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Uma cruz bem carregada

Dona Lucilia, em meio às dores mais pungentes, experimentava certas alegrias que a ajudavam a carregar a cruz com perfeito equilíbrio de alma.

Fotos: Arquivo Revista

Dona Lucilia era muito reservada no que dizia respeito à sua vida de piedade. Ela rezava muito, mas falava pouco sobre suas orações. Por isso, não sei se ela se preparava de modo especial para determinadas festas litúrgicas.

Orações na Sexta-feira Santa

É certo que a Semana Santa era um período de muito recolhimento para ela e, uns dez dias antes, mamãe já começava a organizar uma cerimônia a ser realizada na sua casa. Quando o pai dela estava vivo, ele acendia em casa uma vela benta junto a um crucifixo, todas as Sextas-feiras da Paixão, às três horas da tarde, e ali se reunia toda a família para rezar. Quando ele morreu, a mãe dela passou a fazer isso. Com a morte da mãe, Dona Lucilia continuou esse costume.

Assim, a cada ano, na Sexta-feira Santa, vinha toda a família rezar junto a esse antigo crucifixo, o qual guardo até hoje, pertencente ao pai dela. Seguindo a tradição familiar, nas Sextas-feiras Santas acendo uma vela benta e rezo às três horas da tarde diante dele, que permanece o dia inteiro no mesmo lugar onde minha mãe o colocava, com a vela próxima, exatamente como ela preparava.

Zelo na educação dos filhos

A Páscoa era um dia de alegria e Dona Lucilia era a grande animadora dessa festa.

Embora muito exigente quanto ao cumprimento do dever, minha mãe zelava para que tivéssemos uma infância muito alegre. Por isso promovia festas, distrações para as crianças. E no dia de Páscoa organizava um piquenique em lugares bonitos nos arredores de São Paulo, entre os quais um grande parque público, chamado Antarctica.

Fotos: Arquivo Revista

Fotos: Arquivo Revista
Parque Antarctica, na primeira metade do século passado. À direita, Plinio ainda criança

A esse piquenique acorria a criançada toda – éramos uns quinze, mais ou menos, entre filhos e sobrinhos dela – todos dirigidos por governantas alemãs que levavam cestas enormes com víveres de toda a ordem: sanduíches de presunto, de sardinha, de lombo de porco, ovos cozidos, pães doces, bolos…

Chegando lá, as crianças se espalhavam pelo jardim para brincar, enquanto mamãe e a Fräulein Mathilde escondiam os ovos de Páscoa.

A certa altura, era dado um sinal indicando a hora do almoço. Para mim, a hora auge não era a dos ovos, mas a dos sanduíches, pois sempre tive loucura por pães e coisas destas, e a cesta trazida pela Fräulein Mathilde era cheia de sanduíches em estilo alemão, enfim, uma porção de coisas de que gostava.

Ajudado pelo olhar e sorriso de Dona Lucilia

Terminada a comilança, a sobremesa eram os ovos de Páscoa que as crianças precisavam procurar nos lugares mais difíceis. Cada qual deveria descobrir onde fora escondido o seu ovo.

Alguns, muito espertos, encontravam-nos logo. Eu era dos menos perspicazes para encontrá-los, mas Dona Lucilia ficava me acompanhando com o olhar e sorrindo.

Mamãe tinha umas cem predileções por mim e como eu não tinha nenhuma esperteza para encontrar os ovos de Páscoa, ela escolhia os mais bonitos e escondia num lugar bem próximo que só ela conhecia.

Eu já me punha perto dela, pois sabia que seria ajudado… Então ela me dizia:

— Procure, meu filho!

Eu procurava, mas olhando para ela…

— Vá mais para lá…

Quando todos mais ou menos tinham encontrado seus ovos e eu estava meio desolado, não o tinha encontrado, mamãe me dizia:

— Filhão, procure ali que você encontra.

— Não estou encontrando.

— Mais para aquele lado.

— Mas não está!

Fotos: Arquivo Revista

Quando ela via que eu não conseguia mesmo encontrar ovo algum, começava a me dar indicações mais precisas, até que eu acabava encontrando. Então voltava correndo para junto dela e lhe agradecia, beijava-a e comia meus ovos de Páscoa muito consolado, mas mais consolado ainda com os agrados dela. Ela compreendia que essa esperteza que me faltava para descobrir os ovos escondidos talvez viesse a ter um dia para outras coisas; e deixava passar bondosamente.

Estas são remotas lembranças de um parque que já está destruído e de uma porção de coisas que já se foram; ficaram apenas na memória dela.

Em meio a dores paroxísticas, alegrias de fundo de alma

É preciso levar em consideração que as grandes dores são alternadas com alegrias inimagináveis. Dores pungentes como calvários e alegrias esfuziantes como Páscoas da Ressurreição fazem um só quadro. A questão está em, quando se tem a dor, lembrar-se da alegria e não desanimar; e quando tivermos alegria, não nos esquecermos de que a dor vai bater à nossa porta, e não imaginar que somos aposentados para a dor.

Mamãe teve alguns fatos de sua vida de dor muito, muito pungentes. Não eram senão os ápices de sofrimentos muito maiores, que em certos momentos chegavam a uma espécie de paroxismo.

Tenho a impressão de que, junto com essa dor permanente, ela experimentava umas alegrias de fundo de alma – aliás, o Quadrinho deixa ver – e que a ajudavam a carregar a cruz. Porque a impressão que ela dá é de uma cruz bem carregada, com muito equilíbrio, nunca com qualquer espécie de torcida.

(Extraído de conferências de 1 e 17/2/1983, 12/11/1984 e 30/3/1986)

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