O Reino de Deus está dentro de nós. Ora, apesar de pequeno como extensão, ele possui um valor infinito porque custou o Sangue de Cristo. Por isso, cada um de nós deve conquistá-lo para Nosso Senhor, destruindo tudo aquilo que, em nosso interior, se oponha ao cumprimento de sua Lei.
No domingo em que a Santa Igreja de Deus celebra a Realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo, encher-se-ão, no mundo inteiro, os templos católicos com uma multidão piedosa, que irá depositar aos pés dos altares suas súplicas e suas orações. Contemplando em espírito essa imensa multidão, composta de pessoas oriundas de todas as raças e de todos os pontos do globo, tão numerosa que, segundo a previsão do Apocalipse, “ninguém a pode recensear” (Ap 7, 9), um pensamento se apodera de mim. E ao mesmo tempo experimento o desejo imperioso de o comunicar aos meus leitores.
Uma verdade áspera e dolorosa
Ser-me-ia, sem dúvida, muito mais grato e fácil cingir-me exclusivamente a considerações de ordem geral sobre a Realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo. Tenho, porém, a certeza de que tais considerações outros as farão. Mas o pensamento que está em mim, posso eu porventura ter a certeza de que todos os demais o tiveram, e de que, em hipótese afirmativa, o externarão? Uma dolorosa negativa me responde a esta pergunta. E por isso, deixando a outros uma tarefa, aliás, incontestavelmente indispensável e fundamental, vou fazer a mais ingrata, obscura e desagradável, porém mais necessária: a de dizer uma verdade áspera e dolorosa neste grande dia de festa.
Os bons pensamentos têm isto de característico que, quando aproveitados, servem de remédio tanto a nós mesmos quanto ao próximo. Quando, porém, nós os rejeitamos em nossa vida interior, ou os calamos em nossas relações com o próximo, eles se transformam, segundo São Paulo, em carvões ardentes que nos causticam e calcinam a alma.
Ai dos que receberam e, por egoísmo ou covardia, não atenderam aos bons conselhos! Ai também dos que, por covardia ou egoísmo, calaram os bons conselhos que poderiam ter dado! Estes conselhos salutares, que eles não externaram, queimá-los-ão a eles próprios pelo interior, como brasas ardentes. E no dia do Juízo serão levados à conta de talentos inaproveitados.
Quando pronunciou, em Lisieux, sua magistral alocução, o então Cardeal Pacelli, já predestinado pelo Espírito Santo a reger futuramente a Igreja de Deus, fez uma queixa amarga que nos cabe recordar. Disse ele que, entre os muitos homens que desobedecem hoje às palavras dos Pontífices, há uma categoria que causa especial mágoa ao Papa. Não se trata dos que não têm Fé e nem dos que, tendo uma Fé morta e inoperante, não procuram ouvir o que o Papa lhes diz. Os que mais fazem sofrer o Papa – e este é o ponto que nos interessa – são os que, aos pés do púlpito, em atitude externa correta e reverente, ouvem a palavra do Vigário de Cristo comunicada pela hierarquia eclesiástica, mas não a compreendem, se a compreendem não a amam, e se a amam platonicamente não lhe dão execução!
“Veio para o que era seu, mas os seus não O receberam”
Assim, no dia de hoje, quantos e quantos católicos, elevados pelo Batismo à dignidade de cidadãos do Reino de Deus, nem sequer cumprirão o preceito dominical! Quantos outros católicos ainda, indo à igreja, ouvirão algum sermão sobre a Realeza de Jesus Cristo, sem saber, entretanto, e sem procurar saber em que sentido se deve atribuir a esta tão clara e tão litúrgica festa!
Quantos católicos, finalmente, acompanhando até o próprio texto da Liturgia Sagrada, lerão as maravilhosas lições que ela contém sobre a Realeza de Jesus Cristo e não a compreenderão! Quantos católicos que procuram implantar o Reino de Cristo no mundo inteiro, esquecidos ou ignorantes de que devem começar por implantar dentro de si mesmos! E quantos outros supõem que podem implantar realmente dentro de si o Reino de Cristo, sem sentir um desejo ardente e devorador de o implantar no mundo inteiro! Em outros termos, não são tais católicos do mesmo jaez daqueles que ouvem corretamente, porém só com ouvidos do corpo e não com os da alma, o que lhes diz a Igreja pela voz dos Pontífices?
A doutrina da Realeza de Jesus Cristo está intimamente ligada à belíssima e piedosíssima prática da entronização do Sagrado Coração de Jesus nos lares. Se se entroniza a imagem do Sagrado Coração de Jesus no lugar mais nobre do lar, é exatamente porque se reconhece que Ele é Rei. Entretanto, quanto lar há por aí em que a imagem está entronizada na sala, mas Cristo não está entronizado nos corações!
Evidentemente, não quero exagerar a tristeza já, de si, tão grande deste quadro, cometendo a injustiça de desprezar o que há de belo e de bom, apesar dessas lacunas. Qualquer ato de piedade, qualquer atitude de reverência para com a Igreja de Deus, por mais superficial e insignificante que seja, deve ser por nós, católicos, apreciado, amado e estimulado com um zelo imenso, reflexo direto de nosso amor a Deus. Longe de nós, pois, um pessimismo de sabor farisaico que nos fizesse contestar todo e qualquer valor a essas práticas de piedade, desde que sejam sinceras, por mais que a frieza ou a ignorância lhes toldem o brilho sobrenatural.
Entretanto, feita esta reserva, a verdade aí está: a queixa de São João ainda hoje é muitas vezes procedente: in propria venit et sui eum non receperunt… (Jo 1, 11)1
Cristo é Rei por ser Deus
Não seria, aliás, difícil conhecer a Doutrina da Igreja sobre a Realeza de Jesus Cristo. Na sua infinita misericórdia, Deus Se dignou de comparar o amor infinito com que nos ama ao amor que nos têm nossos pais. Evidentemente, não quer isto dizer que Ele tenha reduzido na comparação as insondáveis dimensões de seu amor, para as amesquinhar até as proporções exíguas dos afetos de que os homens são capazes. Pelo contrário, se Ele serviu-Se dessa comparação do amor paterno foi apenas para nos dar a entender, de longe, o quanto Ele nos ama. Se dermos à palavra “pai” o sentido que ela tem na ordem natural, Deus não é apenas nosso Pai, mas muito mais do que isto, por ser nosso Criador. Porém, como a função de pai, na natureza, não é senão de coadjuvar a Deus na obra da Criação, se alguém merece na realidade o nome de Pai é Deus. E nosso pai segundo a natureza outra coisa não é senão o depositário de uma parcela da paternidade que Deus tem sobre nós.
O mesmo se dá com a Realeza de Jesus Cristo. Para nos fazer compreender a autoridade absoluta que, como Deus, Ele tem sobre nós, Jesus Cristo dignou-Se de Se comparar com um rei. Entretanto, como é por Ele que reinam os reis, e a autoridade dos reis só é autêntica por provir d’Ele, na realidade, o único Rei, Rei por excelência, é Ele. E os reis ou chefes de Estado não são senão seus humildes acólitos, dos quais Ele Se digna servir-Se na obra da direção do mundo. Cristo é Rei por ser Deus. Chamando-O de Rei queremos simplesmente afirmar a onipotência divina, e nossa obrigação de Lhe obedecer.
Obediência! Eis aí um dos conceitos contidos essencialmente no conceito da Realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo. Cristo é Rei, e a um rei se deve obediência. Festejar a Realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo é festejar seu poder sobre nós. E, implicitamente, nossa obediência em relação a Ele.
Como é que se obedece a um rei? A resposta é simples: conhecendo-lhe as vontades e cumprindo-as com amorosa e pormenorizada exatidão. Assim, pois, o único modo de obedecermos a Cristo Rei é conhecer sua vontade e segui-la.
Sejamos soldados de Cristo Rei
Desta noção tão clara, simples e luminosa um programa de vida, também ele claro, luminoso e simples, se segue.
Para conhecer a vontade de Cristo Rei devemos conhecer o Catecismo. Porque é ali, através do estudo dos Mandamentos, estudo este que só será completo com o de toda a Doutrina Católica, que conhecemos a vontade de Deus. E para seguir esta vontade devemos pedir a graça de Deus pela oração, pela prática dos Sacramentos e por nossas boas obras. Finalmente, pela vida interior, isto é, pela leitura espiritual, pela meditação e pela vida vivida exclusivamente à luz do Catecismo, seguiremos a vontade de Deus.
Disse Nosso Senhor que o Reino de Deus está dentro de nós mesmos. Ora, este pequeno Reino, pequeno como extensão, mas infinito como valor porque custou o Sangue de Cristo, cada um de nós o deve conquistar para Nosso Senhor, destruindo tudo aquilo que, dentro de nós, se oponha ao cumprimento de sua Lei.
Finalmente, as Leis de Cristo se aplicam não apenas a um indivíduo em particular, mas aos povos e nações. Que os povos conheçam e pratiquem na sua organização doméstica, social e política, as encíclicas que são a expressão da própria vontade de Deus, e Jesus Cristo será Rei.
Em outros termos, sejamos bons católicos; sendo-o, seremos necessariamente apóstolos; e sendo apóstolos, seremos necessariamente soldados de Cristo Rei.
(Extraído de O Legionário n. 372, 29/10/1939)
1) “Veio para o que era seu, mas os seus não O receberam”.