Arquivo Revista
Da. Lucilia em junho de 1906

Ademais de paulista típica, Dona Lucilia era também uma brasileira no sentido próprio do termo e tinha uma ideia de patriotismo muito marcada. Não obstante, os dois polos do espírito dela eram Portugal e França. Seus antepassados eram originários de uma família muito respeitada do Porto; e pela França ela possuía uma admiração especialíssima.

Dona Lucilia era uma paulista característica, mas muito aberta, muito afetiva para todos os outros Estados do Brasil, ela não tinha exclusivismos. Aliás, casou-se com um pernambucano. E quando ela notava em mim ou na minha irmã traços de alma pernambucana, muito combativa, achava graça.

Brasileira no sentido próprio do termo

Minha irmã, por exemplo, era de um feitio muito combativo: o que ela queria, queria e não cedia. Em geral as meninas de São Paulo são mais flexíveis, mais harmoniosas. Ela não. Certa vez mamãe perguntou ao meu pai:

— Mas a quem puxou essa menina com esse temperamento assim?

Ele respondeu:

— À tia Memela.

Minha mãe perguntou quem era tia Memela. Tratava-se de uma tia de meu pai, famosa em Pernambuco pela sua força de vontade. Quando ela queria uma coisa, tinha que se fazer. Tia Memela usava até um porrete. Se alguém resistia mesmo, ia o porrete nos escravos e nos filhos, pois ela era ainda do tempo da escravidão. Quando minha irmã estava muito recalcitrante, mamãe sorria e dizia:

— Olha lá a tia Memela!

Ademais de paulista típica, minha mãe era também uma brasileira no sentido próprio do termo. Possuía uma ideia de patriotismo muito marcada. Portanto, não era uma pessoa de admitir de bom grado que algum país estivesse acima do Brasil.

Às vezes, minha irmã e eu caçoávamos dela, afetuosamente. Há alguns bichos aqui no Brasil que são muito feios. Em certa ocasião fizemos uma viagem pelo interior do Brasil, de automóvel, e víamos passar uns pássaros enormes chamados seriemas. São uns monstros! Eu vi aquela quantidade de seriemas e perguntei a mamãe:

— Mãezinha, o que são aqueles bichos ali?

Ela, sem perceber que eu os estava achando horrorosos, disse:

— Seriema.

E eu, para amuá-la, disse:

— Olha lá o que o Brasil produz… é a terra da seriema.

Ela não gostava disso. Achava que o Brasil devia ser tratado com todo respeito.

Dois polos de seu espírito: Portugal e França

Não obstante, os dois polos do espírito dela eram Portugal e França. Ela gostava muito de contar que a família dela era originária do Porto, quais foram os acontecimentos dramáticos que levaram seu antepassado português a fugir para o Brasil, em que condições se deu a fuga, como ele se instalou em São Paulo…

Minha mãe se comprazia muito em mostrar essa ligação com Portugal. Certa ocasião, ela conheceu um padre que veio perguntar-lhe se era de tal família do Porto. Ela disse:

Leoadec (CC3.0)

— Muito remotamente, sim. Um de meus antepassados descende dessa família.

— Ah, porque é uma família muito respeitada no Porto, eu conheço muito.

Então minha mãe mandou lembranças para eles. Dessas coisas assim ela gostava muito.

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Dr. João Paulo, pai de Plinio
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Plinio e sua irmã Rosée em Paris, em 1912

O outro polo – não é preciso dizer que especialissimamente – era la douce France.

Cirurgião de fama mundial e médico do Kaiser

Mas para verem como era o patriotismo de Dona Lucilia, conto o seguinte episódio.

Quando minha mãe tinha pouco mais de trinta anos, esteve doentíssima. Os médicos em São Paulo disseram-lhe que ela precisava extrair a vesícula biliar. Mas até aquele momento não se fazia este tipo de operação no Brasil. Havia um grande médico alemão, Dr. Bier, cirurgião de fama mundial, que tinha extraído a vesícula biliar de uma senhora da Índia. Foi o primeiro caso na História. Dona Lucilia seria o segundo caso a submeter-se a esse risco. Mas não havendo outro remédio, ela quis se dispor.

Foi para a Europa e submeteu-se à cirurgia. O médico ia todos os dias vê-la; gostava muito de conversar com ela e, embora mamãe não falasse alemão, conversava com ele em francês.

Dr. Bier era também o médico do Kaiser Guilherme II. Certo dia, ele chegou junto ao pé da cama dela e, não sem uma certa ingenuidade espantosa – como médico, ele tinha a obrigação de evitar qualquer coisa que contrariasse a paciente dele, mas acho que não percebeu o que estava fazendo –, disse:

Divulgação (CC3.0)
Guilherme II e seus generais

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— Senhora, eu tenho que contar-lhe uma coisa que vai animá-la.

Mamãe, perguntou amavelmente:

— O que é, Doutor Bier?

— Eu estive hoje cedo com o Imperador para examiná-lo e o encontrei com o seu Estado-Maior. A senhora não sabe o que tinham em cima da mesa e estavam analisando: era um mapa do Brasil e estudavam a possibilidade de uma esquadra alemã desembarcar para tomar um pedaço do país, estabelecendo lá uma colônia.

É a última coisa que ele devia dizer para uma pessoa recém-operada! Mas acho que ele considerava tão grande honra para uma região ser colonizada pela Alemanha, que é a única explicação que encontro…

Indignação e protesto de Dona Lucilia

Então, ele explicou para ela que no Estado de Santa Catarina já havia muitos alemães e, portanto, podiam trazer para cá mais alemães. Por outro lado, a Alemanha tinha tais tropas, tais navios… e contou para ela toda a história. E minha mãe ouvindo aquilo com frieza.

Ele perguntou para ela:

— Mas por que a senhora está assim?

— Naturalmente, doutor, o senhor está pensando o quê? O senhor está falando em cortar minha pátria, submeter uma parte dela à sua; o senhor pensa que eu estou contente com uma coisa dessas? Estou indignadíssima e protesto!

— Mas seu país teria meios de se opor a isso?

— Olhe, nós temos florestas muito densas, e dentro delas índios com flechas envenenadas. Eles fogem para o interior das florestas, os senhores vão atrás e recebem saraivadas de flechas envenenadas que vêm de todos os lados, e é bem merecido!

Ele puxou um caderninho e tomou nota:

— Eu vou contar isso para o Kaiser.

Era um grande médico, fez uma ótima operação, ela queria muito bem a ele, mas Dr. Bier não realizou a situação psicológica de sua cliente. Um grande médico precisa ser um pouco um psicólogo, mas ele não se deu conta.

No dia seguinte ele voltou para examiná-la e disse a ela:

— Senhora Oliveira, eu tenho um recado do Kaiser para a senhora.

Minha mãe pensou que ele nunca mais trataria dessa questão, e perguntou:

— Mas o que é?

— O Kaiser mandou-lhe os cumprimentos e a simpatia dele, porque aprecia muito as senhoras patriotas como a senhora se mostrou.

Creio que o Kaiser percebeu que o médico dele tinha cometido um erro e quis consertar um pouco por essa forma. É um modo amável de tentar contornar o problema. Mas ela não estava para isso; fez uma fisionomia aborrecida e disse:

— Olhe, diga ao Kaiser que eu não aceito os cumprimentos dele. Se for para visitar o Brasil com intuitos amistosos, está muito bem. Com a intenção de tomar… não cederemos nem uma polegada!

(Extraído de conferência de 16/9/1985)