viernes, noviembre 8, 2024

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Caudalosa lava de um vulcão espargida sobre a humanidade

A série de progressos feitos, aproximadamente a partir da Revolução Francesa, e que apareceram numa espécie de simultaneidade meio suspeita, imprimiram a certos acontecimentos humanos uma velocidade e uma artificialidade que deformaram a vida do homem. Assim, a Revolução e o progresso se colaram, de maneira que todas as revoluções trouxeram progressos e todos os progressos trouxeram revoluções.

Consideremos a Ilha Fernando de Noronha antes de ser habitada. Por certo, uma ilha relativamente pequena. Talvez navios, de passagem, tivessem parado ali, permanecendo alguns dias, mas depois tudo voltava à sua ordem natural.

Uma aparente contradição

Pode-se imaginar que a ilha assim inabitada tenha uma harmonia, um agrado, com um contraste entre a terra firme e o alto mar à maneira de uma aldeia em meio ao campo, no mato, na qual o ambiente seria inteiramente campestre; assim também, na ilha, a atmosfera toda seria de alto-mar. Compreende-se que isso fosse muito aprazível e que pessoas de passagem por lá se sentissem muito agradadas em ficar ali por certo tempo, mas não muito; sobretudo se permanecesse um número apreciável de pessoas durante muito tempo, algo se tornaria errado.

Quem chegasse àquela ilha no momento em que ela estivesse desimpedida dos efeitos da presença dos últimos homens que por ali tivessem passado, e encontrasse a natureza em estado puro, sentiria um deleite especial e não teria dificuldade em admitir a existência de uma ordem posta com a sabedoria e bondade divinas, muito agradável, especialmente privilegiada por Deus, na qual se poderia apreciar o que se chama propriamente a ordem natural. Em contrapartida, se ali se estabelecesse uma cidadezinha, ou mesmo uma aldeia de pescadores com pessoas morando duravelmente, qualquer coisa ficava prejudicada, embora o panorama não sofresse prejuízo em nada.

Leipzig (CC3.0)
Carro movido a vapor, 1858

Donde se poderia, eventualmente – mas acentuo muito a palavra “eventualmente” –, tirar a conclusão de que a presença do homem quebra alguma coisa da atmosfera natural, enquanto que no panorama inabitado, ou habitado por tão pouca gente que a presença do homem não tem força suficiente para se impor como nota dominante do ambiente, vê-se em algo o plano de Deus, que se torna menos visível na medida em que o número de homens ali presentes aumenta.

Isso parece uma contradição porque, sendo o homem o rei da Criação, só se pode admitir que a presença dele valorize a natureza, fazendo-a mais agradável, transformando, por exemplo, tudo aquilo em um jardim e, portanto, tornando a natureza mais aprazível, não apenas por sua presença, mas por sua ação, beneficiando o lugar e valorizando-o. Desse modo, por exemplo, a Ilha Fernando de Noronha lucraria, assim, em ser habitada dessa maneira pelo rei.

A presença do homem numa ilha hipotética

Aqui começa a necessidade de distinguir. Pode-se compreender que o homem, fazendo uso da inteligência e de uma certa capacidade de transformar o ambiente que Deus lhe deu, de fato melhore, senão o total da ilha, pelo menos vários de seus aspectos, e que ela lucre, fique mais agradável, mais bonita. Pode-se até entender que a presença do homem dê à ilha um certo charme, mesmo quando ele não esteja visível. Digamos, por exemplo, que haja a uma pequena distância do mar um bosque, não o tropical, com aquela superabundância de presença de vegetação que o indivíduo não consegue pôr um pé no chão sem esmagar uma folha, ou uma flor que caiu; e que o homem, agindo intencionalmente, construa nesse bosque pouco denso uma alameda bonita, com um serpentear interessante, no qual ele às vezes toque num rochedo do alto do qual se vê um barranco e, ao fundo, o mar, e por essa forma a presença dele embeleze vários pontos da ilha.

Pode-se conjecturar também que, sendo homens de um certo gênero e estilo, a simples presença deles torne agradável o lugar. Já a alameda construída pelo homem e o serpentear do lugar confere a este certa graça: uma árvore por ele plantada dá a ideia de qual foi sua intenção, qual é o seu espírito, com que mentalidade ele esteve ali; pode ser um homem que até já tenha morrido e o tenham enterrado ao pé de um cedro muito bonito, e que se saiba jazer ali quem plantou alguns cedros na ilha. Tudo isso vai dando à ilha hipotética um charme da presença do homem que, portanto, acrescentou algo de positivo à ilha.

Entretanto, o fato de a própria atmosfera da ilha ser bem impregnada pela ação de presença do homem, traz consigo um conforme: ele é o rei da ilha, mas que está para o que deveria ser o rei como uma xícara rachada está para o que ela seria se não estivesse fendida. Porque ele é concebido no pecado original e tem, portanto, destemperos, às vezes quer coisas em número maior do que deveria desejar; outras vezes relaxa e não aproveita o que deveria aproveitar; em certas ocasiões, ele tem mau gosto e deteriora algo no qual seria melhor não ter mexido. De maneira que, ao mesmo tempo, pode-se admitir uma valorização e uma desvalorização da ilha pela presença do homem.

Considerações a respeito da palavra “progresso”

Quando Adão e Eva saíram do Paraíso terrestre, houve talvez uma tristeza na natureza, porque o rei e a rainha tinham sido conspurcados. Eles que eram o adorno fundamental daquilo foram degradados, e essa degradação fez estremecer o Paraíso inteiro. Entretanto, alguma coisa que Adão e Eva tenham deixado de bonito por ali, quiçá deixou uma ideia de como seria o Paraíso se o homem tivesse sempre agido bem nele, levantando, assim, a ideia de uma perfeição paradisíaca resultante da presença do homem. O que era, aliás, o plano de Deus.

IABI (CC3.0)
Santos Dumont circundando a Torre Eifel, em um dirigível, em 13 de Julho de 1901

Estas considerações servem para definir nos devidos termos o que é o progresso e o problema posto por ele, tomando a palavra “progresso” no sentido de um movimento ascensional de tudo quanto cerca o homem e, portanto, também da natureza, continuamente para o melhor, o mais agradável, o mais humano, se quiserem, o mais paradisíaco, mas paraíso concebido à progresso técnico, humano. E como é mais ou menos inevitável que o homem, progredindo muito, obtenha da natureza vantagens bastante grandes, embeleze em algo a natureza, mas de outro lado a conspurque e a desordene, ainda quando a intenção dele não seja essa.

Então o progresso, considerado em função de sua estaca zero, poderia ser visto não tanto como um melhoramento do meio ambiente, mas, sobretudo, como um convite ao homem para melhorar, ser mais ele mesmo, para uma plenitude da natureza humana. E quando esta se eleve no seu todo, traga outro conjunto de fatores muito mais positivos do que negativos, de maneira que, apesar dos aspectos negativos, o progresso, de fato, represente uma grande vantagem.

Contudo, nessa concepção que estou apresentando, acaba se pondo o seguinte problema: se a maior parte das pessoas não vive em estado de graça, por mais que o homem invente, ele acaba fazendo coisas mal feitas e, portanto, prejudiciais. Por exemplo, certas descobertas da Medicina que conferem a possibilidade de curar doenças e prolongar a vida podem constituir inegavelmente um progresso. Mas esse progresso, somado aos fatores negativos que ele traz – por ser dirigido em favor do homem que está em pecado e, por isso, ser deformado –, na aparência traz vantagens muito grandes, porém na realidade ele arruína. E quanto mais torna-se grande, tanto mais os fatores negativos pesam.

Pseudodelícias do progresso

E por causa disso, percebe-se em oblíquo que a série de progressos feitos mais ou menos a partir da Revolução Francesa – como o balão, o vapor, o para-raios e outras coisas assim –, e que apareceram numa espécie de simultaneidade meio suspeita, imprimiram a certos acontecimentos humanos uma velocidade e uma artificialidade que deformaram a vida do homem.

Assim, a Revolução e o progresso se colaram, de maneira que todas as revoluções trouxeram progressos e todos os progressos trouxeram revoluções. Por isso fala-se em Revolução Industrial; é a adaptação do ambiente para a Revolução e a adaptação da Revolução para o ambiente, formando um todo só. A Revolução Industrial é isso.

São Paulo passou a ser da “São Paulinho” preponderantemente agrícola a uma cidade colada na Revolução Industrial, e que estava para esta como um carneiro sobre o qual pousa uma águia: esta pega nas lãs do carneiro com as garras, suspende-o e voa alto com ele. O carneiro vê coisas que nunca vira, mas não há um momento em que o seu coração não bata depressa demais, porque ele está transplantado para alturas que não são para ele.

Guilherme Gaensly (CC3.0)
Avenida Paulista em 1902
Mathieu Lebreton (CC3.0)
Aspecto da cidade de São Paulo em 2012

Parece-me que, por falta de ver a coisa com essas variedades de aspectos, as pessoas naufragam na apreciação do progresso, pois se põem o seguinte problema, sem encontrar a solução: O progresso é um bem ou um mal absolutamente falando? E deve-se responder que é um grande bem, porém traz males maiores do que ele.

Então vemos uma cidade dominada pelo ambiente agrícola onde o progresso vai destruindo uma porção de coisas da natureza com as quais ele é incompatível, e construindo uma série de pseudodelícias nas quais o homem julga refocilar de alegria, mas em que de fato está perdendo.

O falso progresso

Há, portanto, um falso progresso filho do homem pecador, logo do pecado que há no homem; do pecado original, mas também dos pecados atuais que os homens podem ir acumulando e que se multiplicam como que por si mesmos, independentemente da colaboração do homem, quando o progresso é fruto do pecado.

Por exemplo, no Bois de Boulogne, em Paris, há uma ilha artificial, urbanística, em um braço do Sena que corre por lá, na qual há um pavilhão com um salão de festas e duas ou três salas pequenas para fins vários, com uma plantação de árvores e coisas dessas muito suaves, próprias ao panorama e à beleza parisiense, mas que no fundo, examinando-se, percebe-se ser um lugar propriamente delicioso, porém que tem esta peculiaridade: quando se sai daquela ilha e se entra em terra firme, nota-se tudo quanto a terra firme deveria ter e não possui. A ilha é uma espécie de errata da terra firme. Quando o indivíduo deixa a ilha, sai com uma inadaptação que lhe dá uma vontade de um paradisíaco terreno que ele não terá, e toda a sua vida fica meio cambaia por causa disso.

NYPL (CC3.0)
Le Bois de Boulogne em 1852

É, portanto, uma coisa revolucionária que dá a ideia de uma utopia realizada. Utopia é um desejo de uma felicidade que possui um certo descompasso com o homem no pecado original.

Um número enorme de coisas do progresso corresponde mais ou menos a isso. Por exemplo, o metrô que pode passar por debaixo de uma casa e que, de vez em quando, estando no salão mais faustoso, as pessoas ouvem um pouquinho de trepidação no salão inteiro, e nota-se que um quadro representando uma bisavó se moveu um pouco e ficou torto. Ao cabo do dia, o metrô transitou doze vezes por ali, e é preciso pôr tudo em ordem. Por lá passou o progresso, e com ele a desordem.

Isso é progresso? Cheira mal, faz trepidar as coisas, dá uma velocidade que o homem precisa toda uma adaptação para ter um controle psicológico do que está se passando e não se sentir arrastado loucamente dentro das entranhas da terra, que não são para ele lugar de habitação. Ele está, por exemplo, em Itaquera1, toma o metrô e dez minutos depois chega ao Largo da Sé. É uma velocidade vertiginosa, o homem compreende o que há de contrário à sua natureza percorrer tão depressa uma distância tão grande.

O resultado é que, quando chega à outra extremidade, ele está, de um lado, inteiramente quieto e em ordem, porque persuadiram-no de que deixar-se arrepiar por isso é próprio a um camponês. E ele então faz um ato de ascese de se pôr quieto, para não tomar ares de camponês. Mas, de outro lado, tudo dentro dele se arrepia. E sua natureza se arrepia com cem coisas dessas que a todo momento o assediam e urram para ele: “Não estranhe! Não proteste! Olhe, é ótimo!”

Arquivo Revista
Dr. Plinio em 1993

Corolários da Revolução Industrial

Quando moço, experimentei a seguinte sensação: Havia em São Paulo um bar suíço muito bom, onde se serviam comidas importadas de primeira categoria. À noite, após ter assistido uma peça de cinema cujo enredo se passava na França, eu chegava lá e comia aquilo. Depois ia para casa, deitava-me, lia a história de Nicolau II e caía no trecho que narrava o massacre de Ekaterinburg. Por fim dormia. Era uma superposição de impressões fruto do progresso que tinha me trazido de vários lugares da Europa delícias diferentes, que eu tomara com avidezes diferentes. E no final o massacre de Ekaterinburg. No total, a junção de tudo isso é fruto do progresso.

Mas eu mesmo sentia que havia qualquer coisa de artificial, com velocidades anormais, com frutos por demais mirabolantes. O homem não foi feito para viver no mirabolante, ele pede as tranquilidades distendidas e calmas do simpático, do afável, do acolhedor mais do que do mirabolante. Este ele pode querer ver às vezes, mas não deve viver no mirabolante.

Mais ou menos nessa época se edificou o arranha-céu Martinelli, que passava por ser o orgulho dos paulistas. Começou-se também a construir o aeroporto de Congonhas. Então, dali a alguns anos o avião chegaria a São Paulo, prenunciando a ebriedade de tomar um avião e dentro de uma hora estar no Rio de Janeiro. Era o maravilhoso, o deslumbrante, o extraordinário conjugado com o horroroso, criando uma situação que, no seu conjunto, é um bluff fantástico. Tudo isso acionado pelo demônio e seus agentes, fazendo com que cada vez mais o útil aparecesse como um triunfador sobre o belo. O espírito prático, no fundo, era a glorificação da feiura. Assim, tudo foi se tornando sempre mais horroroso e mais delicioso, mas o delicioso definhando gradualmente, e o horroroso tomando conta da vida.

Padronização, banalização, massificação são corolários dessa Revolução Industrial que doutrinas erradas de cunho filosófico, más tendências de caráter, “Revolução A” tendencial, “Revolução B” sofística, tudo isso junto vai fazendo uma mexida que seria como uma lava heterogênea e caudalosa de um vulcão que começa a espargir aquela porcaria toda sobre a humanidade. Esta é uma definição da Revolução Industrial.

(Extraído de conferência de 22/5/1993)

1) Bairro da região Leste de São Paulo.

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