Dona Lucilia aos 91 anos

Em meados de fevereiro de 1968, um amigo de Dr. Plinio, argentino, de passagem por São Paulo teve também ocasião de conhecer Dª Lucilia de perto. Assim recorda ele o feliz encontro:

“Eu estava no hall de entrada do apartamento de Dr. Plinio, aguardando uma oportunidade para poder cumprimentá-lo. Percebi então que, na sala de jantar, estava Dª Lucilia em companhia de outro jovem.

“Passados poucos minutos, este veio me dizer que Dª Lucilia me chamava. Sentada à mesa, tomava seu costumeiro chá. Haviam-lhe dito que eu pertencia ao ‘Clubinho’ de Dr. Plinio em Buenos Aires, e que naquela cidade ele era muito admirado e querido. Dona Lucilia me recebeu com extrema bondade. Seu trato era de uma classe, de uma finura e de uma afabilidade extraordinárias.

“Que ele vá… e volte logo!”

“Dirigiu-me umas palavras amáveis:

“— Eu gosto muito de seu país — começou ela, para me pôr à vontade.

“Em seguida convidou-me a acom­panhá-los no chá. Agradeci, respondendo que já havia tomado lanche. Ela, com muita suavidade, insistiu:

“— O senhor sabe? Um visitante sempre nos proporciona maior prazer quando aceita sentar-se conosco à mesa. Assim, espero que o senhor não me privará do gosto de sua companhia…

“Era impossível eximir-se de um convite feito com tão nobre benevolência. Ela chamou então a empregada, dizendo-lhe que trouxesse outra xícara e talheres para mim. Quando me ofereceu um pedaço de torta, novamente agradeci, e disse que apenas tomaria chá. Com sua afetuosa gentileza, Dª Lucilia me respondeu:

“— Ora, o senhor que é tão moço deve gostar muito de doces, como todos os de sua idade… É uma torta simples e caseira, mas o senhor me dará alegria servindo-se dela.

“O outro jovem, que estava sentado à esquerda de Dª Lucilia, disse-lhe que eu convidara Dr. Plinio para proferir uma série de conferências públicas em Buenos Aires, pois muitos de meus compatriotas desejavam ouvi-lo. Dr. Plinio, porém, respondera que, naquele momento, não lhe era possível atender ao meu pedido.

“Com muita finura, ela me agradeceu pelo convite, deixando transparecer o comprazimento que este lhe causava. A seguir, perguntou-nos por que seu filho dissera não lhe ser possível ir a Buenos Aires.

“Aquele mesmo jovem respondeu:

“— Ah! Certamente porque não quer deixar a senhora sozinha.

“Então Dª Lucilia se voltou para o rapaz, dizendo-lhe com muita ênfase:

“— Ora, se é para o bem da Religião, ele não deve se prender por minha causa. É melhor que ele vá…

“E, dirigindo-se a mim, mudando a entoação de voz, com um sorriso gracioso acrescentou:

“— E que volte logo!

“Pouco depois chegou Dr. Plinio, dirigindo a Dª Lucilia um daqueles seus gracejos cheios de carinho, que a deixavam visivelmente agradada. Era admirável o modo transbordantemente afetuoso e animador com que Dr. Plinio tratava sua mãe. Recordo-me que, em certa ocasião, ele lhe perguntou:

“— Como está a senhora?

“— Agora bem — respondeu Dª Lucilia, como que insinuando, com um timbre de voz especial: Agora que estou com você, estou bem…”.

E assim, também para esse jovem argentino, foi Dª Lucilia “uma surpresa e um encanto de alma”…

Voz flexível e ondulada

Não há quem, em pequeno, não se tenha interessado por um caleidoscópio. As múltiplas pedrinhas coloridas, depositadas no extremo oposto ao do visor, reagrupando-se de forma diversa a cada nova posição do tubo, sempre produzem em seu curioso observador uma inesperada e atraente perspectiva, que o reporta a um mundo maravilhoso. O prisma e as pedrinhas são invariavelmente os mesmos, mas as configurações que se vão sucedendo surpreendem a todo instante.

A ancianidade de uma alma justa e virtuosa é o caleidoscópio de suas qualidades quintessenciadas pelo correr dos anos. Nos últimos meses da existência terrena de Dª Lucilia, estavam visivelmente presentes nela aqueles dons com que a Providência prodigamente lhe ornara a infância, e que ela generosamente fizera desabrochar e frutificar ao longo da vida.

Era-nos fácil observar, em sua bela alma, o quanto a prática das virtudes se foi transformando numa como que segunda natureza, ou seja, num hábito quase instintivo. E o quanto nela sobressaía sua docilidade ao menor sopro do Espírito Santo.

Era a derradeira volta nesse caleidoscópio de uma vida que primou pela benquerença, pela bondade, pelo afeto, em síntese pelo amor a Deus sobre todas as coisas, e ao próximo como a si mesma.

Apesar da idade, o olhar, os gestos, a postura na cadeira de rodas, tudo em Dª Lucilia era encantador. Entretanto, algo sobremaneira atraía quem tivesse a graça de conversar com ela: sua voz. Na ancianidade não mais tocava seu bandolim, nem sequer piano, mas ambos os instrumentos não seriam capazes de exceder em beleza os sons emitidos por aquela laringe. Seu timbre de voz era inteiramente afim com sua nobre e delicada alma.

Rezando o Rosário ou usando um lenço, Dona Lucilia ungia com sua presença todo o “1º andar”

Ao lado e abaixo, aspectos do hall; na página seguinte, vista do Salão Azul e da Sala de Jantar

“Eu nunca me consolarei por não me ter ocorrido a idéia de gravar a voz dela”, disse uma vez Dr. Plinio, “pois tenho certeza de que faria muito bem a todos!”. Também a nenhum outro essa idéia ocorreu, infelizmente. Mas aquela voz tão meiga, calma e pacificadora ficou como que gravada nos ouvidos de vários dos que a escutaram. Era muito ondulada, com uma extraordinária capacidade de simbolizar os aspectos morais e psicológicos do que ela queria transmitir, de maneira que qualquer palavra dita por ela podia, conforme o caso, tomar uma inflexão muito rica em matizes. E era persuasiva, o que dava à sua conversa uma enorme comunicatividade, sobretudo quando tinha algo de mais sério a dizer.

Apesar de sua audição ter diminuí­do com a idade, a sonoridade da voz nenhuma modificação sofrera. Era edificante observar sua capacidade de se dirigir aos interlocutores e de lhes atender as preferências, contribuindo particularmente para isso esse timbre de voz aveludado, melodioso e cheio de variadas tonalidades.

Contudo, não menos significativo era seu silêncio, pelo qual ela tanto dizia àqueles que a podiam observar. Que saudades têm os felizes visitantes que, em incontáveis oca­siões, ao entrarem em seu apartamento, encontravam-na sozinha, sentada na cadeira de rodas, rezando longas orações! Nunca se esquecerão de como sua presença suave enchia a sala de uma silenciosa paz, enquanto passava as contas de seu Rosário à hora do pôr-do-sol.

Vista através de um “brise-bise” a desfiar o Rosário

Apesar da avançada idade, Dª Lucilia jamais abandonou o hábito de rezar o Rosário todas as tardes. Rea­lizava esse importante ato sentada em sua cadeira de rodas, na sala de jantar, enquanto contemplava a copa das árvores da Praça Buenos Aires e se beneficiava dos últimos raios de sol que penetravam pela janela. Eram lindos crepúsculos, como dificilmente ocorrem na cinzenta megalópole que é a São Paulo de hoje. Aqueles entardeceres se harmonizavam admiravelmente com a alma tão brasileira de Dª Lucilia.

Quem teve a ventura de observá-la através das frestas do brise-bise 1 existente na porta do “Salão Azul”, não podia deixar de nela reconhecer um verdadeiro monumento! Não era possível separar a nobreza da religiosidade naquela senhora de 91 anos. Quando se fala de ­suas virtudes, fala-se necessariamente de nobreza, e vice-versa. Aliás, havia nela algo a mais do que nobreza: Dª Lucilia possuía uma alma augusta.

Ela se punha numa atitude tão ereta, tão composta, e rezava com tanta piedade e devoção que a cena era de comover.

Certo dia, enquanto desfiava o Rosário, ela precisou usar o lenço. “Nessa ocasião — relata um jovem que a observava — pudemos constatar quanto sua respeitabilidade se evidenciava até nos ínfimos gestos”. Sem perceber que estava sendo analisada, ela depôs o terço sobre o vestido, marcando cuidadosamente a dezena em que suspendera a oração, a fim de retomá-la no ponto exato. Tomou então o lenço, utilizando-o com discrição e perfeita compostura. Depois dobrou-o lentamente, guardou-o e continuou a prece.

“Que dignidade!” — foi a exclamação muda que naturalmente brotou no interior de quem teve a graça de assim, de modo furtivo, conhecer Dª Lucilia mais de perto.

Esta atitude dela, como tantas outras, dava oportunidade para se perceber a irradiação da diáfana e envolvente luminosidade de sua alma, um dos encantos de sua benigna e acolhedora presença.

“Que bênção existe nesta casa!”

Outro aspecto que saltava aos olhos de quem tratasse com Dª Lucilia era sua capacidade de passar de um estado de espírito a outro sem solavancos, com suavidade. Essa ordenação lhe permitia transformar em virtude qualidades de alma meramente naturais. Por exemplo, sua acentuada meiguice.

Quando estava sozinha, a impressão que causava era de uma doçura toda feita de resignação. Sua presença era repassada de elevação, de um quê de tristeza cristã, de perdão sem limites, de uma soledade que não era o vazio. Fisicamente Dª Lucilia podia estar só, porém a sala onde ela se encontrasse era toda penetrada pela irradiação de sua bondade.

Muitas pessoas dotadas de sensibilidade à graça sobrenatural notavam tal ação de presença. Característico é o fato ocorrido com um sacerdote que foi levar a Sagrada Eucaristia a Dr. Plinio, então impossibilitado de sair de casa. Logo ao entrar no hall do apartamento, olhando para todos os lados, indagou:

— Quem mora aqui?

E antes mesmo de alguém responder, exclamou:

— Que bênção existe nesta casa!

Em nada se equivocara aquele ministro de Deus. Possuindo o tirocínio do trato com as almas, soube imediatamente perceber o quanto o lar de Dª Lucilia estava carregado de imponderáveis bons, provenientes, em larga medida, das elevadas cogitações dela.

(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João Clá Dias)

1) Leve cortina translúcida, utilizada para vedar a inteira transparência de janelas ou portas com vidros.