Conforme pudemos verificar pela narração da história de Dª Lucilia, durante sua longa existência permaneceu ela quase sempre recolhida na respeitável atmosfera do lar, como fiel cumpridora dos deveres de uma dona-de-casa católica fervorosa.
Com seu filho se dava exatamente o contrário. Por exigências de suas numerosas atividades apostólicas e profissionais, ele era obrigado a permanecer muito pouco tempo em seu ambiente familiar. Mas, com a doença, viu-se forçado a passar cinco meses convalescendo entre as paredes de seu apartamento.
Logo começou a receber um inusitado número de visitas de admiradores e amigos, e assim, seu estado de saúde acabou por proporcionar muitos encontros fortuitos com Dª Lucilia de pessoas até então alheias às relações dela.
Conhecida e admirada
Naquele findar de 1967 e primeiros meses de 1968, esses visitantes que passaram a freqüentar a casa de Dr. Plinio tiveram oportunidade de observar o invariável modo de proceder de Dª Lucilia, resultante não só da fidelidade a hábitos de outrora, mas sobretudo do cultivo das virtudes cristãs em sua alma tão amante da Fé e das tradições.
Muitos anos depois, em carta a um matutino paulista, Dr. Plinio relatava sucintamente o maravilhamento daqueles que então foram objeto da gentil e encantadora acolhida de sua mãe:
Como é notório, até o ano de 1967 constituíram compartimentos inteiramente estanques meu lar, onde vivia na suave dignidade da vida privada a tradicional dama paulista da qual me honro de ter nascido — e de outro lado os meus valorosos companheiros de ação pública. A tal ponto, que apenas uma meia dúzia deles freqüentava minha casa, e para todos os demais minha Mãe era uma desconhecida, ou quase tanto.
No ano de 1967, adoeci com sério risco de vida, e minha residência se encheu naturalmente de amigos. Profundamente aflita, a todos recebia minha Mãe, já então com a avançada idade de 92 anos. Nesse difícil transe ela lhes dispensava uma acolhida na qual transpareciam seu afeto materno, sua resignação cristã, sua ilimitada bondade de coração e a encantadora gentileza dos velhos tempos da São Paulo de outrora. Para todos foi uma surpresa e, explicavelmente, também um encanto de alma. Durou assim este convívio por longos meses.
O abalo físico sofrido por Dr. Plinio deu azo, portanto, a que Dª Lucilia fosse conhecida mais de perto e, por que não dizê-lo, admirada. As incontáveis facetas morais da mãe ideal ali estavam ao alcance da observação de todos, convidando-os a fazer parte daqueles “mil filhos” pelos quais seu coração transbordante de benevolência anelava.
“Dispensava-lhes uma acolhida na qual transpareciam seu afeto materno, sua resignação cristã, sua ilimitada bondade de coração e a encantadora gentileza dos velhos tempos da São Paulo de outrora.”
Trato ameno e todo feito de bondade
Quem teve a felicidade de freqüentar aquele apartamento, convivendo com Dª Lucilia nos últimos meses de sua existência terrena, bem pôde avaliar o alto grau de consideração, gentileza e estima inerentes a seu nobre trato, mesmo em suas mais simples expressões. De índole respeitosa e afetiva, era ela mestra na difícil arte de se dirigir aos outros com afável dignidade, de modo a deixá-los sempre à vontade.
Por um muito apreciável dom de causerie, que ela herdara e requintara, ao qual se acrescia um suave savoir-faire1, se tornava muito agradável àqueles que a ouviam. Entretanto, por trás destas excelentes qualidades estava uma virtude mais alta: a disposição de ouvir, com incansável paciência, tudo o que os outros lhe quisessem expor, procurando sempre os lados bons dos fatos narrados e, mais especialmente, os de seus interlocutores.
Por um sobrenatural senso de compaixão, causava-lhe profundo sofrimento ver alguém entristecido ou magoado, ainda que se tratasse de um desconhecido. E era admirável o esmero com que logo procurava aplicar o lenitivo da palavra justa, da fórmula adequada, do bom conselho para a difícil situação, do afago para a dor, da esmola para a necessidade. Para Dª Lucilia, a felicidade do próximo era a dela… Sua alma se movia pelo desejo de causar contentamento a cada um, e daí seu grande pesar quando não podia fazê-lo. Era o afeto de um coração total e essencialmente católico. Sua alegria de alma consistia em querer bem aos outros por amor de Deus, e ser por eles querida. Porém, quando sua benquerença não era correspondida, jamais cedia ao menor sentimento de rancor, pois não visava qualquer benefício pessoal ou vantagem própria nesse relacionamento.
Destas belas características de trato, são testemunhas várias pessoas que estiveram com Dª Lucilia naquelas tardes de seus últimos cinco meses de vida. Foram elas objeto de uma afabilidade que vinha invariavelmente acompanhada de simpatia benévola e obsequiosa. A todos encantava sua propensão contínua de agradar a seu interlocutor e fazer-lhe bem de todos os modos.
Novos hábitos rompem a antiga rotina da casa de Dª Lucilia
Habituada de há muito a um isolamento diário e prolongado, em que nada vinha romper sua rotina, Dª Lucilia passou, de repente, a ouvir em sua casa sons, vozes, passos que não lhe eram familiares. Seu telefone, antes mais bem silencioso, começou a soar repetidas vezes ao longo do dia. Igualmente a campainha da porta de entrada daí em diante se fez ouvir com maior freqüência…
As circunstâncias da longa convalescença de Dr. Plinio tornaram indispensável estabelecer um plantão que, com certa diplomacia, cuidasse dos eventuais problemas que fossem surgindo. Era um verdadeiro sistema de relações públicas, o que Dª Lucilia em sua avançada idade jamais poderia imaginar. Por isso, sentiu-se na obrigação de se interessar diretamente pelo que se passava.
— Quem tocou a campainha? — perguntava à empregada.
— É um amigo de Dr. Plinio.
— Faça-o entrar.
Aquele invariável “faça-o entrar” se evolava de seus lábios tão impregnado de serenidade e gravidade, doçura e dignidade, que o visitante se sentia irresistivelmente atraído.
Em outras ocasiões, ao ser avisada por Mirene, que então a servia, de que mais um senhor acabava de chegar a fim de visitar seu filho, Dª Lucilia dizia:
— Você lhe explicou que Dr. Plinio está repousando?
— Não, porque outra pessoa o atendeu à porta, e ele entrou diretamente no escritório. Parece que Dr. Plinio já o estava esperando.
— Mas você não sabe o nome dele?
— Não, mas já o vi outras vezes.
— Seria bom você ir preparando um lanche para lhe servir.
— Acho que a visita é rápida — dizia a empregada, visivelmente desejosa de escapar das obrigações impostas pelas antigas maneiras vividas por Dª Lucilia.
As épocas haviam mudado, e com elas as normas da boa acolhida. Porém, não seria a suposição de uma simples servente que, de maneira fácil, convenceria Dª Lucilia, demovendo-a de seus tradicionais e entranhados hábitos.
Um inolvidável convite, a que se seguiram outros
Logo ao iniciar-se a convalescença de Dr. Plinio, um de seus jovens discípulos teve a felicidade de ser escolhido para cuidar do plantão estabelecido no “1º Andar”. Um dia, acabara ele de atender a uma chamada telefônica, quando ouviu, vindo da sala de jantar, o som de uma sineta. Pouco depois lhe chegavam os ecos de um pequeno diálogo entre Dª Lucilia e a empregada:
— Pois não, a senhora me chamou?
— Quem telefonou?
— Não sei, Dª Lucilia. Foi um senhor que atendeu.
— Quem é esse senhor?
— Não sei. Parece que ele veio visitar o Dr. Plinio.
— Vá preparando um chá para esse senhor e para mim, pois vou convidá-lo a estar em minha companhia até o Dr. Plinio despertar.
Tendo-se retirado a empregada, Dª Lucilia continuou suas orações. Era compreensível que, sendo dona da casa e dotada de profundo senso de responsabilidade, se sentisse na obrigação de fazer sala aos que visitavam seu filho.
Algum tempo depois, voltou a soar a sineta e a empregada, ao assomar à porta, ouviu de Dª Lucilia:
— Você quer dizer a esse senhor que faça o favor de entrar?
Logo que ele se apresentou, Dª Lucilia o cumprimentou de maneira acolhedora, e assim introduziu a conversa:
— O senhor certamente está esperando o Plinio, não é? Eu queria dizer ao senhor o seguinte: ele tem uns amigos que o estimam muito e, às vezes, convidam-no para passarem juntos alguns dias numa fazenda, perto de Amparo. E o senhor sabe? Estando ali, o Plinio andava por um terreno irregular e muito pedregoso, quando torceu o pé. Ele foi socorrido pelos amigos, mas os médicos que depois o examinaram recomendaram-lhe muito descanso…
Após essa explicação, Dª Lucilia, com sua arte de colocar o visitante inteiramente à vontade, prosseguiu:
— Por esse motivo, o Plinio vai demorar ainda um pouco para atendê-lo, de maneira que o senhor vai ter de esperar mais do que imaginava… Mas o senhor, enquanto o aguarda, vai me dar o prazer de sua companhia. O senhor aceitaria tomar chá?
— Por favor, a senhora não se deve preocupar!
— Talvez o senhor não goste de chá e prefira café com leite, ou alguma outra coisa…
Não foi possível ao jovem recusar. Dona Lucilia tocou então a sineta e ordenou à empregada que trouxesse chá e biscoitos.
Esta cena — evocativa da antiga douceur de vivre — doravante irá repetir-se todos os dias. Dona Lucilia empregará, de cada vez, aquele seu invariável e delicado modo de acolher.
Parecia que os biscoitos provinham do Paraíso…
Antes mesmo de a empregada pôr a mesa, Dª Lucilia convidava o interlocutor a se acomodar:
— Por favor, sente-se onde for mais de seu agrado.
Em geral, depois de explicar por que seu filho demoraria em atender, ela prosseguia a conversa relatando a origem dos excelentes biscoitos que desejava oferecer ao visitante.
— O senhor sabe? Todas as quintas-feiras meu sobrinho vai a Campinas. E, certa vez, retornando de lá, teve a gentileza de me trazer uns biscoitos. Ao agradecer, eu disse que os tinha achado muito saborosos e que ficara contente com o gesto dele. Depois disso, ele sempre me traz uma quantidade suficiente para a semana inteira. O senhor vai gostar muito deles porque são realmente deliciosos.
A maneira como contava este pequeno episódio da vida doméstica envolvia o interlocutor numa atmosfera de maravilhoso, por onde se tinha a impressão de que a farinha do biscoito viera do Paraíso e fora moída pelos Anjos… Era de notar o desapego com que ela oferecia os biscoitos: sem egoísmos nem receio de que pudessem vir a faltar-lhe.
Conduzia a conversa com uma singela e encantadora gentileza. Do cimo de seus 91 anos, não procurava falar de si mesma, de suas dificuldades passadas ou presentes. Havia um certo momento em que ela fazia uma sugestiva pausa, muito nobre, muito distinta, dando oportunidade à pessoa que diante dela se encontrava de levantar algum tema, pois estava sempre disposta a conversar a respeito do que o outro quisesse. Era uma excelente ocasião para se apreciar o modo harmonioso com que ela abordava os assuntos. Fazia-o de maneira a atender, acima de tudo, aos legítimos anseios do visitante.
Naquelas ditosas e inesquecíveis conversas com Dª Lucilia, era freqüente o visitante perguntar-lhe algo a respeito de seus filhos, pelo extremo gosto de ouvi-la discorrer sobre acontecimentos da vida familiar. Tema, aliás, não lhe fosse proposto, ela jamais tomaria a iniciativa de sequer insinuar.
Saudosos meses aqueles, durante os quais foi possível conhecer um bom número de fatos da longa existência de Dª Lucilia, narrados diretamente por ela. O que mais atraía o interlocutor eram os detalhes da infância dos filhos dela, pois permitiam aquilatar o grande esmero que ela pusera em os educar e formar.
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João Clá Dias
1) Literalmente “saber fazer”. Expressão com que o espírito francês designa a habilidade, freqüentemente unida à astúcia, para obter bom resultado naquilo que se faz.