Quando bem ordenada, a sociedade temporal é um símbolo de Deus e da ordem posta por Ele no universo, concorrendo para tornar as almas mais receptivas e inclinadas à virtude.  Eis novamente expressa uma das teses “princeps” do pensamento de Dr. Plinio a respeito de organização social. Nada mais indicado do que recordá-la, ao inaugurarmos uma seção destinada a transcrever considerações do grande mestre católico no campo da Sociologia. Temos a certeza de que, no decurso dessas exposições, também ficará clara ao leitor a função de uma Sociologia católica, qual seja, antes de tudo, estabelecer as condições ideais para que a sociedade temporal cumpra esta sua altíssima missão.

Para se saber qual é nossa posição a respeito das relações entre a Igreja e o Estado, é necessário perguntar qual é o papel da sociedade temporal nos planos da Providência. Não tenho a intenção de refutar aqui a tese errônea segundo a qual, nos planos da Providência, a sociedade temporal não desempenha papel algum. Também não refutarei o extremo oposto, constituído mais por uma tendência que por uma posição definida e cristalizada, que julga haver Deus constituído sua Igreja como uma sociedade tão perfeita — e ela o é — que não precisa da sociedade temporal para nada. Quer dizer, a vida temporal da sociedade, enquanto sociedade, não interessaria em nada à Igreja para a realização de sua própria missão.

Finalidade apenas logística?

Há outra opinião falsa: a de que a sociedade temporal tem uma finalidade meramente logística, a saber, a de fazer da terra um alojamento para a Igreja e seus filhos. Exerceria tão-só a função de um dono de hotel para com seus hóspedes, sem imiscuir-se na vida deles, limitando-se simplesmente a fornecer cama, casa, comida, roupa lavada e engomada. A sociedade temporal se restringiria, portanto, a isto: garantir o mínimo de ordem, fartura e condições de existência para que as almas, não pensando mais na vida temporal, cuidem de se salvar. Apenas em parte isto é verdadeiro, como veremos adiante.

Por fim, não tenho em vista tratar da tese bem conhecida da chamada “matéria mista”, referente a atividades da sociedade temporal analisadas do ponto de vista moral, quando a Igreja tem uma palavra a dizer.

São refutações e noções que pressuponho adquiridas e claras.

Uma missão mais elevada

Minha intenção, aqui, é debruçar-me sobre um ponto inteiramente diverso e pouco abordado.

Trata-se do seguinte: a sociedade temporal deve, de fato, ser uma espécie de hotelaria da Igreja, uma ordem de coisas constituída de tal modo que desestimula o pecado; mas, se a finalidade dela se esgotasse nisto, não teríamos reconhecido à Igreja tudo aquilo a que ela tem direito.

Na verdade, a sociedade temporal, embora perfeita no seu âmbito, existe para o serviço de Deus e, portanto, para o serviço da Igreja. E, subordinada ao poder da Igreja de ensinar, governar e santificar na esfera espiritual, a sociedade temporal tem uma missão que concorre de modo positivo e eficiente para a salvação das almas.

Trata-se de uma função apostólica, muito mais importante que a função logística.

Obra-prima da criação visível, por causa da nobreza do homem

Para desenvolver essa tese, trato de passagem de alguns conceitos.

Em primeiro lugar, a sociedade temporal é uma criatura excelente, por ser uma obra-prima da criação visível.

Donde lhe vem o fato de ser uma obra-prima de Deus? Antes de tudo, da nobreza do homem. O homem é o rei da criação. Sendo o rei da criação, evidentemente a sociedade temporal, que se compõe desses reis, é mais excelente do que cada rei individualmente falando.

Deus, considerando o universo, viu que cada coisa era boa e o conjunto era ainda melhor. Cada homem é excelente na sua natureza, dados os descontos do pecado original; logo, o conjunto dos homens — a sociedade temporal — é mais excelente do que a soma dos indivíduos.

E se o homem é o que há de melhor na criação, dentro da ordem humana o que há de melhor é a sociedade temporal, considerada enquanto suprema. Ou seja, cada país, que constitui nesse sentido algo excelente, supremo, como conjunto de homens.

“Todo ser material tem um significado aos olhos dos homens. Uma simples fumaça de cigarro, por exemplo, pode simbolizar algo do espírito humano, algo de Deus.”

Seria surpreendente que uma criatura tão excelente quanto é a ordem temporal, não tivesse relação com o mais alto fim da criação que é a salvação das almas. O natural, o normal é que ela tenha uma alta função a tal respeito, uma colaboração a prestar nisto que é a razão de ser da criação, ou seja, a salvação das almas para a glória de Deus.

Colaboração positiva com a Igreja na salvação das almas

Não se trata, nessa finalidade, de algo de logístico. É algo de removens prohibens, removedor de obstáculos, antes de tudo. Quer dizer, a sociedade temporal tem meios de impedir que certos obstáculos tolham o livre exercício da missão da Igreja. Esses meios são próprios a ela. Ela deve remover ou proibir o que serve de obstáculo à ação da Igreja.

Mas também ela age de maneira positiva na salvação, estimulando à virtude, inclusive ao amor de Deus, que é o primeiro dos Mandamentos.

E aqui a reflexão concernente à ordem natural se encaixa noutra, relativa à ordem sobrenatural: uma vez que Nosso Senhor Jesus Cristo fundou a Igreja (um fato sobrenatural), a sociedade temporal, cujo fim natural é servir a Deus, passou a ter como pólo de atração a Igreja. Vem daí a idéia do serviço à Igreja.

As criaturas como símbolos de realidades metafísicas

E aqui chegamos ao cerne da nossa exposição de hoje, focalizando um aspecto da sociedade temporal da maior importância.

A sociedade temporal não serve a Igreja apenas removens prohibens, nem só dando verbas orçamentárias para facilitar as obras eclesiais (quando ela o faz, faz uma coisa boa, e é até um dever); nem prestando à Igreja quaisquer outros serviços que possamos excogitar na ordem positiva.

Ela tem, na própria formação das almas, um papel que temos de analisar.

Esse é um ponto sensível, porque a formação das almas é, por excelência, papel da Igreja. Como entra aqui a sociedade temporal?

Para responder, consideremos que todo ser material tem um significado simbólico aos olhos dos homens.

Por exemplo, quando um homem fuma, do cigarro se desata uma espiral cujos movimentos às vezes, ou cujo desenvolvimento segundo uma linha, lembram certas atitudes do espírito humano. E tais atitudes, por sua vez, enquanto existentes no espírito humano, lembram a Deus.

Nesse sentido, uma simples fumaça de cigarro pode lembrar algo do espírito humano, e pode simbolizar algo de Deus. Em que sentido da palavra símbolo?

A fumaça tem uma aparência sensível. Essa aparência sensível, de si, nada significa. Mas as aparências sensíveis, quando bem estudadas, apresentam alguma analogia com o mundo do espírito, com algo da inteligência humana, com algum estado de espírito do homem, com algo que diz respeito à alma do homem. Enquanto tal, essa analogia indiretamente conduz a alma até Deus.

Certa vez, andando de automóvel, mandei o motorista tomar uma estrada nos arredores de São Paulo. Tem-se que atravessar o cinturão de fábricas que cercam a cidade, e infelizmente havia uma fábrica funcionando no domingo, com uma enorme chaminé, da qual saía uma grossa fumaça. Esta se expandia muito por uma determinada parte do horizonte, adensando-se naquela zona. O dia estava muito sem vento, a atmosfera parada, de maneira que a fumaça ficava ali e não se movia. E constituía uma espécie de atmosfera carregada, feia, suja, pairando sobre umas casinholas de arredores, engraçadinhas, com hortazinhas arranjadinhas, coisinhas assim. Notava-se um contraste entre a vidinha de todos os dias, inocente, de dois ou três agricultores, já longe da grande cidade, e aquela fumaça que pairava sobre o lugar.

Parecia certas situações da vida humana. Podia significar perfeitamente uma ameaça do mal, de um infortúnio desencadeado pelo demônio ou pelas circunstâncias más do pecado, sobre pessoas que vão ser provadas para a maior glória de Deus.

A fumaça simbolizava algo do demônio, algo do pecado, e, à contragolpe, fazia lembrar, de modo sensível, a cólera de Deus na punição, na luta entre o bem e o mal, a verdade e o erro, na luta dos anjos no Céu, etc. Não é apenas uma evocação intelectiva, que caberia perfeitamente e que respeito muito, mas é uma evocação sensível.

Símbolo de Deus e da ordem posta por Ele no universo

A sociedade temporal, como tudo o que existe, tem um significado simbólico aos olhos dos homens. Quando bem ordenada, ela é um símbolo de Deus e da ordem por Ele posta  no universo. E, como tal, concorre para tornar as almas mais receptivas e inclinadas à virtude, modeladas pela virtude. Presta, portanto, um serviço útil à Igreja e à salvação das almas. Na própria Revelação, temos exemplos abundantes nesse sentido. Tomemos, por exemplo, a família, que é uma sociedade temporal. É verdade que a família católica só é legitimamente constituída pelo sacramento do Matrimônio. Mas houve casamento e família antes de o sacramento ser instituído por Nosso Senhor. Ela é uma entidade natural.

Quando bem constituída, a ordem temporal presta inestimável serviço à Igreja, permitindo que esta atraia a si as almas e desenvolva sua divina obra de salvação
(Vista da cidade de Chartres e sua imponente catedral gótica)

Quantas e quantas vezes, Deus, no Antigo e no Novo Testamento, para fazer entender aos homens o seu afeto, intitula-se Pai! O Pai-Nosso, oração ensinada por Nosso Senhor, começa assim: “Pai nosso que estais nos céus…”

Esse valor simbólico das coisas criadas por Deus vai tão longe que até mesmo figuras do mundo animal simbolizam a Deus. Nosso Senhor, falando de Si mesmo quando chorou sobre Jerusalém, disse: “Quantas vezes eu quis te reunir junto a mim como a galinha reúne os pintainhos” —indicando claramente que a galinha com seus pintainhos é um símbolo do amor de Deus para com os homens.

Mas se uma galinha que reúne em torno de si os seus pintainhos simboliza a Deus, um rei que na ordem da virtude reúne em torno de si os seus súditos não simboliza também? Eu teria muita dificuldade em admitir que isso não é assim.

Então, se uma galinha simboliza Nosso Senhor Jesus Cristo, por que Carlos Magno, reunindo todos os povos seus súditos, também não O simbolizava? Não é possível compreender que alguém negue isso!

Repito, pois, que nesse sentido a ordem temporal bem-estabelecida, segundo o espírito da Igreja, é o próprio símbolo das coisas espirituais. Muito mais do que outros símbolos, utilizados até pela Escritura — “Céus e terras, bendizei ao Senhor” — e todo o elenco de criaturas que devem glorificar a Deus.

Glorificar a Deus é manifestar a sua condição de imagem ou de semelhança de Deus, é o efeito que volta à Causa, é o criado que obedece ao Criador.

Mas o menor dos homens que se possa imaginar vale incomparavelmente mais do que todos os astros do firmamento. Nunca Nosso Senhor teria sofrido o que sofreu na Cruz para evitar que se apagasse uma estrela material no céu. Mas Ele teria passado por toda a Paixão ainda que fosse apenas pelo último dos homúnculos. Tão grande valor tem um homem!

Se o céu com seus astros dá uma tal glória a Deus, ou então as águas do mar, e incontáveis outras criaturas, quanto mais deve dar glória a Deus o conjunto dos homens! É símbolo de Deus, como o céu é um símbolo de Deus.

Apostolado próprio dos leigos

A partir de uma ordem temporal bem constituída se desdobra uma concatenação de efeitos preciosíssima para que a Igreja atraia a si as almas e desenvolva sua missão. Isso é um exemplo do que eu chamava de “a finalidade ministerial do Estado nas mãos da Igreja”. Ministerial, no sentido de que é servidor. A ordem temporal tem um serviço a prestar à Igreja.

É uma verdadeira obra de apostolado, se eu fizer isso por amor de Deus e por amor à Igreja. Mas é uma obra de apostolado de leigos. Por quê? Porque não é normal que os governantes sejam sacerdotes.

Nosso Senhor fez distinção entre a Igreja e o Estado. Um sacerdote pode, per accidens, ser rei. Dom Henrique, rei de Portugal, era cardeal, era bispo. A Casa de Avis ia extinguir-se nele como último herdeiro da coroa portuguesa em varonia, caso ele não tivesse filhos. Para evitar isso, a Santa Sé chegou a levantar o voto de castidade dele e autorizou que fosse rei de Portugal. Mas essa não é a ordem normal das coisas. Não podemos imaginar todas as terras do mundo governadas por cardeais ou bispos. Isso feito por princípio baralharia a distinção entre a Igreja e o Estado, que Nosso Senhor Jesus Cristo estabeleceu.

A tarefa de conduzir a sociedade temporal, embora sob a inspiração da Igreja, é da própria sociedade temporal. E para fazer essa eminente obra de apostolado, o homem deve ser leigo.

Estamos aqui considerando a sociedade temporal no tocante ao Estado. Mas veremos que ela abarca um leque de corpos sociais muito mais vasto que o Estado.