domingo, noviembre 24, 2024

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O unum de Dona Lucilia

Quando, nesta Terra, duas almas chegam a se conhecer a fundo, uma sabe discernir o unum da outra. Esse conhecimento é simples, abarcativo, completo. Entretanto, pode haver épocas na vida espiritual em que essa visão se apaga um tanto e a pessoa já não discerne o unum com tanta clareza. Foi o que se passou com Dr. Plinio, em sua juventude, com relação a Da. Lucilia.

Arquivo Revista

Ao conviver com uma pessoa cuja alma esteja tocada de modo particular pela graça, sinto dar-se entre ela e mim algo do que se passava de mim para com mamãe. Percebo que essa pessoa não me vê aos pedaços, como se considerasse separadamente as peças de um mosaico. Mas, pelo contrário, é como quando se está diante de um mosaico bem feito, no qual se vê primeiro a figura e depois se nota que é um mosaico.

A visão de conjunto e os pormenores

Observa-se muito isso em mosaicos italianos, sobretudo na Basílica de São Pedro, no Vaticano. Mosaicos tão bem feitos que, ao olhá-los, sentimos certa estranheza, porque vemos não se tratarem de quadros pintados sobre tela, mas não sabemos qual é a matéria, pois não percebemos a divisão entre as várias pedrinhas. Dir-se-ia ser algo à maneira do quadro de Nossa Senhora de Las Lajas, na Colômbia, em que a própria pedra tem a cor da figura. Depois, fixando a vista com atenção, começa-se a perceber o quadriculado do mosaico. Mas antes disso não se percebia.

Assim também, quando a pessoa está muito tocada por uma graça, tratando comigo, percebe aquilo que possa haver em mim do espírito da Santa Igreja. E embora considere depois este ou aquele aspecto unitariamente, o que fica, antes de tudo, é a visão de conjunto.

Ora, também foi exatamente o que houve de mamãe comigo. Eu percebi nela, antes de tudo, o conjunto. Com o curso do tempo, vendo uma qualidade ou outra sobressair, eu dizia: “Olha que bonita qualidade!”

No Quadrinho, por exemplo, não há uma coisa que chama a atenção à primeira vista. Ela não tem traço fisionômico notável, maior ou mais correto do que outro, qualquer coisa assim. Os traços fisionômicos são de uma senhora muito idosa, com os cabelos brancos. Mas há algo que vem antes de tudo e diz: É ela! O Quadrinho dá muito isso, que se exprime mais pelo olhar e depois vêm outros pormenores.

Arquivo Revista

Gabriel K.
Mosaico de São Marcos – Basílica de São Pedro, Vaticano

O unum de cada ser

Vejo isso no episódio do moço rico do Evangelho, quando ele disse a Nosso Senhor Jesus Cristo que tinha cumprido os Mandamentos a vida inteira, e perguntava o que poderia ainda fazer. Nosso Senhor, tendo-o olhado, o amou (cf. Mc 10, 21). Ou seja, não bastava que o moço fosse bom; mas quando Nosso Senhor olhou-o e, com certeza analisou-o unitariamente, o amou, pois aquela bondade apareceu nele. Trata-se, portanto, de pegar o unum da pessoa e querê-lo.

O que há nesse olhar de unum a unum? De si, o espírito humano reconhece a suma necessidade dos sentidos. Quando estivermos no Céu, conheceremos muitas coisas sem esta necessidade. Tanto isso é assim que nossas almas, embora separadas dos corpos no Céu até a ressurreição, vão conhecer muitas coisas. Esse conhecimento é simples, uno, abarcativo, completo. E quando, nesta Terra, duas almas chegam a conhecer-se a fundo, de fato elas se olham assim. Isso torna meio indescritível o contato de uma pessoa com outra, porque está no terreno da alma, não do corpo.

No Paraíso terrestre, provavelmente, o conhecimento deveria ser assim. Para Adão dar o nome a cada animal, é porque ele conhecia o todo e a própria natureza, o unum do bicho. E o nome dado por ele não era uma qualificação científica, mas o por onde aquele animal é a semelhança de Deus. Ali estava o unum dominante que Adão via e dava àquela criatura o nome da perfeição de Deus que ela espelha.

Enxergar ou sentir a possível perfeição das coisas que ainda não a atingiram, criar um ambiente onde todas essas perfeições em gérmen se anunciam em pontilhado como se já fossem árvores, e ver a floresta futura na germinação presente é um dos gáudios do convívio. Esta é propriamente uma ajuda que Nossa Senhora dá para a primavera e o verão da vida espiritual.

Arquivo Revista
Plinio na Praia do José Menino, em Santos

Entretanto, como no Paraíso, também esse estado de alma pode passar por tentações. E às vezes inteiramente sem culpa, como Adão não tinha culpa de ser tentado. A tentação bateu na porta de Adão e Eva quando eles não tinham pecado; eles consentiram na tentação e aí pecaram. Mas faz parte do desígnio de Deus que cada ser inteligente seja provado.

Então, pode haver épocas da vida espiritual em que essa visão se apaga um tanto e a pessoa já não discerne esse unum, e começa a ver os pedaços do mosaico.

Queda dos mitos

Dou um exemplo. Há um defeito que aparece na história de muitas adolescências, do qual o jovem nem sempre tem uma ideia clara, e que consiste no seguinte:

A criança sente o peso da vida que vem. Eu, por exemplo, percebia ser duríssima, pesadíssima a vida que vinha. Para levar a cabo a vida como ela tem que ser conduzida é uma batalha! Não é subir uma montanha, mas carregá-la nas costas! Em contraste com isso, eu via a vida calma, ainda meio à Belle Époque1, bem ordenada, tranquila e próspera das pessoas mais velhas da família, que funcionavam como relógios. Tudo lhes dava certo, acontecia como queriam e andavam com umas caras contentes, satisfeitas, sentavam-se e conversavam, contavam fatos nos quais tudo tinha corrido normalmente e até belamente para eles, davam risada.

Eu sentia entre eles e mim um contraste que incluía mamãe. Eu a via em geral adoentada, mas não eram doenças graves, e sim achaques, incômodos que ela tomava com tanta bondade, tanta dignidade, tanta doçura e tanto bem-estar interior… Usavam naquele tempo um móvel chamado chaise longue, o nome já diz, uma cadeira longa, espécie de sofá, para as pessoas se inclinarem durante o dia.

Nos aposentos dela, como mais ou menos em cada sala, havia uma chaise longue. Quando estava indisposta, vestia um chambre e reclinava-se ali, com a cabeça apoiada sobre uma das mãos. As dobras do chambre formavam algo à maneira das ondas do mar, em ordem, e ela recostada, na penumbra, olhava para um ponto indefinido com aquele seu olhar tão luminoso, sereno, firme, sem excitação.

Por não diferenciar muito as coisas, para mim ela estava incorporada no mundo dos securitários, enquanto eu me sentia, por oposição, pequenininho, fraco, desarvorado diante de uma tempestade, exposto a todas as incertezas, e os mais velhos cobrando de mim, com a melhor das intenções, um sorriso que não convinha ao meu estado de alma, dizendo-me:

— Então, vem cá. Como vai este menino? Divertindo-se, hein! Do que você está brincando?

Eu tinha vontade de dizer:

— Brincando não, estou pensando! Eu tenho problemas, tenho fraquezas, tenho medos! E não quero entregar os pontos.

Isso vinha acompanhado com uma sensação de que, jogando dentro daquele mundo aparentemente tão estável uma certa insegurança, tinha-se um companheiro de infortúnio. De outro lado, também a impressão de que aquilo era menos sólido do que parecia, e que se estabelecêssemos ali um caos, rompia-se o mito. Então começava uma espécie de contestação, respostas atravessadas e atitudes assim, em que o prestígio dos mais velhos passava durante algum tempo por uma espécie de abalo.

Com o meu gosto de analisar as pessoas, passei por essa fase muito agudamente, com uma espécie de quedas dos mitos onde havia uma forma de prazer dolorido por verificar que isso, aquilo e aquilo outro era mito.

Vanglória de um tio

Percebi isso, em certa ocasião, andando de automóvel com um tio e um primo pelas ruas de Santos. Meu tio voltava-se para seu filho e para mim e perguntava:

— Como se chama esta rua em que estamos passando?

Eu não tinha a menor ideia. Santos para mim era a orla dos hotéis, dos restaurantes e do mar… Aquelas ruas dentro da cidade, para mim, como que não existiam. Então respondia com toda a inocência:

— Não sei.

E o meu primo dava a mesma resposta. Ao que meu tio concluía:

— Estão vendo? Vocês andam pelas ruas sem saber os nomes delas. Agora, se quebrar o automóvel e vocês tiverem que ir para casa, não sabem onde estão. Um homem, como deve ser, conhece o nome das ruas.

Mike Peel (CC2.0)
Porto de Santos, em 1922, visto do Morro do Pacheco

Pensei: “Para caber isso na minha cabeça, tenho que tirar outras coisas mais importantes. Este senhor nutre o espírito dele com essas noções? Sei perfeitamente como fazer se o automóvel quebrar. Eu desço e peço para qualquer um: ‘Estou hospedado no Parque Balneário, junto à praia. Quer me dizer como se vai até lá?’ Ele me diz: ‘Pega o bonde vinte, quinze ou zero…’ Tomo o bonde e pronto. Ou, então, se tiver um pouco de dinheiro na carteira, chamo um táxi e digo: ‘Toque para o Parque Balneário!’”

Em certo momento percebi que ele nunca perguntava sem ter chegado ao fim do quarteirão, onde olhava na placa e, um pouco adiante, interrogava. Logo, ele também não sabia, e aquilo era só para vangloriar-se. Eu não disse para o filho dele, mas fiquei vendo… Este ficou fichado!

Bondade, mansidão, respeito

A essa tendência de chacoalhar os mais velhos e dizer coisas que os tornassem inseguros, infelizmente eu cedi, caindo no hábito de fazer isso com mamãe, coitada, que não merecia nem um pouco.

Um dia em que Dona Lucilia estava se preparando para almoçar, entrei no seu quarto e, enquanto ela se arranjava diante da mesa de toilette, comecei a dizer coisas. Notei que ela ficava muito aflita, dolorida e insegura. Nada do que eu falava era um desaforo, nem uma impertinência, mas eram coisas que a abalavam. Ela me dava umas respostas logicamente insuficientes, e eu metia o dedo na falta de lógica, deixando-a ainda mais aflita. Em certo momento me veio uma ideia: “Por que estou fazendo isso? Olha como ela está respondendo a tudo quanto estou dizendo com bondade, mansidão, respeito. Com que carinho ela me responde! A aflição dela é por mim e não por ela. Por que estou fazendo esta estupidez?!”

Parei no mesmo instante e comecei a agradá-la. Adquiri uma noção tão lúcida de quem era mamãe, que nunca mais em minha vida, até ela morrer, fiz qualquer coisa de parecido. Pelo contrário, fiz constantemente o oposto o tempo inteiro. De maneira a carregá-la, a bem dizer, daquele momento de fugaz dissabor até a sepultura, das rosas que meu carinho levado ao último ponto pudesse dar para ela.

(Extraído de conferência de 14/7/1980)

1) Do francês: Bela Época. Período entre 1871 e 1914, durante o qual a Europa experimentou profundas transformações culturais, dentro de um clima de alegria e brilho social. Ver Revista Dr. Plinio n. 172, p. 29-31.

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