jueves, noviembre 21, 2024

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Como uma torre de marfim

Mediante a realidade insondável que caracteriza o relacionamento entre mãe e filho, Dr. Plinio compõe algumas metáforas a fim de traduzir em termos sua profunda união de almas com Dona Lucilia.

Num caleidoscópio, há uma certa distância entre a vista da pessoa e a placa onde se sucedem os jogos de vidrilhos coloridos. Este espaço intermediário é inteiramente vazio, protegido por um invólucro próprio a evitar que luzes estranhas penetrem ali e perturbem a visão, a qual, por sua vez, é tão imediata que não pode ser dividida em etapas.

J.P. Ramos

Movimentando circularmente os vidrilhos, têm-se impressões novas; no entanto, trata-se de uma visão sucessiva de coisas já antigas que se reagrupam de modos diversos e causam surpresas.

Assim era a alma de mamãe, na visão do filho.

Relações entre mãe e filho

Quando a criança está nova, o primeiro “caleidoscópio” que ela vê, mais do que o pai, é a mãe; a mãe debruçando-se sobre ela, olhando-a com aquela compreensão entre mãe e filho, mãe e filha. Cada olhar penetra no do outro, como o olhar daquele que divisa o caleidoscópio e entra a fundo nos vidrilhos.

Poderíamos imaginar algo mais surpreendente: um caleidoscópio, em cujas extremidades houvesse duas pessoas, cada qual fitando o olhar da outra.

É uma hipótese que até não é agradável, mas se pode imaginar para efeito didático; olhando-se continuamente e sem cessar, acabam tendo qualquer coisa que é sempre a mesma, mas, por causa do movediço do olhar humano, da influência das paixões sobre a exposição do globo ocular, dos músculos que se distendem, que se tensionam, sempre haveria alguma coisa para dizer. Assim era a minha troca de olhares com Dona Lucilia.

Marthaskyradford (CC3.0)
Caleidoscópio

Eu não me lembro da primeira vez que a vi e notei quem era ela; mas lembro-me bem de um conjunto confuso de impressões primá rias a respeito dela, as quais me faziam sentir as torrentes de um afeto tão razoável, que eu percebia o quanto ela amava o fato de eu ser uma criança inocente, como, aliás, o são todas as crianças nesta primeira idade. Ela, entretanto, compreendia o valor desta inocência e, de outro lado, tinha uma percepção especial, alegre, jubilosa do que é ser uma mãe.

Qual era o fator que me vinculava a ela e ela a mim? Qual era esta relação que a ordem natural das coisas tinha estabelecido entre nós, mãe e filho?

Ela sentia bem as semelhanças de temperamento e de modos de ser que possuíamos. E de minha parte, olhando-a, tinha a impressão de ver-me refletido em um enorme espelho, mas com uma espécie de arqui eu mesmo, porque ela me olhava com uma complacência que eu não poderia ter.

Como ela, ninguém!

Eu tinha uma sensação de honestidade para com mamãe, porque ela era para mim absolutamente única. Eu tinha muitos outros parentes: meu pai, minha irmã pequenininha, que já me olhava com curiosidade infantil; tinha tios, tias, a família toda. Mas, quando mamãe entrava em contato comigo, percebia haver algo que me era excepcional, no sentido de que ninguém me queria como ela, mas também de que as outras pessoas entre si, não tinham o grau de benquerença que ela me dispensava.

Não quer dizer que eu não julgasse boas as outras pessoas, mas como ela, absolutamente ninguém! Isto se dava confusamente, mas a ideia que me fixava era esta: ela é única. E tive em relação a ela todas as formas de benquerença.

Por exemplo, no mesmo dia de minha viagem à Europa, em abril de 1950, combinei de entregarem duas cestas de flores em horas diferentes, cada qual com uma carta1. E, durante a vida, cem outras manifestações de carinho diferentes. Tudo isso espelha, no fundo, essa convicção que eu levarei até a sepultura: para mim, ela é única. De maneira que, se ela viesse a me faltar, para mim era como se o sol se apagasse.

Entretanto, embora a bondade dela tenha despertado em mim um tão imenso afeto, não posso deixar de notar que, se havia algo que ela não possuía, era a ideia de se tornar insubstituível. Pelo contrário, pela presença e ação dela, pelo modo de relacionar-se comigo, notava a seguinte preocupação: “O que será quando eu morrer? Plinio casando-se, estará bem, terá seu lar; mas se não se casar, como é que será?” A minha solidão a preocupava.

Arquivo Revista
Plinio, aos 4 anos de idade

No entanto, aos poucos percebi que esta apreensão foi cedendo, porque ela comprovou que a formação religiosa que ela me havia dado, levou-me a fundar a TFP. E que ela, abandonando este mundo, deixava em torno de mim um imenso lar, dentro do qual me seria tão grato lembrar a figura dela.

Profunda aflição com o acidente de Dona Lucilia

Quando era pequeno ainda, tinha uns sete ou oito anos, nem isto talvez, ela sofreu um acidente. Ela estivera no escritório de meu pai, no centro da cidade, para tratar qualquer assunto com ele e depois foi ao dentista, em frente, no mesmo andar do prédio. Ao descer a escada – muito íngreme – para sair, ela escorregou.

A fim de não rolar degraus abaixo, segurou-se numa das pequenas colunas que suportavam o corrimão; ao fazer isto, sofreu um deslocamento muito forte no braço; creio que teve de ir ao hospital para engessá-lo, e depois voltar para casa.

Eu estava em casa e percebi, em certo momento, um corre-corre entre os mais velhos, diziam coisas baixas para que eu não escutasse. Ora, todos fomos crianças, e sabemos que nestas circunstâncias, queremos absolutamente saber o que está acontecendo. E eu acabei percebendo que tinha se passado algo muito grave com mamãe; ela chegaria em casa de ambulância.

Arquivo Revista
Hall de entrada do apartamento de Dr. Plinio

Eu tinha uma infantil ideia de que a ambulância era o transporte dos agonizantes e veio-me a noção de que ela podia morrer. Deu-me uma enorme inquietação.

Deixaram-me no escritório de papai, um quarto comum com duas ou três portas, uma das quais ficava livre. Lembro-me que comecei a andar de um lado para outro, muito preocupado e, em certos momentos, corria do fundo da sala, pulava e dava um pontapé na porta, procedendo assim um número incontável de vezes. Era a reação característica de uma criança, mas indicava bem o nervosismo e a aflição em que eu estava.

Eu não queria que ela morresse. Lembro-me de que depois, afinal, fui me apaziguando e compreendi que não se tratava de um perigo de vida, era apenas um acidente, e o que ela tinha que sofrer já tinha sofrido, as coisas voltariam ao normal. Dormi durante a noite normalmente, mas aquela ideia de que ela pudesse faltar-me, me deixava totalmente asfixiado.

Solícita em ajudar até após a morte

Comparo esta ocasião com o que me aconteceu quando o médico, que assistia mamãe em suas últimas horas de vida, entrou em meu quarto e me disse: “Dr. Plinio, se o senhor quiser alcançar Dona Lucilia com vida, venha logo, porque ela está morrendo”.

Eu tinha sofrido uma amputação naqueles dias e, andando como podia, entrei no quarto de mamãe. Quando cheguei, o médico anunciou: “Ela já morreu”. Prorrompi num grande pranto… Mas, uma certa paz pervadiu minha alma; osculei-a e fui para meu quarto a fim de fazer minha toilette.

Senti uma tranquilidade de alma, que era como uma ajuda dela mesma, solícita até nesse ponto! Era manifesto ser um movimento da graça, foi só aceitar; somos servos da graça!

Daí por diante, a figura dela passou como que viva desta vida para minha alma. Lembro-me dela frequentemente – as reflexões que eu estou fazendo mostram bem isso –, mas sem melúrias, isto não! Diante de mim há um novo horizonte na ponta do qual está Nossa Senhora, está a Santa Igreja Católica. Não chega a ser novo, mas um horizonte no qual fui criado e, pela ação dela, antes mesmo de saber dizer “papai” e “mamãe”, eu sabia dizer “Jesus” e “Maria”.

Com a ausência dela pela morte, ela passou a residir neste meu horizonte, o qual devo encontrar quando chegar minha vez, por meu turno, de fechar os olhos e entrar na eternidade.

À semelhança de uma peça de marfim

Em mamãe havia um aspecto difícil de descrever, mas creio que mediante uma metáfora pode-se compreendê-lo bem.

Ela não era uma pessoa normalmente desbotada, como são algumas almas que, ao impacto de um fato relevante, extraordinário, se acendem e só então mostram o que realmente são. Quer dizer, mediante uma grande dor ou uma grande alegria, acen de-se nestas almas uma luz interna e o pardacento comum da vida de todos os dias se substitui por manifestações: ou élans de vulgaridade ou de elevação de espírito.

O crime e a santidade podem igualmente revelar-se em ocasiões assim. Há, no entanto, outras pessoas que não são assim; poderíamos erroneamente julgar que são monótonas, mas não é verdade.

Arquivo Revista
Dr. Plinio durante conferência em dezembro de 1994

Arquivo Revista

Dou como exemplo o marfim. Tenho em minha casa uma bonita peça de marfim, a qual vejo sempre que entro em casa, porque fica numa parede logo em frente à porta; não me detenho a considerá-la, mas de passagem agrada-me olhá-la. É sempre a mesma peça, dura, pura, alva, com aquela forma específica da ponta do dente do elefante; pesada, mas com aspecto de ligeira. Para mim, ela não é monótona, e me seria uma perda se eu deixasse de vê-la, porque as coisas de qualidade, quando são monotônicas, dimanam um bonito tom de muita alta categoria, o qual não se deseja mudar por nada.

Almas “caleidoscópicas”, almas ebúrneas

Há, portanto, uma diferença muito grande entre o caleidoscópio e uma peça de marfim: o primeiro é bonitinho, tem as corzinhas e, movendo a placa nos deleitamos com as surpresas; já a peça de marfim é permanente, com sua alvura, lisura e dureza que lhe são peculiares.

Neste sentido, há certas almas caleidoscópicas e conforme a situação de momento é agradável analisá-las; e há também uma categoria de almas ebúrneas.

É o que está contido na Ladainha de Nossa Senhora, Turris Eburnea. Como Nossa Senhora merece ser chamada Torre de Marfim! Num grau indizivelmente inferior ao de Maria Santíssima, pode-se afirmar que a alma de Dona Lucilia era ebúrnea.

A mesma sempre, do mesmo modo, com a mesma bondade, o mesmo acolhimento, a mesma afabilidade, o mesmo perdão; ao mesmo tempo, tendo sempre um julgamento sério e objetivo: “Isto você fez bem, aquilo você fez mal, porque o bem é o bem e o mal é o mal”.

Recompondo as impressões e sensações, é o que me vem à memória.v

(Extraído de conferência de 30/12/1994)

1) Ver Revista Dr. Plinio n. 181, p. 5.

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