A rica serenidade de outrora, presente numa cena no Jardim da Luz, em São Paulo

Já vimos em outros artigos como Dª Lucilia usava seu esplêndido dom de narradora para, por meio de histórias dos antepassados, educar seus filhos no desejo de imitar os bons valores familia­res. Entre seus temas prediletos esta­vam certos episódios ocorridos no Bra­sil imperial, que lhe traziam saudosas recordações. Um exemplo.

O avô de Dª Lucilia ensina a Imperatriz a dançar

Dª Teresa Cristina, sempre boa esposa e mãe exemplar, atraiu as afe­tuo­sas atenções de Dª Lucilia por causa de um infortúnio que a acompanhara desde os seus primeiros dias.

Com tocante bondade, contava Dª Lucilia que o Barão de Cairu fora enviado por D. Pedro II à Europa, a fim de lhe escolher uma esposa. O Imperador, como é natural, desejava que entre outros predicados da futura Imperatriz estivesse a beleza. O barão en­trou em contato com representantes de várias cortes européias, à procura de uma princesa ideal, e como não ha­via ainda chegado a era da fotografia, mandava ao Imperador medalhões em esmalte, reproduzindo as fisionomias das pretendentes, para que o soberano escolhesse a noiva.

Em razão de seu defeito físico, a Imperatriz Teresa Cristina costumava se isolar durante os bailes na Corte…

Quando chegou às mãos do Im­perador o retrato da Princesa Teresa Cris­tina, filha do Rei das Duas Si­cílias, sua formosura o encantou desde logo, e ele decidiu casar-se com ela. O ma­tri­mônio realizou-se por procuração e o irmão da noiva, o Príncipe Leopoldo de Bourbon Parma, conde de Siracu­sa, representou o augusto consorte na cerimônia. Pouco depois a princesa em­barcou para o Brasil.

Logo que o navio aportou no Rio de Janeiro, D. Pedro II, acompanha­do da corte, foi a bordo receber, com toda a pompa, a esposa. Ao vê-la de lon­ge caminhando em direção a ele, o mo­narca notou desde logo que ela man­cava, e ao lograr discernir-lhe os tra­ços do rosto, perdeu a fala. Em nada se parecia com a fisionomia do meda­lhão!

Pelo protocolo, uma vez chegada diante dele, ela devia fazer uma reve­rência, a ponto de quase se ajoelhar. E, por sua vez, ele deveria segurá-la e beijar-lhe a mão. D. Pedro II, de tão aturdido, deixou que Dª Teresa Cristina tocasse com o joelho no chão…

Naqueles bons tempos de honra e de compromisso sério, um matri­mô­nio realizado, ainda que simplesmen­te por procuração, não mais era desfeito. Principalmente se os consortes fossem de Casas Reais. Assim, D. Pedro II se conformou com o irreme­diá­vel drama que se estabelecera na vida de ambos. Por seu lado, quanto a Imperatriz desejaria que seu esposo jamais houvera tido aquela desilusão!

O sofrimento de Dª Teresa Cristina crescia de intensidade por ocasião das festas na Corte, pois, devido a seu defeito físico, julgava que lhe era impossível dançar, não podendo portanto ser a alma daquelas solenidades sociais.

Numa noite de baile no Palácio Imperial, Dr. Gabriel — avô de Dª Lucilia — então deputado por São Paulo, ao percorrer aquelas belas e luxuosas dependências, encontrou Dª Teresa Cristina sozinha, meio tristonha, sentada no sofá de uma pequena sala, enquanto no salão vizinho todos participavam alegremente da dança, ao som de melodiosa orquestra.

Ao vê-la ali isolada, dela teve pena. Aproximou-se, fez uma reverência, ela lhe deu a mão a beijar e o convidou a sentar-se numa cadeira ao lado. Com o incomparável dom da conversa que possuíam os Ribeiro dos Santos, em pouco tempo Dr. Gabriel proporcionou à Imperatriz a oportuni­da­de de pensar noutros temas que não seus aborrecimentos. Em determinado momento, ele, que já observara como a soberana caminhava, surpreendeu-a com uma sugestão:

— Se Vossa Majestade me der licença, posso tentar ensinar-lhe um modo de dançar…

Dª Teresa Cristina, a princípio, não quis acreditar que fosse possível isso, mas Dr. Gabriel insistiu com muito respeito e lhe propôs fazer, naquela sala, uma experiência. A Imperatriz aceitou e ensaiou uns passos de dan­ça. Ele ia explicando como apoiar com certo jeito o pé no chão, a fim de contornar a dificuldade, e ela rapidamente aprendeu como devia proce­der. Ao perceber que já estava bem segura, Dª Teresa Cristina sugeriu a Dr. Gabriel entrarem no salão e dan­ça­rem na presença de toda a corte. Qual não foi a agradável surpresa dos presentes ao verem a Imperatriz, com toda a normalidade, constituir com Dr. Gabriel o par por excelência da­quela noite de gala!

Dª Lucilia, que já era mocinha quando se passaram semelhantes acon­tecimentos, sabia ilustrar a história da Família Imperial através de pequenos fatos, como o narrado a seguir.

… até a noite em que entrou dançando pelo salão de festas  braços do Dr. Gabriel, tio-avô de Dª Lucilia

A almofadinha de alfinetes da Imperatriz

Certo dia Dª Lucilia esteve na re­sidência de uma senhora que possuía, como era costume nas boas casas de outrora, em certo salão da casa uma vitrine com bibelots . Depois de os ter elogiado, a visitante comentou:

— Perdoe-me a pergunta, mas por que razão se encontra em meio a objetos tão bonitos essa almofadazinha tão comum?

A dona da casa respondeu tratar-se de uma recordação recebida da viúva de um ex-Presidente da República, senhora que, estando para falecer, lha entregou revelando sua procedência.

Quando foi proclamada a República, após a ocupação do Palácio Imperial por tropas republicanas, as espo­sas dos chefes vitoriosos tiveram curiosidade de conhecê-lo por dentro. Foi-lhes fácil obter autorização do go­verno provisório para a visita.

Ao entrarem, o Palácio jazia completamente deserto. Percorreram um a um os vários salões, a Sala do Trono, os apartamentos. À medida que cami­nhavam, iam sentindo uma espécie de aperto na garganta, uma crescente emoção as envolvia. Por fim, che­ga­ram ao quarto dos soberanos. Estava tudo como se há pouco tivessem saído. Via-se que o abandonaram às pres­sas, deixando em cima das cadeiras algumas roupas de que não mais necessitariam, além de vários objetos esparsos. Esse quadro causava a sensação de haverem eles recém passado por ali.

As senhoras se impressionaram profundamente. Uma delas viu, em cima da mesa de toilette  da Imperatriz, singelo objeto: uma almofadinha de seda, preenchida com ervas, que servia para as senhoras fixarem alfi­netes. Notando que aquilo não tinha nenhum valor econômico e querendo a todo custo levar uma recordação da Residência Imperial, aproveitou-se de um momento em que as amigas não estavam prestando atenção, pegou a pequenina almofada e a guar­dou em sua bolsa. Durante décadas não revelaria a ninguém esse gesto.

Quando sentiu a morte se aproximar, ao receber a visita de uma amiga, entregou-lhe aquele objeto, certa de que ela também lhe daria o devido apreço.

Riquezas da tranqüilidade de outrora

Fatos como esse da vida passada constituíam com freqüência tema de conversa para Dª Lucilia e os seus, numa feliz época em que a inexistência dos modernos meios de comunicação deixava que, vagarosamente, o tempo corresse permitindo melhor se degustar uma vida tranqüila, confor­tável e serena.

Dª Lucilia comprazia-se em evocar fatos de sua vida passada, quando as famílias ainda conservavam traços patriarcais, criando em torno dos respectivos chefes um  ambiente todo feito de respeito, tranqüilidade e benquerença, sob a bênção divina (ao lado, família e residência do Conde Álvares Penteado)

As famílias, conservando ainda tra­ços patriarcais, formavam pequenos mundos cheios de vitalidade que, de algum modo, bastavam-se a si pró­prios. Seus numerosos membros conviviam muito entre si, pois se viajava pouco, e a vida familiar girava em ge­ral em torno da casa do respectivo “patriarca”. Este, por vezes, chegava a reunir à sua volta gerações sucessivas de descendentes; mútuo respeito, cordialidade e atenção eram as notas tô­nicas do relacionamento entre eles.

Nesse ambiente, coberto pela bên­ção de Deus, a serenidade fazia uma das alegrias da vida, a tal ponto que, ao se despedirem as pessoas, antes de se recolherem para dormir, não era raro ouvir-se:

— Deus lhe dê uma noite tranqüila.

Não era diferente a existência no palacete Ribeiro dos Santos. Por volta das cinco e meia da tarde os homens retornavam do trabalho e ficavam no living  da casa, ou então no terraço, lendo o jornal e conversando distendidamente sobre tudo e sobre nada, enquanto desfrutavam a fresca brisa do entardecer.

Dr. João Paulo, esposo de Dª Lucilia, junto com um cunhado ou algum irmão de sua sogra, saíam a passear a pé, após a refeição, enquanto as se­nhoras iam fazer tricot . Ao voltarem os homens, ficavam todos ainda longo tempo em conversa na sala, até que o relógio fazia soar lentamente dez ba­daladas, lembrando que o serão cami­nhava para seu fim.

Que monotonia! será alguém levado a pensar, e talvez com certa razão. Porém, era essa mesma calma que pro­porcionava ao espírito humano con­dições para a reflexão, para o operar do pensamento, do qual brotariam as grandes realizações. Um dos frutos dessa tranqüilidade foi sendo destilado ao longo dos séculos, e resultou em precioso licor, que os homens civilizados degustavam agradados, e cujo segredo o infeliz habitante da babel contemporânea perdeu de todo: a arte de conversar.

Nesta habilidade também se distinguiu Dª Lucilia, que a herdou de seus maiores e a soube cultivar de um modo tal que, ainda na extrema ancia­nidade, sabia como ninguém cativar seus enlevados ouvintes…

(Transcrito e adaptado da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)