Campanário medieval da Colegiata de Sant’Orso, Itália

A partir dos mais remotos flashes que tive desde minha infância, através des­sas graças especiais que foram se explicitando e maturando ao longo da vida, a Providência me colocou dian­te desta idéia: Deus emitiu para o mundo um lumen [uma luz], que é Nosso Senhor Jesus Cristo; mas este lumen que nos aparece em seu auge na pessoa divina d’Ele, e numa perfeição indizível na pessoa criada de Nossa Senhora, também pode ser per­cebido nos demais aspectos da cria­ção, essencialmente considerados à luz da Civilização Cristã.

Portanto, a atração que sempre sen­ti — menino, jovem ou homem maduro — pelas mais diversas mara­vilhas da Cristandade, devia-se não só à beleza delas, mas, sobretudo, ao fa­to de que me remetiam para algo diá­fano, superior, lindíssimo, que des­de logo conquistava minha alma. Eram reflexos de uma perfeição absoluta que reluziam aos meus olhos e a tornavam mais próxima de mim.

Lembro-me, por exemplo, dos primeiros flashes que tive a respeito da Idade Média quando, num corso de Carnaval, reparei numa moça portando um chapéu cônico caracte­rístico daquela época, com um gran­de tule pendurado e que o vento fa­zia tremular de modo elegante e ai­roso. Quando ela passou perto do local em que me encontrava e meu olhar recaiu sobre o chapéu, abandonei o jogo das serpentinas e exclamei: “Ahhh! O que é aquilo?” E me disseram: “Um chapéu da Idade Média”. Eu pensei comigo: “Idade Média! Preciso reter esse nome. É da Idade Média. Aqui existe algo para mim!”

A graça me tocara, fazendo-me sentir uma espécie de avidez de segurar aquele objeto tão bonito. E se eu pudesse, faria parar o automóvel dela e diria à moça:

— Não se mexa! Eu quero ver como é o seu chapéu!

Quando considero qualquer obra nascida da alma medieval — um chapéu cônico, uma catedral, um castelo — parece-me que por detrás dela se manifesta um Espírito altíssimo, sublime, diante do qual não sou senão uma poeirazinha perdida…

À esquerda, muralhas de Carcassone (França); no alto, Notre-Dame de Paris; à direita, Castelo de Butron (Espanha)

Era como se uma nuvem de ouro passasse sobre mim a propósito de um fruto da cristandade medieval, e que representava um tréssaillement [sobressalto] das graças da Idade Mé­dia ainda presente nas almas. A idéia que ficou no meu espírito de menino foi: “Esta beleza religiosa é tudo, é a fórmula de tudo, é a solução de tudo!”

Era um flash , eco e reminiscência do luminoso flash em função do qual, penso eu, vivia toda a Civilização Cris­tã nos seus mais esplendo­rosos dias.

E assim como aquele chapéu cô­nico me transportou de entusiasmo, do mesmo modo, quando considero qualquer obra nascida da alma medieval — por exemplo, uma catedral, um vitral, uma fila de santos nos seus pedestais, uma torre ou um castelo — tenho a impressão de que por detrás dela como que se manifesta e se faz sentir um Espírito altíssimo, dian­te do qual eu não sou senão uma poei­razinha perdida, de tal maneira Ele é alto e sublime.

Um Espírito que nos envolve com sua inextinguível bondade, desejoso de comunicar à criação todas as suas sublimidades e riquezas, de forma que, para com a menor criaturazinha existente, Ele tem um amor pelo qual a atrai, vivifica e inunda, como se só existisse para ela. Ele a penetra com uma ternura absoluta, quase lírica, per­to da qual a ternura materna não é senão pálida imagem.

Um Espírito que pensa profundamente sobre si próprio e sobre o que faz, tendo a respeito de tudo idéias prodigiosas, que eu não alcanço a não ser de longe e pelas fímbrias. Mas, a fímbria que eu alcanço me deixa ma­ravilhado com o que há naquele interior imenso. Ele é um mar meio fechado para mim, do qual degusto algo que me encanta e arrebata, de modo pleno, cheio.

Um Espírito ao mesmo tempo infinitamente justo e eqüitativo, e que na sua eqüidade e justiça é rígido, intransigente e terrível, contrário a tudo quanto seja negação, caos, pecado, desordem, sujeira, erro, que n’Ele não podem encontrar senão a recusa inflexível como uma espada. Ele é a fonte de todas as bênçãos e de todas as misericórdias, assim como o é de todas as necessárias punições.

E essa diferença de aspectos, entretanto harmoniosos e complemen­tares, também nos devem encher de enlevo e adoração. São perfeições di­vinas, cujos reflexos aparecem nas mag­nificências engendradas pela Igre­ja Católica, e que os flashes fazem re­luzir aos nossos olhos, dando-nos como que visões de Deus. Num vitral de um azul fabuloso, por exemplo, com todas as tonalidades de delica­deza que no azul cabem, veremos a suavidade deste Ser. Num vitral vermelho no qual a luz do sol acende incandescências, discerniremos a forna­lha de caridade com que Ele inflama seu próprio Coração Divino.

E assim, a propósito das extraor­dinárias policromias dos vitrais, dos sons graves ou festivos dos bronzes tangidos nos altos dos campanários, da imponência religiosa das torres que se erguem aos céus, da força vigilan­te e destemida das muralhas e ameias, da riqueza dos altares recamados de ouro e de prata, da singeleza austera e contemplativa dos claustros — a propósito de todas as maravilhas da Civilização Cristã, enfim, nossas almas podem conhecer algo das rutilantes excelências de Deus.

A propósito de todas as maravilhas da Civilização Cristã, como as extraordinárias policromias dos vitrais, nossas almas podem conhecer algo das rutilantes excelências de Deus

(Vitrais da Catedral de León, Espanha)

E o que me encanta de modo todo particular é saber que esse Ser, o pró­prio Deus, está realmente presente em todos os tabernáculos da Terra, na hóstia consagrada, numa pequena ro­dela de trigo com água transubstanciada no corpo, sangue, alma e divinda­de de Nosso Senhor Jesus Cristo. Aí, então, sinto-me completamente satis­feito. Não há mais nada a dizer…