O jovem Plinio

Em uma de suas conferências em 1979, utilizou-se Dr. Plinio do livro de memórias da Condessa de Boigne — “Du règne de Louis XVI à 1848” —, para tratar da arte de conversar, que atingiu o máximo brilho nos salões da aristocracia francesa daquela época. Os comentários da autora sobre o correr aleatório das conversas, ao sabor das apetências em cada momento, suscitaram na mente de Dr. Plinio um tema conexo: a maneira de pensar. Ele narra como despertou para esta questão em sua mocidade.

Essas frases de Mme. de Boigne me lembram algumas perplexidades minhas quando eu tinha uns 14 ou 15 anos.

Lembrem-se de que nasci em 1908, portanto, por muitos lados, sou próximo do século XIX. Eu estava habituado às gravuras dos personagens do século XIX. Tenho até hoje, em casa, uma gravura de um bisavô, que era parlamentar no tempo doImpério. Gravura feita no século XIX, objeto caseiro, mas na qual eu o via com seu aspecto grave, solene, e uma cara pensativa.

Eu dizia de mim para comigo: “Quando eu souber pensar, vou precisar fazer essa cara nos momentos em que desejar pôr em movimento o pensamento. Sim, percebo como pessoas como ele pensam, quer dizer, pensam de acordo com a cara. Ou seja, meu bisavô com certeza arregalava os olhos (a julgar pela gravura, tinha olhos enormes), estampava no rosto uma expressão solene e começava a pensar em passo de parada. Está bom, então eu preciso pensar do mesmo modo”.

Mas eu resolvi o seguinte: “Não vou imitar a expressão da fisionomia dele, porque isso é ridículo demais. Aliás, não adiantaria, porque não vejo meu rosto. Entretanto, vou começar a pensar em passo de parada: blã-blã, blã-blã, blã-blã”. Porém, quando eu tentava, a minha fantasia esvoaçava como a conversa da madame de Boigne, fugia aterrorizada das minhas próprias garras para todos os lados possíveis, e eu não conseguia detê-la.

“Existe qualquer coisa de quebrado dentro de minha cabeça”

Às vezes eu me pilhava havendo pensado longamente, sem ter tido nenhuma intenção, e dizia para mim mesmo: “Curioso, agora pensei!”

O jovem Plinio via numa gravura do século XIX a fisionomia do seu bisavô (ao lado), de aspecto grave e solene, e dizia para consigo: “Quando eu souber pensar, vou precisar fazer essa cara”…

Cheguei, então, à suspeita seguinte: existe qualquer coisa de quebrado dentro de minha cabeça, em virtude do que eu só consigo fazer às vezes, em ocasiões bissextas, aquilo que os antigos do século XIX faziam quando queriam. Para eles, era como um interruptor de luz: aperta, liga; solta, desliga. Diziam: “Vou pensar”, e pensavam; depois: “Vou parar de pensar”, e paravam. Eu, não. Sou quebrado. Penso quando não percebo; e quando quero e faço o propósito de pensar, não consigo. Vou então caminhar assim, ao bel-prazer de Nossa Senhora, para ver o que Ela faz de mim, mas eu não consigo solucionar essa questão.

Vaivém dos pensamentos

Com o passar do tempo, percebi que certos pensamentos me voltavam com freqüência ao espírito. Não voltavam quando eu queria, mas voltavam só os que eu queria. E notei que eu tinha o poder de afastar os pensamentos não desejados. Assim, tinha pelo menos um “ímã” interior, pelo qual os pensamentos que eu queria, nas horas que eu não percebia, voltavam-me à cabeça. Estava em funcionamento, portanto, um seletivo.

Eu me dizia: “Bem, isso não é tão mau assim. Não é a normalidade, mas é menos diferente da normalidade do que eu imagino. Já me proporciona uma certa consolação”.

O hábito das correlações

Percebi também que estava tomando o hábito de não pensar só em abstrato, mas de misturar o abstrato com o concreto. Por exemplo: tal coisa que pensei se liga com tal notícia que li no jornal; tal político, em debate na Câmara, disse tal coisa que tem relação com essa questão. Ou: tal pessoa teve uma briga num clube, que se liga com tal outro acontecimento. Como é que isso se liga?

“Percebi que se ia constituindo no meu cérebro uma espécie de goiabada cascão: pedaços consistentes, pedaços semi-consistentes, tudo com sabor de pensamento”

Comecei a fazer associação entre os temas de pensamento e a vida concreta, e a fazer a análise do concreto em função do que eu tinha pensado. Tornou-se, então, para mim muito mais fácil pensar. Sim, porque, como o concreto vem muito à mente, e eu sentia que era asneira não analisá-lo em função do que eu havia pensado, notei que esse era um outro progresso pelo qual comecei a pensar muito mais. Não mais sobre o puro abstrato, mas sobre o abstrato misturado com o concreto, e sobre o puro concreto.

“Goiabada cascão”

O resultado é que o puro concreto foi se tornando cada vez menos freqüente. Por exemplo, eu pegar este papel e dizer: “É papel, hein, papel…” Bem, o que vou fazer com isso? Ou relaciono isso com qualquer coisa que venha ao caso, ou ponho a folha de papel de lado, olho para o tapete e penso na razão de ser dele ou na beleza de sua cor vermelha. Penso naquilo em que não seja asneira pensar.

Foi se constituindo assim algo dentro de minha cabeça que eu chamaria mais ou menos de “goiabada ou pessegada cascão”. Muitos devem conhecer. É uma massa quase fluida, mas muito grossa, em que tem de tudo da fruta: semente, pedaços de casca dura, pirão, tudo misturado, e a gente morde pedações desiguais.

Eu percebi que se ia constituindo no meu cérebro uma espécie de goiabada cascão: pedaços consistentes, pedaços semi-consistentes, tudo com gosto de goiaba, ou seja, tudo com sabor de pensamento.

Nem tudo é mero pensamento, mas tudo com sabor de pensamento.

Saltitar da inteligência

E isso dava-me ainda maior vontade de pensar em abstrato, porque nesse ponto, ou vamos ao pensamento puro ou perdemos o rumo.

Depois eu vim a perceber que isso forma um ciclo incessante e que é a isso que se chama pensamento. Quer dizer, a toda a hora estamos observando as coisas e sentindo-as com rumo à doutrina. E vamos destilando aspectos do que observamos, para chegar até a doutrina. Se não chegarmos até a doutrina, se não voarmos até o céu da doutrina, nossas observações terão sido vãs.

“Quando escrevo um livro, marco as horas para escrever, e aí é preciso pensar duro, a la britador, abrindo o asfalto ou abrindo a pedra, abrindo o assunto…”

Na etapa seguinte, baixamos da doutrina e fazemos o que a filosofia tomista chama de conversio ad phantasmata*: isto é, voltamos ao que fica embaixo, o concreto, e relacionamos o que pensamos com essa coisa inferior. De maneira que se forma uma espécie de roldana que sobe e desce: quando estamos no abstrato, temos saudades do concreto; quando estamos no concreto, temos saudades do abstrato. Não são as saudades de um exilado. Quem está no abstrato não se sente exilado da realidade concreta e não volta para ela precipitado; quem está no concreto não se sente exilado da realidade abstrata e não volta para ela como quem sai de um cárcere. Mas, pelo contrário, há assim uma espécie de situação em que o pensamento voa do concreto para o abstrato, como um pássaro que, do alto da árvore ou do céu, faz uns pousos na terra e voa de novo para a árvore ou diretamente para o céu.

Isso é o saltitar da inteligência.

Aí só, e depois de muito tirocínio, comecei a conseguir às vezes pensar quando queria. E assim até hoje. Por exemplo, quando escrevo um livro, marco as horas para escrever, e aí é preciso pensar duro, a la britador, abrindo o asfalto ou abrindo a pedra, abrindo o assunto, não há outro modo. Mas é um pensamento condicionado a esse mecanismo.

* O termo fantasia deriva do verbo grego phantazo (fazer aparecer). Daí a expressão conversio ad phantasmata — volta às imagens — da filosofia escolástica. Durante o ato de pensar, o entendimento mantém vinculação com as imagens sensíveis, captadas pelos sentidos externos.