sábado, noviembre 23, 2024

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Reflexão tranquila, suave e elevada

Ao logo dos tempos, a Revolução vai modificando não só as instituições, mas os modos de ser do homem e até sua fisionomia. Dona Lucilia, que nunca se deixou influenciar pela Revolução, sempre manteve inalterável seu semblante, o qual indicava a elevação de suas cogitações.

Sempre notei em mamãe uma característica — até certo ponto pessoal dela, e até certo ponto própria à época da qual ela provinha — que se evidenciava no contraste entre o modo de ser das pessoas antigas, e aquele considerado como ideal a partir dos anos vinte, depois da Primeira Guerra Mundial, quando a influência moderna começou a se generalizar pela América do Sul, especialmente pelo Brasil.

Duas formas de fisionomias

As pessoas antigas tinham uma concepção da vida pela qual esta não consistia numa algazarra feita para se viver alegre o tempo inteiro. A fisionomia oficial do homem não era alegre, mas sim pensativa.

Pensativa, não segundo o conceito contemporâneo. Porque hoje em dia pensar significa preocupar-se em resolver algum problema prático, que foi impossível solucionar antes e que, deixado para depois, ocupa-nos a atenção. E a fisionomia do indivíduo preocupado com o problema prático — pedregoso, árido e sem graça — não é propriamente a do homem pensativo. O pensamento, no sentido da reflexão, vai às mais altas paragens do espírito.

E, normalmente, quando uma pessoa responsável do século XIX se fazia fotografar ou pintar, ainda que não estivesse preocupada, apresentava-se com a fisionomia que possuía nas horas de reflexão.

Quando começa a influência nova, no Brasil, ocorre o contrário. A fisionomia não é de quem alcançou êxito, mas de quem está no gozo da vida que o êxito poderia dar; então uma cara alegre, necessariamente saudável e triunfante. Mas não é triunfo de batalha, mas de alguém que arrancou umas pepitas de ouro do chão e as está vendo, numa algazarra.

Eu notava muito a diferença entre essas fisionomias, que iam entrando para a moda — e até via pessoas mudarem de expressão para se ajustarem à moda —, e o semblante de mamãe, o qual ficou sempre o mesmo até sua morte. De 1920 para 1968, meio século, as transformações foram enormes. Ela, contudo, absolutamente não mudou. E a fisionomia que está no Quadrinho1 era a habitual dela. Aliás, é por onde o Quadrinho me toca.

Lumen fidei

Nessa fisionomia transparece o que há de ligeira e discretamente enevoado na reflexão, porque o homem quando reflete não tem a expressão de quem exclama: “Heureca! Eu descobri!” Ele está procurando e, por isso, tem o semblante da indagação.

Mas há duas formas de inquirição: uma a de quem tem Fé e outra a de quem não a possui. A indagação de quem não tem Fé parte da incerteza e procura a certeza. A pessoa que possui Fé não tem insegurança e, quando indaga, está certa de que encontrará a verdade.

Então, em Dona Lucilia havia a reflexão, a meditação aplicada, mas tranquila e suave, objetiva, porém elevada, sem ser terra a terra. Havia no fundo de seu olhar e de toda a sua pessoa o lumen da Fé, uma certeza: “No fundo, eu confio, tudo se arranja, dará certo, esperemos! Sei que há um corredor longo e obscuro para atravessar, mas a luz de onde eu venho e a luz para onde vou, o lumen fidei, me acompanha nessa trajetória; caminharei serena!”

Isso se notava em mil situações, de mil maneiras. Praticamente, é o que eu sentia no convívio com ela, e era um dos deleites para mim. Eu vinha da batalha, da luta, e encontrava sempre aquela mesma posição, aquela acolhida deleitável. E no 1º andar2 parece-me encontrar ainda a mesma coisa, julgo sentir um imponderável.

Já tive oportunidade de dizer que, para mim, o 1º andar não é minha casa. Juridicamente é minha residência; mas moralmente é a casa dela. Se pudesse, eu mandava atender ao telefone dizendo: “Casa de Dona Lucilia Corrêa de Oliveira.” Esse imponderável eu julgo encontrar em todas as salas da residência.

Ela era uma dona de casa, não uma pessoa de grandes lances, grandes ditos, nada disso. A ação de sua presença valia muito mais do que as coisas que ela dizia ou escrevia. Nas cartas dela há uma ação de presença que vale mais do que o sentido literal das palavras. Dir-se-ia, ao menos para meus ouvidos de filho, que aquelas cartas têm uma espécie de acompanhamento subsônico, musical; é quase seu timbre de voz, sua amenidade, dizendo as coisas correntes, no convívio diário.

Não era uma pessoa, por exemplo, de exprimir um pensamento para alguém tomar nota. Ela era tão despretensiosa que nem passava pela sua mente ser focalizada dessa maneira.

Morte de Dona Gabriela

Dona Lucilia foi uma filha muito boa. Tinha um grande entusiasmo pelo pai, e queria muito bem e admirava a sua mãe. Quando o pai dela morreu, eu tinha um ano de idade, mas por ocasião do falecimento de sua mãe3, já era homem feito.

Quando eu soube da morte de minha avó, minha mãe já se encontrava em seu próprio quarto. Dirigi-me logo para lá para ver como ela estava e prestar alguma assistência, acariciá-la, enfim, consolá-la. Porque minha preocupação era com ela, evidentemente. Imaginei encontrá-la convulsionada.

Entrei no quarto e a encontrei deitada, inteiramente vestida, sobre a cama, numa atitude de distensão completa, sem verter uma lágrima nem dizer uma palavra.

Pensei que me aproximando ela tivesse alguma reação, e dissesse, por exemplo: “Filhão, como estou triste!”, ou qualquer coisa do gênero. Absolutamente nada. Ela percebeu bem que eu estava entrando, mas ao contrário do costume dela, não fez o menor movimento, nem para me acolher, nem para me dizer algo. Até me assustei um pouco, chegando a me perguntar se ela estaria desmaiada, mas vi logo que não.

Quadro de Dona Gabriela, na residência de Dr. Plinio


Última fotografia de Dona Gabriela, Dona Lucilia e Dr. Plinio no início da década de 1930

Notei que ela estava, não numa atitude de distensão, mas completamente largada, devido à dor pelo que acabava de lhe acontecer. E observei que se encontrava inteiramente lúcida, sem frenesi, sem nervosismos, sem desespero, e apenas pensando no fato.

Quer dizer, a morte foi nos dada como um castigo. Todos sabem que o homem no Paraíso terrestre, por um dom preternatural — por natureza, o homem é mortal —, era imortal. Esse dom foi suspenso como castigo pelo pecado. E a morte é uma lei tão sagrada e tão alta que, segundo uma corrente de teólogos, nem Nossa Senhora quis Se excetuar dessa lei. Seria ultrarrazoável, uma vez que Ela era concebida sem pecado original. A Mãe de Deus desejou falecer e sua morte é chamada “dormição da Santíssima Virgem”; ou seja, foi uma morte tão leve que é comparada a um sono. Mas é um modo de dizer, porque a morte é a morte… A alma separou-se do corpo, e houve o estraçalhamento que sabemos.

Eu vi que mamãe considerava isso inteiramente de frente, e o dolorido para ela era o estraçalhamento de sua mãe. Dona Lucilia estava medindo esse acontecimento com a calma de uma pessoa reflexiva, que presta atenção no fato e pensando: “Ela foi objeto desta dor, e agora sua alma está separada do corpo até a ressurreição dos mortos.”

Um fruto de categoria da Civilização Cristã

Ela nutria pela mãe um alto conceito; considerava-a uma senhora virtuosa e, ademais, pelos hábitos e por uma porção de outras circunstâncias, via em Dona Gabriela uma espécie de fruto de categoria da Civilização Cristã. Assim Dona Lucilia refletia sobre a morte da mãe e o desaparecimento deste ente de categoria, que ela tinha admirado tanto.

Procurei distraí-la um pouco, sentei-me ao lado dela e peguei um de seus braços, para ver se desviava sua atenção, levando-a a pensar em outra coisa que aligeirasse o peso da reflexão. Mamãe notou bem minha presença, estava com os olhos bem abertos, e percebi que seu corpo estava com temperatura normal. Entretanto, ela não respondeu, não reagiu em nada, não se deixou desviar.

Vi que ela recebeu bem o que eu estava fazendo, mas como quem diz: “Meu filho, no momento minha atenção é para outra coisa”; e continuou refletindo tranquila.

Passadas algumas horas, voltei lá, e aos poucos essa impressão ia se atenuando. Depois ela estava de pé e acompanhando aquelas questões de funerais, cumprindo seu dever de filha da falecida e que morava na casa.

Quando encontrei Dona Lucilia em seu quarto, não notei que ela estivesse naquele momento rezando pela alma de sua mãe. Terço nas mãos possivelmente não tinha, pois eu teria percebido. Isso é uma coisa inteiramente cabível, certamente ela rezou, mas não tenho sinal disso. De uma coisa estou certo: ela estava considerando o ocorrido com muita seriedade, muita elevação, numa perspectiva religiosa.

(Extraído de conferência de 9/8/1981)

1) Quadro a óleo, que muito agradou a Dr. Plinio, pintado por um de seus discípulos, com base em uma das últimas fotografias de Dona Lucilia. Ver Revista Dr. Plinio n. 119, p. 6-9.

2) Modo habitual de Dr. Plinio se referir ao seu apartamento na Rua Alagoas, Bairro Higienópolis, região central de São Paulo.

3) Gabriela Ribeiro dos Santos, falecida em 6/1/1934.

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