sábado, noviembre 23, 2024

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Procurando fixar a “fisionomia” da Igreja

Certo dia, na Faculdade Sedes Sapientiae, uma religiosa belga que visitava essa instituição pediu licença para assistir a uma das aulas de Dr. Plinio sobre História Medieval e Contemporânea. Recebendo o consentimento dele, quis sentar-se no fundo da sala, “para observar a reação das alunas”.

Sem se preocupar com a inusitada inspetora, Dr. Plinio fez normalmente sua preleção, finda a qual a freira saiu sem se manifestar. Algum tempo depois, a diretora da Faculdade contou a ele o comentário da visitante:

— Ela achou sua exposição tão clara, tão lógica, que o senhor possui o dom de se fazer entender até por pessoas pouco inteligentes.

Era bem verdade: ao mesmo tempo que deixava encantados os “gênios”, Dr. Plinio tornava acessíveis as altas noções a qualquer público que tivesse diante de si. O que recorda a observação do célebre pensador espanhol Balmes (“El Criterio”): “A conversação e os escritos desses homens privilegiados se distinguem pela clareza, precisão e exatidão. Em cada palavra encontramos uma idéia, e vemos que essa idéia corresponde à realidade das coisas. Ilustram, convencem, deixam plenamente satisfeitos. […] Para segui-los em suas dissertações, não é preciso esforço”.

Já o temos dito, Dr. Plinio, ao tratar uma matéria, não a enquadrava em limites estritos, mas procurava as correlações possíveis. A presente seção, que aparece hoje pela primeira vez, oferecerá oportunidade para se apreciar a distinta e sábia agilidade com que Dr. Plinio relacionava considerações filosóficas com dados de psicologia, teologia, sociologia, política, etc., e especialmente com observações originais, colhidas na realidade suculenta da vida de todos os dias.

Há outro aspecto fundamental a notar: o pensamento filosófico de Dr. Plinio ajusta-se em tudo e por tudo aos parâmetros traçados pelo Magistério da Igreja, recordados ainda recentemente pelo Papa João Paulo II na luminosa encíclica “Fides et Ratio”. A baliza pela qual se guiava Dr. Plinio está mesmo expressa nas palavras iniciais do Santo Padre: “A fé e a razão constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade.”

Declarando sempre sua submissão amorosa ao juízo da Igreja, e sua disposição de reformular de imediato seu pensamento, caso reprovado por ela, Dr. Plinio se alicerçava nos grandes filósofos católicos, de modo particular em São Tomás de Aquino, para lançar-se em vôos de alto descortino. Também aí sua atitude se amoldava perfeitamente às diretrizes de Roma, que recomenda o tomismo como ponto de referência e incentiva os pensadores católicos a pesquisar, explicitar, explorar aspectos novos da verdade, enriquecendo a inteligência em harmonia com as máximas da Religião: “Ao desassombro (parrésia) da fé deve corresponder a audácia da razão”, lembra o Papa na citada encíclica.

Sobre a conferência cuja primeira parte é transcrita a seguir (o restante o será nos próximos dois  números da revista), é preciso ter em conta duas circunstâncias: Dr. Plinio estava se dirigindo a um auditório muito jovem; e, em segundo lugar, como em todas as ocasiões, falava de improviso…

A respeito do aspecto humano da Igreja Católica, tenho a impressão de que a sua história gloriosa se desenvolve de tal maneira que, de acordo com as várias épocas, ela foi mostrando luzes diferentes. Razão pela qual só poderíamos ter uma idéia global da Igreja se fizéssemos o estudo dessas diversas épocas e compreendêssemos o que representa cada uma dessas luzes, predispondo em seguida nosso espírito para fazermos a síntese de todas elas. Entenderíamos então o que a Igreja Católicafoi, o que ela é, e teríamos um vago vislumbre do que ela será, pois devemos supor que seu futuro estará no rumo do desenvolvimento das várias etapas do passado.

De maneira que é preciso toda uma espécie de teoria, ou de doutrina histórica, para se compreender o que podemos ter no porvir, posto ser este o tema desta exposição.

Devemos, portanto, falar algo sobre a Igreja no passado. Convém que a tomemos na sua primeira infância, nos seus primeiros movimentos. Se quiserem, na sua primeira inocência, embora ela, em si mesma considerada, tenha se conservado inocente durante toda a sua existência e assim chegará até o fim do mundo. A pergunta que se deve fazer é a seguinte: qual era a fisionomia moral dos virtuosos na Igreja primitiva?

Em todas as épocas da história da Igreja houve católicos que se afastaram do ideal da perfeição cristã, como os lapsi e relapsi dos tempos das catacumbas (à esquerda, um aspecto do Coliseu romano; à direita, corredor da Catacumba de Santa Priscila)

Um primeiro traço da fisionomia da Igreja

Em todas as épocas de sua história, considerando o número imenso de seus filhos, a Igreja tem alguns que são virtuosos, e outros não. Isto ocorreu, por exemplo, no tempo das catacumbas, quando havia os “lapsi”, ou seja, católicos que eram relapsos e apostatavam da fé cristã. Eram presos pela polícia imperial, levados a julgamento, condenados à morte e, finalmente, conduzidos ao Coliseu para serem executados.

Como é sabido, aqueles cristãos passavam uma noite inteira no cárcere, ouvindo os bramidos das feras que rugiam de fome das carnes deles. Os presos viam a noite passar lentamente e a hora da morte que ia chegando. Quando o primeiro galo cantava, anunciava a aurora da morte, daquilo que para eles, terrenamente falando, seria uma penumbra sem fim. Aos poucos eles iam vendo o circo se encher de público. As pessoas que passavam perto escarneciam deles, escarravam-lhes, diziam desaforos, jogavam objetos pelas grades da prisão. E eles rezando. Em certo momento, com o circo já lotado, esses católicos ouviam trombetas anunciando que o imperador chegava. De longe ouviam a marcha das coortes que o escoltavam, a música e as aclamações com as quais o César era recebido. Mais alguns instantes, e um carcereiro vinha abrir a porta da prisão e os empurrava para a arena.

Ali havia um ídolo, diante do qual ardia uma pira com fogo contínuo, e um recipiente com incenso. Bastava a um dos condenados se aproximar do ídolo e jogar incenso no fogo, dando a entender que renegava Nosso Senhor Jesus Cristo, para ter a vida salva. Esse gesto simples lhe devolveria toda a liberdade. Do contrário, seria executado do modo mais cruel.

Acontecia então a vários que, ao chegar a hora suprema, fraquejavam, dirigiam-se ao ídolo e lhe jogavam incenso, cometendo o pecado da prevaricação. Eram imediatamente libertados. Tinham uma vida nova diante de si. Mas, e a consciência?

Algum tempo depois, numa determinada noite, um deles voltava às catacumbas, puído de vergonha e de remorso. Ajoelhava-se diante do Bispo ou de um sacerdote e pedia perdão. Tinha renegado a fé católica, mas afirmava querer ser fiel a ela doravante, até a morte. Diante disso, era oficialmente readmitido ao culto. E aquele que dias antes queimara incenso diante dos ídolos, era aceito de novo para assistir à Missa e receber o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Mais tarde, alguns ex-lapsi eram presos e morriam mártires. Outros, pelo contrário, se tornavam relapsi várias vezes, até não ser mais incomodados pela polícia. Muitos deles morriam velhos, freqüentando as catacumbas com a nódoa da vergonha.

E aqui encontramos um primeiro traço da fisionomia da Igreja, que devemos considerar: não há época na história dela em que todos os seus membros sejam fervorosos e satisfaçam inteiramente o perfil do cristão ideal. Isso só acontecerá no Céu. Na terra, não. Em todos os períodos históricos haverá o tíbio, o pecador empedernido, e o filão cristalino, áureo e sacrossanto dos que não são empedernidos nem tíbios, dos que incitam estes a tomar vergonha e causticam aqueles, convidando-os ao mesmo tempo misericordiosamente à conversão. Não se confundem, não se amalgamam, e continuam eles mesmos a preservar a fisionomia autêntica da Igreja. É neles que a santidade dela aparece.

Um conjunto heterogêneo

De maneira que, se fôssemos fazer uma história da fisionomia da Igreja, deveríamos nos perguntar o que significam essas duas palavras: “da Igreja”. Se querem se referir somente aos que são fiéis aos mandamentos e que, portanto, retratam os dons e as graças que o Espírito Santo quer que a Igreja tenha em determinada época, o sentido da expressão é um. Mas, se se referem à Igreja como um todo, ela não se compõe apenas daqueles que estão habitualmente em estado de graça. Ela é composta outrossim pelos que têm o pecado de tibieza, bem como pelos que vivem de modo constante em estado de pecado mortal.

Trata-se, pois, de um conjunto heterogêneo. Assim, em cada época vemos a luta do Espírito Santo contra o demônio, porque nos católicos que não correspondem inteiramente à graça transluz algo do fulgor que o Espírito Santo deseja para a Igreja naquele tempo; mas transparece também algo do horror que o demônio quer impingir a ela. E são fisionomias divididas, contraditórias, nas quais se pode notar o bem e o mal, a verdade e o erro, permanecendo todavia no grêmio da Esposa Mística de Cristo. Só deixa de pertencer à Igreja o homem que apostata da Fé.

Na impossibilidade de fazer o díptico inteiro do aspecto humano da Igreja, procuraremos dizer algo de sua primeira época, que coincide com a chamada Antiguidade. Em termos de história eclesiástica, abrange desde a fundação da Igreja por Nosso Senhor Jesus Cristo até a queda do Império Romano do Ocidente, no século V. Grosso modo falando, são 400 anos de história.

Eloqüente símbolo de duas épocas da vida da Igreja, a Basílica de São João de Latrão nos lembra o tempo das perseguições romanas e o do glorioso triunfo da Esposa Mística de Cristo. Nesta página, aspecto da fachada da Basílica lateranense, e na seguinte, uma vista de seu rico interior

Duas etapas bem diversas: a das perseguições e a da vitória

Nessa análise, podemos demarcar então duas etapas bem diversas: uma, a das perseguições; outra, a da vitória.

A primeira vai até o Imperador Constantino, filho da Imperatriz Santa Helena. Após vencer Maxêncio (candidato pagão ao trono) na batalha de Ponte Mílvia e se ter tornado senhor de Roma, ele deu liberdade à Igreja Católica. Do subsolo de todo o Império surgiram os católicos, os quais passaram a construir igrejas. O próprio Imperador requisitou o palácio de sua sogra — pertencente à ilustre família dos Laterani —, e o entregou para ser transformado em templo cristão. Daí existir hoje a Igreja de São João de Latrão (Johanis lateranensis), a catedral dos Papas. Foi o primeiro templo da religião católica em Roma. Por isso, quando se transpõe aqueles umbrais sacrossantos, é preciso imaginar o palácio que ali existira, quando seus moradores eram pagãos. Imaginá-lo no tempo das perseguições, freqüentado por cristãos clandestinos ou, pouco depois, por católicos em plena liberdade. E, finalmente, contemplá-lo transformado em igreja.

Cessadas as perseguições, tem início outra era, denominada de o Baixo Império, que vai até a queda do Império Romano do Ocidente e o começo da Idade Média.

O papel dos orientais nos primórdios do Cristianismo

Entretanto, cumpre ressaltar ainda outros aspectos na fase das perseguições. Nessa época houve um período em que o grosso dos fiéis compunha-se de orientais, ou seja, judeus convertidos e povos do Oriente Próximo que tinham muito contato com Israel. Ali se deu o impacto inicial da religião Católica e se formou o núcleo grande da nova religião.

A partir daquele centro, o Mediterrâneo é percorrido — notadamente por São Paulo — com o intuito de multiplicar o número de cristãos. Em certo momento, a Igreja deixa seu exclusivo caráter oriental e vai passando a ser preponderantemente ocidental. Cresce de tal maneira dentro do Império Romano que toma aos poucos um outro colorido, o de civilização clássica.

Eis, portanto, mais alguns aspectos externos que se notam na primeira fase da expansão da Igreja Católica, a qual, repito, durou até o século V.

No próximo número serão transcritas as observações de Dr. Plinio sobre os diferentes modos de raciocinar dos povos, e como essa diversidade marcou, nos primeiros séculos de sua existência, a Igreja Católica.

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