Heidas (CC3.0)
Praça do mercado em Hildesheim, Alemanha

Vê-se uma fonte em estilo rococó, uma grade bonita, flores maravilhosas que ninguém rouba e nenhum moleque acha bonito escangalhá-las durante a noite e voltar com riso de bandido de oito anos para casa, contando que estraçalhou tudo quanto viu.

O edifício da prefeitura se prestava à maior solenidade do Sacro Império. Tudo dentro dele é lindíssimo, soleníssimo. Há um soalho tão precioso que só se entra no prédio com chinelos de feltro enormes que cobrem os sapatos para não o estragar.

Do terraço, o Imperador recém-eleito aparecia para o povo, jogava moedas de ouro e começava a tocar um sininho que logo depois dava origem ao repicar de todos os sinos da cidade, anunciando que a Cristandade tinha um novo chefe.

Asio otus (CC3.0)
Histórica Cervejaria Schlenkerla, desde 1405, Bamberg, Alemanha

A monarquia alemã era de um fausto, de uma glória extraordinária, mas conservou sempre uma nota patriarcal que a monarquia francesa não tinha. Mesmo São Luís IX, sentado num trono debaixo do carvalho de Vincennes, julgando, não tinha no seu perfil espiritual algo que é a síntese de todas as classes sociais. Ele era um aristocrata que se aproximava do povo.

Os Imperadores do Sacro Império e os da Casa d’Áustria não eram a culminância da ordem social afável para com o povo, mas eram uma espécie de síntese de todas as classes, por onde a monarquia austríaca, mais esplendorosa do que a francesa por vários lados, comportava cenas como essas:

Século XVIII, a Imperatriz Maria Teresa está no teatro, Ópera de Viena, soleníssima, e recebe a notícia de que havia nascido o filho de seu filho mais velho. Ela faz um sinal, interrompe a orquestra e grita para o povo:

— José teve um filho!

Todo mundo se levanta, aplaude e aclama:

— Viva a Imperatriz e viva o novo Arquiduque!

Tudo numa espécie de intimidade que nós não vemos Maria Antonieta, austríaca afrancesada, ter. E se ela tivesse nem ficaria bem para ela.

Thomas Wolf (CC3.0)
Prefeitura de Frankfurt
Pedro (CC3.0)
Detalhe da fonte na Praça da Prefeitura de Frankfurt

A um povo compete dizer: “José teve um filho!”; a outro, aparecer no balcão do Castelo um arauto precedido por alabardeiros, e que bate três vezes no chão com uma lança e diz: “Nós temos a honra e a alegria de vos anunciar que a muito alta e poderosa Princesa foi agraciada por Deus Nosso Senhor com o nascimento de um Delfim!”, e faz uma grande reverência. São estilos, cada um tem sua razão de ser e sua beleza.

Variedade nascida da Igreja

Tenho toda a compreensão e admiração para com o estilo austríaco e sua beleza. O Imperador jogava desse terraço ouro para o povo e pouco depois começavam os festejos. As fontes eram preparadas de maneira a jorrar não água ordinária, mas vinho. Por conta do novo Imperador, eram trazidos para a praça pública bois inteiros que eram assados. O povo começa a dançar. Estava preparado um monte de trigo, e o Imperador devia sair correndo a cavalo com um recipiente na mão e enchê-lo com aquele trigo. O povo todo aplaudia porque o Soberano provara ser bom cavaleiro.

Assim, transcorria essa solenidade, entre festejos quase infantis, pois o bom alemãozão é um pouco infantilzão. Mas nisso entra também o melhor do sabor dos pães que ele faz e dos gerânios que ele cultiva, uma coisa um pouco infantil, um pouco popular, muito guerreira, sumamente aristocrática, em todo caso metafísica, mas que é diferente da frieza azul e ouro das plumas, das sedas e do esplendor de Versailles. São riquezas diversas que nos ajudam a amar a Igreja Católica na variedade das almas que ela produziu.

(Extraído de conferência de 10/6/1968)